561 - Eutanásia


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


I - Eutanásia: dimensão ético-política       

Nos debates públicos sobre a eutanásia durante a reforma do Código Penal, foram frequentemente invocadas questões estranhas ao tema. Ninguém nega que qualquer indivíduo tem, em princípio, o direito de recusar tratamentos que, embora venham com a chancela médica, podem ser por ele tidos como inconvenientes. Compete a cada um avaliar se a recusa a um tratamento, num dado caso, é compatível com o dever ético de cuidar de sua própria saúde.

Mas os campos jurídico e político devem reconhecer a todos a faculdade de auto-determinação no âmbito terapêutico, que se expressa no princípio ético do consentimento informado, o qual simboliza a humanização que deve haver na relação entre médico e paciente. Nesse momento, está em jogo o princípio da liberdade individual, em virtude do qual tampouco se pode obrigar o médico a atuar profissionalmente contra o estado da ciência e sua consciência.

O equilíbrio da relação é frágil. Na dúvida do acerto da decisão do enfermo ou da atuação do médico, convém que o assunto seja submetido à apreciação judicial, a fim de se evitar a coação privada.

Há também um amplo acordo sobre o fato de que não existe sentido em insistir com tratamentos de eficácia terapêutica duvidosa ou inútil em pacientes cuja morte iminente é inevitável. Nesses casos, a única atitude acertada é a de aceitar a situação terminal do paciente, aliviando seu sofrimento por meio de cuidados paliativos e prestando o apoio emocional necessário para assegurar que seus últimos momentos de vida sejam percorridos da melhor maneira possível.

Também pode haver uma legítima diversidade de opiniões acerca da intervenção médica mais conveniente no estágio terminal, até porque, nessa situação, o tempo não é um aliado do médico. A superação do problema deve ser feita por meio de um diálogo claro e sereno entre os médicos, o paciente, caso seja capaz de compreender e avaliar a sua situação, e a família.

Esse relacionamento é denominado apropriadamente como "aliança terapêutica". Em princípio, é preferível que a legislação não tenha que adentrar nesse nível de particularidade, porque há o risco de se estabelecer princípios que não guardem relação com a realidade ou princípios cuja rigidez seja difícil de ser atenuada pela equidade.

Tome-se, por exemplo, uma expressão muito comum em algumas legislações européias: o “direito à sedação terminal”. Na mesma linha de raciocínio, teria que se falar também em “direito a antibióticos" ou "direito a anti-inflamatório". Caso se pretenda dizer que estes medicamentos devam ser administrados quando houver prescrição médica, os termos seriam aceitáveis. Mas, na maioria dos casos, isso é desnecessário, porque a medicina deve buscar a cura possível para o paciente.

Tenho a impressão de que o uso dessas expressões num texto legislativo parece indicar que o enfermo ou sua família possam reivindicar o uso desses princípios farmacológicos frente ao médico que, segundo sua consciência e o estado da ciência, não os considera indicados. Existe o perigo de o hospital ser visto como uma espécie de restaurante, onde o cliente chega e ordena o que lhe bem apetece e, por outro lado, reduz a importância do papel do médico a uma espécie de garçom que serve o que lhe é pedido.

Uma concepção de assistência médica definida assim pelas leis de um país constituiria um grave problema ético e político.
Se a eutanásia consiste na ação ou na omissão dos cuidados básicos, com o fim de direta e intencionalmente provocar a morte de outra pessoa, o problema ético-político começa quando a ação ou a omissão de buscar diretamente a morte ganha uma vestimenta legal e se agrava quando se pretende ainda que o sistema público de saúde deva ocupar-se de buscar a morte de seus pacientes.

Por exemplo, uma família, já saturada com anos de cuidados médicos de um idoso acamado e inválido, poderia ingressar com aquele parente naquelas condições e, passados alguns dias, ele seria devolvido bem acondicionado num caixão de alabastro. A justificativa poderia ser a de que aquele quadro clínico era tão negativo e sem sentido que seria bom e conforme o direito a adoção de um protocolo dirigido intencionalmente para acabar com a vida daquele doente.

Uma enfermidade poderia converter-se num mal de uma dimensão tal que “justificaria” a transgressão do princípio jurídico do não matar o semelhante. Na raiz dessa postura e do problema ético-político, há uma teoria: existem vidas dignas de serem vividas e outras não. E uma tentação: conferir a alguém um poder arbitrário sobre a vida e a morte das pessoas.

II - Eutanásia: liberdade a favor da vida

Desde o ponto de vista ético-político, creio que a tradição jurídica dos países civilizados criou fórmulas várias para a resolução de conflitos de todos os tipos: criminais, civis, religiosos, diplomáticos, econômicos e outros. Mas, ao longo dos séculos, foi-se consolidando sempre mais a ideia de que a justa solução para qualquer conflito, com raras exceções (como a legítima defesa), tem um limite que não pode ser superado. E esse limite é o princípio do respeito à vida.

Este princípio tem desempenhado um papel pacificador na medida em que sempre foi considerado como universalmente válido, mesmo em casos extremos. Se alguém pensa que é conforme ao direito que tal princípio possa ser ignorado alguma vez, nada impede que ele venha a ser ignorado mais vezes. Se este princípio pode perder sua vigência por esta ou por aquela razão, então poderá perder por outras, dependendo das concepções e da sensibilidade dos homens de cada período histórico.

A experiência tem mostrado que, nos países onde existe a possibilidade legal de finalizar a vida daqueles que pediam por isso em casos verdadeiramente extremos, gradualmente foi se passando a acabar com a vida também daqueles que não a requeriam.

Se existem situações que justificam a invalidade do principio do respeito à vida, logo, a especificação de cada uma dessas situações passa a ser uma questão aberta, a respeito da qual cada pessoa, cada sociedade, cada tribunal e cada Estado poderá chegar as suas próprias conclusões.

Contudo, existe ainda outra razão em favor daquele princípio. A política moderna nasceu com a intenção de que os homens se convencessem de que era melhor para eles renunciarem à sua natural agressividade, à autotutela, à busca intransigente de seus interesses, a fim de que o Estado assumisse o monopólio da violência e, assim, pudesse mais eficazmente defender a vida, a liberdade e a justiça, segundo uma ordem capaz de coordenar justamente os interesses e expectativas de todos os envolvidos.

O Estado foi criado para assegurar uma série de bens, como a vida, a liberdade, a justiça, a saúde e outros. E não para promover a morte de seus cidadãos. Em nossa realidade social, há muita desigualdade, exploração, arbítrio e contradições. Mas tais realidades sempre foram vistas como contrárias ao direito. O Estado, por via de seu sistema público de saúde, não pode ter um serviço para abreviar a vida de seus cidadãos.

Cada um pense da forma que melhor entender. Quem atuar, nas circunstâncias de uma eutanásia, em estado de necessidade ou como vítima do desespero, que goze das circunstâncias atenuantes cabíveis e de toda compreensão diante de um magistrado. Mas para os profissionais da saúde que pertençam a tais tipos de estruturas públicas de saúde, a situação é bem diferente, porque, na maioria das vezes, eles têm o domínio do fato.

Alegar a laicidade estatal só serve para aumentar a confusão. Norberto Bobbio, que conhecia, como poucos, os fundamentos da política moderna e que, pessoalmente, não era religioso, escreveu: "Fico surpreso que os não-religiosos deixem para os religiosos o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar". Igualmente equivocado é invocar a liberdade e o direito à autodeterminação para justificar a eutanásia.

Se o Estado moderno nasceu para tutelar a vida e a liberdade, não se pode admitir a liberdade de matar, assim como não se admite a liberdade de roubar ou de empregar a violência. A liberdade é a forma mais digna de vida que existe neste planeta, a vida humana.

Se a liberdade passa a ser exercida contra a vida, converte-se numa força contraditória e que não pode ser adotada como princípio de estruturação da vida social e política. Ir além deste ponto de apoio só redundará em tentativas fracassadas e indicará a medida do que queremos enquanto civilização: a medida de um paciente que precisa de tratamento intensivo.

III - Bioética, estado e neutralidade

No debate do aborto, da eutanásia e de outras questões bioéticas, comumente se apela para a neutralidade do Estado. Existe um sentido de que o Estado deve ser neutro, pois deve tratar a todos os cidadãos segundo as mesmas leis, sem admitir distinções originárias de elementos juridicamente não relevantes. A visão da realidade, a partir do Estado, seria igual a de um centro cirúrgico: branco, asséptico e tudo em seu perfeito lugar. Creio que a realidade lembra mais um camelódromo...

Esta neutralidade ou imparcialidade não significa que o Estado deva ser indiferente a qualquer concepção do bem ou da política, mas, pelo contrário, justamente em razão da diversidade nestes assuntos, deve o Estado trilhar as sendas frondosas da vida, da liberdade e da justiça.

O Estado não pode ser neutro ante quem nega os direitos humanos ou a quem põe em xeque a igualdade fundamental entre os cidadãos ou entre homens e mulheres. Há uma outra concepção de neutralidade que defende uma atividade legislativa e regulatória do governo focada estritamente no concerto pacífico de todas as orientações ideológicas que existam numa dada sociedade.

Em matéria ideológica, não é possível o tal concerto. Como cada ideologia deixa de contemplar primeiro, porque quer, a todo modo, mudar a realidade antes, uma acaba prevalecendo sobre as demais. E o problema da ideologia está no momento primeiro que não é teórico, mas bem prático: age-se sem que se suponha que se saiba e que se defina preliminarmente porque, como e em que medida mudar a realidade.

Quem filosofa com este espírito, perde a liberdade e a ânsia de mudar inevitavelmente condiciona e perturba o momento de contemplação. Perturba-o a ponto de que, invertidos os termos e atrelados à práxis, a especulação pura torna-se ideologia e, portanto, deixa de ser filosofia.

 Por outro lado, em assuntos sociais em que não haja consensos construídos, o Estado deveria retirar-se para um terreno neutro onde todos, ou pelo menos a maioria, estejam de acordo. Assim, ficaria assegurado o respeito à igualdade, à autonomia e à autodeterminação de seus cidadãos. Na esteira desse raciocínio, o Estado deveria, por exemplo, promover o aborto e a eutanásia se uma maioria considerável assim o desejasse.

Nesta concepção de neutralidade, inaceitável para mim e rejeitada por muitos teóricos do liberalismo político, muita reflexão ainda restaria por fazer. Aqui, limito a assinalar que tal neutralidade é simplesmente impossível.

Declarar-se neutro ante o valor da vida, entendido no sentido elementar de que o Estado não pode promover a morte de seus cidadãos, nem tampouco consentir que outros possam fazê-lo, significa, na melhor das hipóteses, afirmar que o direito à vida carece de importância absoluta, ao menos quando uma minoria significativa assim o compreenda.

E isso não é uma postura neutra, mas uma concepção muito concreta e precisa de bem comum e de política, diametralmente oposta àquela que, até hoje, tornou possível nossa vida em comum ao longo dos séculos da história da humanidade.

Num Estado, o respeito às crenças e aos valores de todos os segmentos da sociedade é a prova de sua maturidade democrática, como, aliás, o constituinte brasileiro lembrou, no artigo 3º, inciso IV, da CF/88, ao proibir qualquer espécie de discriminação.

Aristóteles já dizia que o Estado nasce para fazer possível a vida e, visto que o alvo da vida humana é a felicidade, a razão de ser do Estado é a de facilitar a obtenção da felicidade. Mais uma vez, nada como a atualidade do saber dos antigos.

Mas, de uns tempos para cá, tenho a impressão de que paramos na profecia de Nietzsche: “na história da sociedade, há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica e o faz a sério e honestamente”. Nesta jornada, desço na estação do filósofo alemão. E não contem comigo para o restante dela.

IV – Vida, direitos humanos e estado        

Atualmente, para muitas pessoas, existe uma certa dificuldade de entendimento de que a ética dos direitos humanos, mais precisamente no campo do direito à liberdade, também possa fundamentar algumas proibições. A este propósito, já foi dito corretamente que a experiência política moderna migrou de uma compreensão dos direitos e liberdades fundamentais do indivíduo ante o Estado, para a busca de um sentido mais institucional de tais direitos.

Já não é somente um rol de liberdades que serve de anteparo contra a interferência arbitrária do Estado, mas expressa uma ordem de valores que a comunidade política há de cultivar e transmitir para as gerações sucessivas.

Os direitos fundamentais, entendidos desta forma, não são mais liberdades ante o Estado, mas no próprio Estado. Importantes estudos acadêmicos têm contribuído para estabelecer que os direitos fundamentais, especialmente o direto à vida, além de garantir a imunidade frente ao Estado, conferem também ao indivíduo o direito de ser protegido, por meios de leis, das ingerências ilegítimas de outras pessoas.

Neste ponto, alguns poderiam argumentar que o direito poderia assumir um perfil repressivo. Por trás do verniz demagógico dessa afirmação, gostaria de saber, como magistrado e professor, como é possível reconhecer e tutelar qualquer direito humano, sem seja preciso constranger juridicamente os cidadãos a se omitirem de certas ações danosas frente ao titular daquele direito ameaçado.

Se a liberdade do indivíduo não pode ser civil ou penalmente protegida contra a ameaça proveniente do abuso no exercício da liberdade pelos outros, não teria muito sentido em falar do significado da liberdade para a vida social como um todo: prevaleceria a lei do mais forte. E, como consequência, os efeitos sociais benéficos dos direitos humanos seriam postos em discussão, pois até mesmo a realização das liberdades individuais resultaria seriamente ameaçada.

Quando o Estado introduz no ordenamento jurídico o princípio da inviolabilidade absoluta da vida humana, não se está aceitando um princípio confessional ou um critério estranho à ideia moderna de política. Esse princípio responde a um dos valores substanciais – a vida – e a um dos princípios fundamentais – o da igualdade – sobre os quais se baseia a cultura política contemporânea.

Do contrário, o Estado atuaria segundo o laicismo, essa versão deturpada de laicidade e que refuta a presença do religioso na vida social, não o acolhendo com a mesma naturalidade do elemento ideológico, cultural ou social. Evidente que, quem se fecha a uma visão transcendente da existência, tende a reduzir tudo ao argumento político e a avaliar, sob a ótica estrita do poder, todo o dinamismo social.

Dois dos grandes mestres do pensamento político, Aristóteles e Platão, chegaram à conclusão de que um Estado ideal seria aquele capaz de cumprir sua função de garantir a paz, a justiça e o bem-estar social, para o que demandaria um governo respeitado e justo, o qual saiba respeitar os direitos dos cidadãos e fazer observar os deveres por parte de todos.

Norberto Bobbio respondia acertadamente, a quem se valia do pacto social para relativizar as questões bioéticas, “que o primeiro grande escritor político que formulou a tese do contrato social, Thomas Hobbes, dizia que o único direito, ao qual os contratantes não haviam renunciado ao entrar na sociedade, era o direito à vida”.

O respeito ao direito à vida foi, é e será sempre o distintivo fundamental de uma cultura política que a consciência humana pode sustentar sem ficar envergonhada. Com respeito à divergência, é o que penso.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).


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