577 - Farrapo humano


CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA – Juiz de Direito


O começo de um escrito, em especial aquele detentor de um título com muitos significados, necessita de explicações prévias para que a força final das duas palavras associadas não leve o leitor a um erro de julgamento e com isso à desatenção ao resto do texto.                                            

Isso porque, mais importante para o resultado e o fim pretendido com as palavras é o conteúdo do texto e não o abalo emocional do título.                                              

Farrapo é pedaço de pano cortado, muito usado, gasto.                                              

Humano é o próprio homem.                                              

Farrapo humano, em um sentido figurado, é o homem abandonado e traído pelo destino.                                              

Representa um espectro ainda moribundo vagueando como uma nau perdida pelas ruas das urbes, absorvido em seu mundo, como vivesse em um tempo e espaço diversos do resto da sociedade.                                              

São espelhos para quem os olha, haja vista refletirem a imagem dos outros, dos seus sucessos e do medo do fracasso, como se não houvesse homem a ser mirado, compreendido e respeitado.                                               

Homens, mulheres e crianças abandonados à própria sorte e ao sabor da providência, marcados por vicissitudes coroadas com substâncias inebriantes, problemas mentais, buscas de restos em lixos e abrigo em covas altas e improvisadas junto a viadutos e a comércios fechados.                                              

Apresentado o título, o qual se origina de um filme norte-americano[1], bem como o próprio objeto do trabalho, pergunta-se:                                              

Qual o relevo de um problema social para o Direito e em especial para o Poder Judiciário?                                              

A resposta é simples.                                              

O Direito, em suas várias áreas de ação, existe para a melhora da vida em sociedade.                                              

Em razão disso, o objeto principal da sua proteção precisa ser o homem, uma vez que sem ele não há sociedade.                                              

Logo, sem sentido o tecnicismo exagerado do jurista separador do interesse pelo homem do próprio Direito e do objetivo deste em relação ao homem em sociedade.                                              

Também, sem compreensão o olhar do problema social com um olho, quando existem dois olhos disponíveis para observar.                                              

O técnico precisa olhar os fatos, as coisas e as pessoas com o olho direito da formação profissional e do cargo ocupado, sem esquecer de abrir o olho esquerdo do social.                                              

O Poder Judiciário e o Ministério Público possuem funções técnicas institucionais de imensa relevância social, mas não podem ficar restritos aos gabinetes, esperando do Poder Executivo ações sociais não realizadas.                                              

Também, não podem se eximir de responsabilidades, fingindo não possuírem o olho esquerdo, aquele ligado ao coração.                                              

Inclusive, não podem ser telespectadores das mudanças jurídicas pelo Poder Legislativo sem opinar e acima de tudo esclarecer os impactos sociais decorrentes de novas normas.                                              

Porém, observam-se profissionais absortos em seus processos e em problemas pessoais, sem a devida preocupação, por parte de alguns, do papel moral deles e das suas instituições para a vida em sociedade.                                              

Com o tempo, ao que tudo indica, a magia dos sonhos da busca de um mundo perfeito, dão lugar às preocupações com o individual em detrimento do comum.                                              

Não cansamos de ver pessoas mendigando em cruzamentos, tomando conta de carros, perambulando pelas ruas sem destino, em qualquer idade e a qualquer hora do dia ou da noite, sem que ninguém fale ou faça nada.                                              

Meninas se prostituindo, velhos jogados nas calçadas e improvisando abrigos, sem que ninguém diga nada.                                              

Jovens se drogando sem que ninguém expresse nada.                                              

A desculpa mágica é que tudo isso representa “um problema social”.                                              

É cômodo dizer ser a solução do problema social função dos outros.                                              

Em uma triste síntese, punimos com o Direito Penal ou nos esquecemos dos problemas, como fizemos com relação à despenalização da posse de entorpecentes para o próprio uso.                                              

Inclusive, diante da impossibilidade de ação efetiva do Estado com relação ao uso de entorpecentes, ao tráfico ilícito de drogas, passamos a idealizar projetos para a descriminalização.                                              

Alguns até dizem ser a política de governo a de redução de danos!                                              

Redução de danos, em resumo, é aceitar o drogado e conviver com as drogas, fechando os dois olhos para os novos drogados nascidos todos os dias do esfacelamento das famílias e do próprio poder regulador do Estado.                                               

Realmente, tudo que afeta a vida do homem em sociedade é um problema social!                                              

E daí, essa é a solução para os farrapos humanos?                                              

A quem cabe uma solução ou pelo menos uma cobrança?                                              

Não há direito de deambulação, o ir e vir, sem que haja o direito à dignidade da pessoa humana.                                              

Deixar uma pessoa doente ou abandonada vagando pelas ruas com a desculpa de que ela possui o direito de ir e vir é o mesmo que enxergar espelhos para não se ver e não sentir a dor alheia e a própria responsabilidade para com o próximo.                                              

Infelizmente, quantas autoridades ocupam os bancos dos cultos religiosos, semanalmente, e saem dos seus templos com os olhos fechados para não observar o próximo e a sua própria incompetência.                                              

Rogam pelo olhar do ser supremo para os seus problemas, mas não enxergam os dos seus semelhantes ao alcance da sua capacidade mundana de solução.                                              

O fato é que já se perdem nas brumas do tempo, a época em que uma criança em um cruzamento ou após as 22:00 horas despertava, por parte das autoridades, o interesse para saber dos pais e do cuidado deles para com ela.                                              

É fácil justificar a miséria com a própria miséria.                                              

O difícil é enfrentá-la.                                              

Não temos locais apropriados ou em quantidade suficiente para doentes mentais pobres, viciados e crianças abandonadas.                                              

Todavia, a inexistência de locais sociais, mais importantes do que outras ações políticas de visibilidade e para as quais não faltam recursos, não é justificativa para o não fazer nada.                                              

Precisamos resgatar a nossa dignidade como pessoas antes de profissionais, tomar medidas de ofício para exigir a dignidade humana dos farrapos humanos e sem comodismo pessoal.                                              

Caso contrário, cada vez mais precisaremos construir presídios, a ponto de existirem mais pessoas presas do que em liberdade.                                              

A indiferença para com o próximo, a ausência de compaixão, são os alimentos da miséria humana.                                              

O Direito Penal não é solução para a miséria, mas a indiferença é remédio com menor valia ainda.                                              

Senhores, estamos nos primeiros lustros de um novo milênio.                                              

Por que não o da humanidade!                                              

Precisamos, como autoridades morais e legais, dentro da ação profissional de cada um de nós, fomentarmos debates, reuniões, apontarmos problemas, exigir medidas e soluções, para não continuarmos sendo cobrados e injustiçados.                                              

O Poder Judiciário e o Ministério Público, após os escândalos e o julgamento do que se convencionou chamar de “mensalão”, precisam ocupar de fato os seus lugares como baluartes da moral.                                              

Grita pela vida quem tem medo da morte, clama por Justiça quem tem pavor da imoralidade, mas somente faz aquele que se respeita como homem e profissional, bem como ama ao próximo.


[1] . O filme, rodado em 1945 e tendo como diretor Billy Wilder, originalmente chamava-se The Lost Weekend, mas foi traduzido para o português como  Farrapo Humano;

 


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