578 - Lei natural


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito



I - Estado de direito e justiça
 

Muito se fala de estado de direito. Na mídia, nos livros de direito, nos editoriais dos jornais e das revistas. Mas o estado de direito é sinônimo de um estado de legalidade ou de um estado de justiça? 

Desde que surgiu a idéia moderna de estado, o direito assumiu a condição de medida do poder. Mas o que é o direito? Resume-se às leis, decretos, resoluções e portarias? Creio que não. Posso afirmar que essa parafernália legislativa, embora tenha sua razão, na prática, serve mais para encher nossa paciência como cidadão e, de certa forma, esvaziar o significado originário do direito. 

O direito é aquilo que, por justiça, é devido ao outro. É uma definição cheia de sentido, mas que não fica só nisso. Precisa, por meio das leis, determinar o justo caso a caso. Essa determinação do justo concreto deve ser feita segundo a natureza do caso concreto, o que se dá por uma lei não escrita, chamada lei natural. 

Quando um casal resolve gerar um filho, a natureza própria dessa relação cria uma série de obrigações naturais para aqueles pais. O dever de sustento alimentar, de educação formal e moral, enfim, uma série de responsabilidades que decorrem da natureza daquele fato e que a lei escrita não precisaria dizer, mas acaba por fazê-lo para reforçar aquilo que a lei natural já apontou como o justo no caso de um vínculo familiar. Tanto que repugna à consciência de qualquer um o abandono material ou afetivo de uma criança. 

Assim, nem todas as leis estão escritas num pesado volume de folhas amareladas, nem se expressam sempre em artigos de códigos. Arrisco a dizer que a lei que utilizamos com mais freqüência é, justamente, a lei natural, que está chamada a inspirar todas as demais leis. E, por ser a mais usada, torna-se, logo, a mais democrática de todas as leis. 

A lei natural é um conjunto mental formado a partir de umas intuições morais básicas, a partir das quais vamos sacando conclusões para a vida em sociedade. Às vezes, tiramos conclusões acertadas e, outras vezes, nem tanto. Mas isso não converte a lei natural num assunto meramente subjetivo, precisamente porque ela é composta por princípios comuns a todos, muito além das diferenças que percebemos entre uns e outros.  

Na história, a humanidade sempre indicou umas razões relevantes para a ética e para o direito, ainda que expressadas por diversas maneiras. Hoje, por exemplo, reflete-se na linguagem dos direitos humanos que, para muitos países islâmicos, seria um mero produto ocidental.  

Ainda que a certidão de nascimento dos direitos humanos seja ocidental, seus conteúdos reportam-se a valores universais, mesmo que, muitas vezes, historicamente, boa parte deles tenha sido desrespeitada. De seu reconhecimento depende o respeito à dignidade da pessoa humana na prática e, daquela universalidade e desse respeito, a lei natural também nos fala, com a diferença de que é a teoria ética mais adotada para se expressar a existência de uns princípios morais universais.  

Além das controvérsias acadêmicas, a referência tanto à lei natural, como aos direitos humanos, decorre de uma ideia fundamental: há uns critérios morais básicos que precedem nossos acordos e convenções e que são anteriores às nossas diferenças de credo, cultura, nação ou de política e aos nossos contratos sociais. 

Essa precedência faz com que a lei natural tenha uma vigência que não dependa de uma autoridade estatal. Podemos dizer que, assim como cada um de nós carrega um código genético, também levamos uma lei natural inscrita em nossa razão, pelo simples fato de sermos humanos. 

Em razão disso, só pode haver um verdadeiro estado de direito quando se respeita a lei natural, essa lei que se situa numa ordem superior à vontade dos detentores do poder e dos legisladores. Então, o estado de direito, na plenitude de seu significado, será um estado de justiça. E, superando a ideia de um estado de pura legalidade, o estado de direito, visto como um estado de justiça, deixa de servir de instrumento para a prepotência e a arbitrariedade. 

II - Tortura, lei e razão 

Uma boa parte dos brasileiros, segundo uma pesquisa recente, entende que a tortura pode ser empregada como meio de investigação policial em crimes graves, como o estupro, o sequestro, o tráfico de drogas e o roubo, mas a mesma parcela entende que os tribunais não podem aceitar provas obtidas pela mesma tortura (NEV/USP – 2010).                   

Além do fato da notória ambivalência sobre a percepção da tortura para os entrevistados, o que sugere uma série de outras conclusões, alguém poderia afirmar que, a partir da pesquisa, por haver distintas morais paralelas, então não se poderia falar de uma lei natural comum a todos os homens.  

A lei natural pode ser resumida num princípio muito elementar: faze o bem e evita o mal. O cristianismo lapidou o mesmo princípio de outra maneira: ama o próximo como a ti mesmo. E a filosofia, por meio da famosa máxima kantiana, recomendou: age sempre como se a tua conduta pudesse ser apresentada como exemplo universal. 

Creio que estamos todos de acordo sobre tudo isso, porque somos seres morais por natureza. O problema surge quando essas ideias gerais concretizam-se em situações distintas de lugar, tempo e cultura. Acertar, na prática, não é uma questão de fórmulas prontas e acabadas. Exige muitas doses de razão no trabalho de ponderação dos bens que estão em jogo no caso concreto. 

E, nesse momento, podemos nos equivocar de muitas maneiras: escolhendo os meios menos apropriados, dando um valor exagerado para as circunstâncias ou mesmo chegando a juízos de valor apressados. Mas, quanto ao fundamental, estamos mais de acordo que se parece. 

A maior parte de nossas divergências morais não ser referem ao conteúdo da lei natural, como, por exemplo, o respeito à vida alheia, mas em sua concretização em determinadas circunstâncias, como a eutanásia ou a pena de morte. Não discutimos se é bom ser justo, mas sobre a justiça da carga tributária brasileira.  

Adentramos em terrenos mais movediços, nos quais, muitas vezes, levados por nossos interesses imediatos, podemos nos enganar com bastante facilidade e sem se dar conta disso. A lei natural não oferece uma equação algébrica para solucionar todos os problemas e acredito que sua perenidade e vitalidade decorram justamente dessa falta de cientificidade. 

A lei natural impulsiona-nos a agir com retidão, sem perder de vista os bens comprometidos em nossos atos: se estou cheio desse meu vizinho que insiste em tocar tuba de madrugada, matá-lo, ainda que eu esteja firmemente disposto a fazê-lo, não vai resolver o problema, mas criar outros piores ainda. Nesta tarefa de discernimento, não estamos sós. Devemos ouvir e refletir as críticas e objeções dos outros, sobretudo quando nos advertem sobre as coisas que, por inclinação pessoal, tendemos a esquecer. 

Mas essa mesma postura pode ser aplicada nos assuntos da vida pública? A lei natural não torna supérfluo o debate racional sobre os assuntos que concernem a todos, porque, mais cedo ou mais tarde, afetam a qualidade da convivência social. Nesse sentido, é lamentável o baixo nível do debate político atual, onde as razões ficam sistematicamente sepultadas por baixo da demagogia e das estratégias de manipulação. 

Se, em qualquer controvérsia, somos capazes de separar a ofensa pessoal dos argumentos racionais, nossa percepção moral vai se aprimorando e fazendo-se mais justa. Assim, ficamos em condições melhores para agir bem, porque a lei natural pede-nos para atuar conforme a razão. Para isso, é importante apostar na razão, mas numa razão atenta contra suas próprias debilidades.

 Por isso, necessitamos dos demais e de sua experiência moral para comparar nossas posturas e retificar, se for o caso, nossa visão unilateral. A vida moral não é uma pura prescrição seca de normas, mas uma forma de sabedoria prática. Logo, nessa linha de pensamento, nunca é algo exclusivamente privado. Todos aprendemos de todos, mas, certamente, mais de uns do que de outros. 

III - Lei, códigos e suspeitas  

Um código, como o penal ou tributário, nada mais é que uma estruturação ordenada das normas jurídicas de um certo campo do direito. A ideia dos códigos é do século retrasado e foi feita em nome da lógica, certeza, coerência do direito, muitos dos quais consagravam legalmente muitas soluções clássicas, sobretudo do Direito Romano, a maioria delas baseadas na lei natural. 

Não sei se Napoleão sabia que suas conquistas militares passariam. Mas, pelo tamanho do ego do sire, estou convicto de que ele pensava que o código ficaria com seu nome, já que foi o pioneiro em sua implantação. Há quem diga que os advogados franceses, naquela época, não sabiam o que era o direito civil, mas que só conheciam o “código napoleônico”... 

Se, além daquelas vantagens, por um lado, o código facilita a aplicação do direito, por outro, traz o risco de endeusamento da norma. E, passados dois séculos, é o que assistimos hoje na sociedade: a ideia de direito resume-se ao artigo do código tal ou qual. Quando essa mentalidade toma uma dimensão consensual, não é muito fácil falar de lei natural. Se ela não está num código, como posso fazer a coisa certa diante de um dilema, como, por exemplo, ficar em silêncio ou mentir num interrogatório? 

Aristóteles sugeria ter em mente a ideia de homem bom, o homem que age pela parte racional de si mesmo. Isso ajuda, mas não é o suficiente. Creio que também podemos nos valer de um critério negativo: sempre que uma conduta nos parece reprovável – o garotão de carro novo que estaciona na vaga reservada ao idoso – é porque consideramos que se deixou de lado um bem que deveria ter sido devidamente valorizado – respeito ao direito do idoso.  

A lei natural justamente atua quando reprovamos a ação de um roubador ou de um sequestrador. Nesses casos, damos por certo que roubar ou sequestrar é um mal objetivo. Se tiver alguma dúvida, pergunte ao roubador se ele gostaria de ser roubado. Ou mesmo ao sequestrador, se ele se “importaria” em ser sequestrado... 

O problema está em alguns dilemas morais mais complexos e, para estar à altura, o juízo de consciência deve ser refinado pela experiência e sempre considerando os fins da ação da pessoa e suas circunstâncias. Nessa tarefa, argumentos estritamente religiosos, como “isso fere a lei de Deus e merece punição” ou “aquilo é pecado e está errado”, são completamente impertinentes. 

Mas, por outro lado, as confissões cristãs tradicionais, sobretudo a Igreja Católica, defendem a lei natural que, “curiosamente”, coincide com o Decálogo. Isso não seria uma estratégia para que uma doutrina moral tenha alguma legitimidade fora das fronteiras da religião, adentrando naquilo que hoje é conhecido como “argumentos de razões públicas”? 

Se o cristianismo defende a lei natural não quer dizer que a lei natural seja um assunto cristão. Todo sabemos que a referência à uma lei não escrita está, de um modo ou de outro, em todas as culturas. Ficaremos apenas no Ocidente. A literatura, a filosofia e a história são ricas em exemplos: os embates entre Sócrates e os sofistas (século V a. C.); Antígona de Sófocles (século IV a. C.), no qual se discute se há algo justo por natureza; a ética estóica (século III a. C.), a qual apelava explicitamente à lei natural. 

As confissões cristãs reconhecem na lei natural um distintivo do plano divino para o homem. Por essa razão, São Paulo não via inconveniente em falar de lei natural e relacioná-la não com o Decálogo – o que fazia com os judeus – mas com a consciência, justamente quando se dirigia às pessoas que não professavam a religião judaica ou cristã. 

Assim, a questão não é de que a lei natural coincida com o Decálogo, até porque lhe é anterior, mas que o Decálogo expressa – por escrito e com mais contundência – verdades da lei natural que podem ficar obscurecidas por vários motivos: culturais, sociais e políticos. 

Nesse sentido, pode ocorrer que os cristãos encontrem no Decálogo aquilo que todo homem pode descobrir em sua consciência e em sua relação com os demais e até mesmo que se pronunciem com maior convicção sobre assuntos nos quais os outros manifestam menos certeza.  

Agindo assim, não pretendem se situar acima das leis escritas. Apenas exercem um direito de cidadania, o que não autoriza a considerar o apoio na lei natural como um estratagema para fazer impor, dissimuladamente, no seio social, a fé cristã. 

Confesso que a suspeita sistemática me causa cansaço. Devemos nos livrar dos preconceitos e buscar as razões. A questão não é quem fala de lei natural (se é ou não cristão) ou se tem pretensões proselitistas para fazê-lo dessa forma, mas se aquilo que é dito é sensato ou não para nossa razão. 

Considerada em si mesma, a lei natural não é um assunto eminentemente cristão. É um assunto profundamente humano, no qual todos podemos coincidir. Por isso, a lei natural é também um ponto de encontro entre crentes e não-crentes, porque a natureza humana é o que temos em comum e a partir da qual podemos construir um diálogo racional e fecundo.  

IV - Lei, democracia e justiça 

Qualquer sociedade, desde as mais simples até as mais complexas, logo percebe que as relações humanas devem estar regidas pela justiça, uma virtude que pede para dar a cada um o seu, isto é, seu direito. Mas dar a cada um o seu não significa dar a todos o mesmo: a independência funcional de um magistrado não se confunde com a de um burocrata, porque a função de julgar os conflitos sociais acarreta muito mais responsabilidades e riscos que a de ficar o dia inteiro preenchendo planilhas e organizando papéis e pastas.

 Logo, distribuir justiça significa unicamente que, no momento de assinalar os bens, as diferenças entre umas e outras pessoas devem estar justificadas. Algumas dessas justificativas são convencionais e outras são naturais e, a fim de que a justiça não degenere em arbitrariedade e a arbitrariedade em tirania, estas últimas devem ser incorporadas pelas primeiras. 

Do contrário, se o justo natural é ignorado, surge um inconveniente ético. Se renunciamos às diferenças naturais, por exemplo, que existem entre um casamento e uma união estável, decorrente do maior compromisso e do interesse social na perspectiva de estabilidade que daí decorre, ficamos sem um critério operativo para distinguir entre convenções justas e injustas ou mesmo entre leis justas e injustas. 

Por isso, não se estranha que o apelo ao natural, para justificar a legitimidade ou a falta de legitimidade de uma determinada medida legislativa – como a adoção por casais homossexuais – não seja um pensamento agradável aos donos do poder, porque obriga ao reconhecimento de que seu poder tem um limite que não é manipulável, bem ao contrário do apelo aos votos recebidos na última eleição. 

Pelo contrário, a arbitrariedade que muitas vezes deriva do apelo ao consenso, como a única medida de convivência política, somente pode ser evitada na medida em que reconhecemos, como critério de justiça, uma instância não constituída por nenhum de nós, o justo por natureza que, como seu nome indica, não foi definido por ninguém e vale para todos indistintamente. 

Pago um tributo para assegurar uma série de serviços essenciais para a vida como um ser social, atributo natural do homem, e não só porque uma lei escrita manda. Se o justo por natureza é sempre baseado numa lei natural, essa lei seria compatível com a democracia? 

Sem reconhecer uma lei natural, a democracia vira ditadura da maioria e a tolerância e a dignidade humana terminam convertendo-se em retórica oca. Convém não esquecer que foi um regime democrático que levou Hitler ao poder. O procedimentos democráticos são importantes, até porque não resultam em meros rituais eletivos, mas não se sustentam sozinhos e tampouco garantem a legitimidade moral de um regime. Isto depende muito mais da salvaguarda do bem humano, algo impossível se não se respeita a lei natural, essa lei não escrita que é chamada a inspirar as leis escritas. 

Arrisco a dizer que a lei natural é mais democrática que a própria democracia, porque o que nos faz iguais é o fato de sermos todos humanos, possuirmos a mesma natureza e reconhecermos a mesma lei não escrita que nos prescreve fazer o bem e evitar o mal. 

Certamente, isso é insuficiente para se constituir um regime político, mas a lei natural impulsiona-nos a concretizar os modos de organização de nossa convivência e, dentre eles, a democracia, o regime mais adequado à igualdade fundamental de todos os homens. 

Entretanto, a democracia também pode corromper-se. Basta que ela atue ignorando os mecanismos que a protegem e evitam que se degenere em tirania: por exemplo, a liberdade de expressão termina quando ela assume um discurso de ódio, que traz consigo, implicitamente, o apelo à violência como forma de solução de um conflito. Posso criticar uma invasão do MST a uma propriedade produtiva, mas o debate democrático deve banir uma opinião que pregue a prisão indiscriminada desses invasores. 

Mas a democracia também se enfraquece quando se afrouxa o compromisso dos cidadãos com o bem humano, como, por exemplo, no caso de promulgação de leis que atentem contra a vida dos mais débeis, como os embriões e idosos tidos como “socialmente inválidos”, ou daqueles que não pensam como o regime, como acontece em muitos países islâmicos. Em suma, em ambos os casos, sempre que uma lei escrita vai de encontro com uma lei natural. 

Sem a lei natural, a democracia pode gerar consensos que matam ou oprimem. A referência à lei natural, no âmbito democrático, permite distinguir entre leis justas e injustas. Cícero já dizia que não existe justiça se não ela não está fundada sobre a natureza, porque se a justiça se baseia sobre um interesse, outro interesse posterior surge e a destrói.  

V - Lei, tolerância e bem humano 

Muito se fala sobre a tolerância, ainda que muitos não tenham uma ideia muito convicta disso. O conceito ocidental está historicamente ligado à Reforma Protestante, utilizado pelo Iluminismo para afrontar os problemas de convivência entre as religiões nos séculos XVII e XVIII, particularmente agudos devido à confusão entre autoridade civil e religiosa. Quando invocamos a noção de tolerância, fazemos a partir desta tradição, mas convencidos de que essa expressão é portadora de algo extensível a todos os homens. 

Independentemente do conceito que se adote – e, em alguns discursos, parece-me um tanto vago, a ponto de ser manipulável – a tolerância pode ser conjugada com a lei natural, a lei não escrita que serve de inspiração para as leis escritas.  

O objeto da tolerância, qualquer que seja sua definição, não é o bom, mas aquilo que se percebe ou se teme como um mau no seio social, o que, necessariamente não é sinônimo daquilo com que antipatizamos por algum motivo. Não gosto de rap, mas essa música não é objetivamente um mau (talvez, no máximo, mau gosto), ainda que algumas letras, ao contrário da maioria, incitem uma espécie de violência simbólica na sociedade. 

Um certo grau de tolerância é necessário para a convivência social, sempre que os males que se toleram não sejam tão graves a ponto de comprometer seriamente o bem comum. Caso contrário, a tolerância, longe de facilitar a integração social, aceleraria sua decomposição. Não cabe tolerar impunemente o terrorismo, porque a violência não é um instrumento político legítimo. Se o diálogo político supõe igualdade, esta fica ameaçada, pois meu oponente está armado. 

No campo da justiça – arbitrariedade, impunidade e mentira – toda capitulação acarreta inevitavelmente o descrédito das instituições e o enfraquecimento dos vínculos políticos entre os atores sociais. Se tiver alguma dúvida, abra o jornal na seção de política e olhe o que se passa no congresso nacional... A corrupção generalizada segue o mesmo exemplo. Se a mentalidade institucional cede em favor do compadrio, do nepotismo e do fisiologismo, a confiança nos poderes públicos vai abaixo. 

Algo similar é visto numa situação em que a verdade é sistematicamente atropelada pela demagogia: o político diz ao povo o que lhe agrada aos ouvidos, com o intuito de ganhar sua adesão ou mesmo desviar sua atenção de outros problemas. Para baixo da linha do Equador, há exemplos para todos os gostos e alguns deveriam pertencer ao anedotário político... 

Uma situação assim não se sustenta a longo prazo, nem mediante o emprego de grandes recursos midiáticos. A lei natural indica o âmbito de tolerância: se uma sociedade atenta sistematicamente contra a lei natural, o resultado é menos tolerância, porque tal fato mina as bases para qualquer diálogo razoável sobre as leis escritas e exclui os princípios que permitem distinguir a justiça e a injustiça das leis e procedimentos adotados pela sociedade. Quando o laicismo propõe banir o discurso religioso da arena pública numa só penada, age intolerantemente contra o próprio homem, porque ele é um ser religioso por natureza. 

A mesma lei natural que tutela a tolerância também deve proteger os demais bens fundamentais, dos quais dependem a integridade humana. Quais são esses bens e como devem ser protegidos? 

Na história do pensamento ocidental, a lei natural sempre aspirou a busca da racionalidade sobre a barbárie, de uma maneira universal e perene, o que é próprio de uma ética. Sua proteção não é como a lei positiva, que dispõe de uma sanção penal, mas sua eficácia depende diretamente do grau de reconhecimento que a ela se atribui e não é preciso ser muito inteligente para perceber que desse reconhecimento depende, em grande medida, nosso próprio bem e o bem comum da sociedade. 

O respeito à própria vida e alheia é uma exigência moral que todos experimentamos em nossa consciência. Nesse sentido, podemos dizer que a lei natural protege o bem da vida humana, porque proíbe, em consciência, negociar com ela ou mesmo manipulá-la como um bem disponível. A lei natural também nos convida a buscar a verdade sobre nós mesmos e a procurar uma convivência social presidida pela paz e pela justiça. 

Parecem princípios muito vagos ou distantes, mas suas implicações práticas são muito concretas. O mundo ocidental alcançou uma formulação escrita de boa parte deles, por meio das declarações de direitos humanos ou dos direitos fundamentais reconhecidos pelas constituições das nações. Todas elas concordam no essencial, embora algumas delas destaquem-se pela generalidade e primor, como a americana, e outras pelo preciosismo e excesso, como a brasileira. 

Se, por um lado, o homem só desenvolve plenamente seus atributos em sociedade, por outro, a sociedade só é plenamente humana quando respeita a natureza do homem, quero dizer, quando escolhe a natureza humana como sua pauta de diálogo e de crescimento.  

VI - Lei, casamento gay e moral 

Hoje, o casamento homossexual e a redefinição de família estão entre as questões mais controvertidas da pauta social. É possível que o Estado reconheça o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com a consequente alteração da ideia de família, sem adentrar em controvérsias morais sobre o propósito natural do casamento e o status moral da homossexualidade? 

Em assuntos como tais, convém ser sereno para não ferir suscetibilidades e, mesmo assim, é o que parece vir à tona toda vez que alguma bandeira do movimento gay é contraposta com argumentos racionais e igualmente ponderáveis no campo das ideias. 

Não adianta. Por falta de uma réplica mais sólida, a histeria toma força e rotula o oponente, no âmbito dos títulos publicáveis, de fundamentalista religioso, tradicionalista intransigente ou de reacionário medieval. Pelo menos, foram os que a minha coleção já recebeu até hoje. Acho que o Homer Simpson tem alguma razão quando fala da tal “conspiração gay”... 

Uma postura responde à pergunta afirmativamente. Com base num argumento liberal, os indivíduos devem ser livres para escolher os parceiros conjugais, quaisquer que fossem eles, com base no estrito afeto mútuo. Vou mais adiante e com uma forte dose de lógica aplicada: o afeto bastaria para aqueles que desejam se casar com duas mulheres ou dois homens; para um pai que queira casar-se com sua filha ou mesmo a mãe em relação ao filho; ou para um irmão que tenha muito afeto pelo outro irmão. 

Não é preciso ir muito além para concluir que a questão não se sustenta com este tipo de argumento, acrítico, porque o problema depende justamente de uma determinada concepção do fim do casamento. E, quando discutimos sobre o propósito de uma instituição social, Aristóteles recorda-nos de que, no fundo, estamos debatendo acerca das virtudes que ela respeita e recompensa. Estamos falando de lei natural.  

A discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo torna-se, logo, um debate sobre o valor dessas uniões, se elas merecem o mesmo reconhecimento que a sociedade confere ao casamento heterossexual. É uma questão moral implícita inevitável. 

Outra resposta defende o direito ao casamento, tentando uma neutralidade sobre o significado moral do casamento, sob o argumento da não discriminação. Tal justificativa, por si só, é insuficiente: se o Estado fosse realmente neutro quanto ao valor moral de todos os relacionamentos sociais, ele não teria fundamentos para restringir o casamento apenas para duas pessoas. A poligamia, a poliandria e o incesto teriam que ser aceitos, salvo se o Estado se abstivesse de outorgar o reconhecimento a qualquer tipo de casamento, uma solução libertária que, hoje, é puramente hipotética. 

Voltemos a Aristóteles: é preciso definir se tais uniões cumprem o propósito natural da instituição social do casamento, num trabalho de justa distribuição de cargos e honrarias. Quando as condutas sexuais passam a ter transcendência pública, o assunto pode e deve ser abordado sob a perspectiva da justiça: os juízes nunca se furtaram ao julgamento dos efeitos patrimoniais e previdenciários das uniões homossexuais, desde que elas começaram a surgir nos tribunais. 

Mas a justiça consiste em dar a cada um o seu, isto é, o seu direito e dar a cada um o seu não significa a dar a todos o mesmo. Quer dizer que, no momento da distribuição “dos cargos e honrarias”, ou seja, dos bens, as diferenças entre umas pessoas e outras devem estar justificadas. Se a convivência entre as pessoas de mesmo sexo deve ser regulada legalmente, isso importa em concluir ser necessária a completa redefinição da instituição do casamento? 

A resposta vai passar – novamente – pela análise do status moral daquelas uniões. Ante as interpretações mais comuns e conflitantes dos fins do casamento – casamento para procriação e casamento para um compromisso exclusivo e permanente – a determinação depende daquele fim que celebra as qualidades que correspondem a uma estrutura antropológica objetiva. 

E não a um interesse localizado, porque, se a justiça não está fundada sobre a natureza, então, está fundada num interesse. E, quando esse interesse torna-se caduco, surge outro e o substitui. Não discriminação e liberdade de escolha não resolvem a questão.  

Muito pelo contrário, criam um beco sem saída. Ou, melhor dizendo, com uma única saída: a saída moral do propósito do casamento, que, ao ter sido expulsa pela porta de entrada do debate, voltou pelo vão da janela.  

VII - Lei, ética e tendências humanas 

Quando se abordam temas controversos, como pena de morte, aborto, liberdade de expressão, laicidade, ou se debatem assuntos que envolvam o agir humano em sociedade, como as regras de trânsito ou o direito de greve daqueles que prestam um serviço público, costumeiramente, faz-se, direta ou indiretamente, uma referência à ética: isso não é ético, aquilo exige uma atitude ética ou a ética foi desrespeitada.  

Toda vez que criticamos uma ação ou uma omissão com base nessa referência, implicitamente, estamos atribuindo uma força normativa à ética. Ou seja, a ética seria uma espécie de manual de instruções, cujos princípios deveriam sempre indicar um ou mais caminhos para nossas ações. Mas onde reside, então, aquela força normativa: na natureza ou na razão? 

Na razão, mas isso não significa que a natureza não tenha nada para contribuir nesse sentido, desde que se precise exatamente o que compreendemos por natureza e, então, poderemos falar de uma ética natural. Muitas vezes, a natureza é vista como um ramo da biologia: esse importante campo do saber contribui em muito para nosso entendimento acerca da natureza, mas ela não se resume a uns processos causais, como essa sequência de aminoácidos que produz aquela proteína ou que a união entre o gameta masculino com o gameta feminino produz o óvulo. 

Tenho a impressão de que nossa razão fica inquieta se não acrescentar uma ideia de sentido para tais processos, independentemente de quais sejam. O saber sobre a natureza não pode se limitar a um saber causal, mas deve apontar o sentido dos processos vitais. 

A referência a um sentido já nos introduz num terreno eticamente relevante. Não consigo enxergar a realidade como um conjunto de fatos vazio de valor e de sentido: o sentido da natureza, de seus processos vitais, é servir à vida boa de todos os seres vivos. As contribuições de Darwin para o pensamento evolutivo acabam por privilegiar o processo sobre a substância e a consequência lógica disso é que o pensamento volta-se para as espécies como se fossem tão somente uns passos adiante numa cadeia evolutiva infinita. 

Mas cada espécie, mesmo no âmbito evolutivo, é um fim para si mesma. Com muito mais razão essa afirmação é aplicável à espécie humana, que não é apenas um fim para si mesma, mas, como sempre nos lembra Kant, cada homem dessa espécie é um fim em si mesmo. 

Resolvida a questão sobre o sentido normativo dessa ética natural, de que maneira ele se harmoniza com as múltiplas tendências humanas?  

As inclinações ou sentidos, como a fome, a sede e o cansaço, por si só, não são suficientes para dirigir uma conduta tão complexa como a humana: estou com muita fome, vou até o restaurante, mas não ponho, no mesmo prato, a entrada, o prato principal e a sobremesa. Sirvo-me em pratos distintos e, depois, alimento-me numa certa sequência. Agir bem, logo, requer introduzir ordem em nossas atuações e desejos e, para isso, devemos perguntar para onde nos levam nossas inclinações naturais, antecipar seus fins e dar o devido valor a cada coisa. 

Isso é obra da razão e praticamos esse processo diariamente: experimentamos a atração sobre um objeto (livro), examinamos e, depois que lhe atribuímos um valor, compramos ou descartamos. Ou mesmo deixamos para ser realizado num outro momento. 

Esse processo, implícito em nossas decisões, demonstra que nossa conduta não está exclusivamente determinada por nossas inclinações e que nossas inclinações levam-nos a propor objetivos nas mais variadas situações. Escolho descansar para terminar uma tarefa e escolho poupar para que meu filho tenha uma boa educação formal. 

Assim, as ações concretas que se elegem com vistas a um fim determinado (descansar e poupar) são um modo de plasmar na ação o próprio fim e são, de certo modo, uma antecipação, por meio daquela ação, do bem escolhido como fim (entrega da tarefa e educação formal).  

Quem descansa para terminar uma tarefa já está terminando sua tarefa e quem poupa para a educação do filho já está possibilitando a formação dele. Desta maneira, a ação humana organiza-se para formar um todo dotado de sentido e para além do império dos sentidos. Com respeito à divergência, é o que penso. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do CEU-IICS Escola de Direito (agfernandes@tjsp.jus.br).

 


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