603 - O papel do Judiciário para a boa governança


JOSÉ HELTON NOGUEIRA DIEFENTHÄLER JUNIOR – Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
 



I.
Muito se tem dito sobre a necessidade da boa governança como meio necessário para o desenvolvimento com Justiça, pois, com efeito, a ideia geral do conceito que fazemos do que deva ser uma administração eficaz resume-se em poucos elementos, que, por sua vez, não esgotam o tema. De um modo genérico seus traços assim se constituem: a) Governo em meio à Liberdade; b) Governo de sociedades plúrimas e multiculturais; c) governar com responsabilidade e sob a tutela de uma Constituição o que valer dizer, sujeitando-se à responsabilização política e judicial; d) Governar com habilidade. Estes aspectos mais gerais relacionam-se à função de governo, mais propriamente, das atribuições administrativas do Poder Executivo. Portanto, quando falamos de boa governança estamos evocando uma concepção mais restritiva no que concerne às competências administrativas que conferem um grau qualitativo a mais no controle constitucional dos governos. Mas, creio que o conceito de que tratamos, isto é, o da boa governança, é restrito a estes conceitos:

 

II. Governo em meio à liberdade

 

O bom governante do século XXI sabe que os paradigmas que informaram as variadas gerações de correntes constitucionais têm presença garantida tanto nos espaços governamentais bem como na sociedade, quer dizer, governo algum se sustentará ou subsistirá se maltratar o direito à liberdade. Claro que não temos aqui oportunidade para discorrer especificamente sobre este tema em particular, que, por si só, requereria exclusivo painel a ele dedicado. Todavia, o bom governo deve resguardar princípios fundamentais – os Direitos do Homem – que nós todos aqui bem conhecemos.

 

III. Governo de sociedades plúrimas e multiculturais

 

Parecem-nos poucos, senão raros os Estados cujos governados pertençam a uma só classe, cultura ou valores. Governar bem significará, por sua vez, nem tanto respeitar apenas a figura da liberdade de consciência, mas conduzir-se de modo a garantir a liberdade das consciências, de vez que o bom governo não deverá instituir ou formar uma linha de opinião para seus cidadãos, mas garantir a convivência da generalidade deles em face da inevitável variedade de opiniões. Provém delas, por sinal, os matizes que afloram da diversidade cultural tão presentes em nosso cotidiano. Entretanto, este mesmo Estado – se bem governado, vedará as tentativas de hegemonia de uns valores sobre outros. Isto se dá quando, por exemplo, suceder casos de ofensas à liberdade de opinião, à de imprensa ou à de informação, à inclusão digital e ao acesso à internet – por fim, de todos os demais direitos fundamentais da pessoa humana.

 

IV. Governar com responsabilidade e sob a tutela de uma constituição

 

Aqui já entramos diretamente no papel do Judiciário para a boa governança. Para isso torna-se necessária uma efetiva jurisdição constitucional. Os controles diretos e difusos da constituição são instrumentos valiosos para a concretização do Direito, logo, da Justiça – sobretudo se os tribunais tiverem legitimidade para a tarefa jurisdicional. Neste passo importantíssimo que os cases – traduzam e sinalizem para a sociedade a sempre pretendida efetividade; – stare decisis – elemento indispensável para a segurança jurídica. Valioso encargo confia-se ao Poder Judiciário. A boa governança se sujeita ao controle judicial. Entretanto, não somente aos juízos de primeira cognição, mas aos de revisão e de supervisão, aos quais cabe a tarefa de garantir o bom desempenho dos governos. As democracias ou se preferirmos, o Estado Democrático de Direito, não se limitam à tripartição (clássica) dos poderes. A democracia de partidos transformou-os em frações de governo, assim como a burocracia (ou a administração) e por último, os Tribunais Constitucionais, ou àqueles que cumpram este papel.

 

Ora, mesmo nos Estados Federais, republicanos ou não, há órgãos jurisdicionais locais responsáveis pelo controle da constituição. Em meu país não é diferente. Somente eles podem evitar a superposição de um partido sobre outro ao implementar, quando acionados, os limites aceitáveis da atuação política, sustentando deste modo o pluralismo político. Por essa razão, esta função dos tribunais tem características de atividade de correção, cujo alcance pode mesmo chegar a evitar a fusão do governo (não permanente) com a burocracia ou Administração (permanente). As mesmas cortes de justiça também desempenharão mais tarefas, tais como a de dar cumprimento às demandas correntes da prestação jurisdicional mais comum. Neste aspecto sem dúvida estes órgãos judiciais fazem par – claro que cada qual nos respectivos âmbitos de competência – com a Administração que responde ao Governo. Ora, o governo, na democracia de partidos, responde à filiação ideológica que o levou ao poder. A Administração cumpre os comandos do governo, mas o Judiciário infraconstitucional obedece à Constituição e aos comandos de eventual decisum superior. Em suma, não deixam de ter os órgãos fracionários do poder judiciário infraconstitucional o dever de fazer cumprir a Constituição sem carregar consigo as naturais inflexões que decorrem do debate político constituído de forma legítima sob um feixe de ideias. Por isso o atuar jurisdicional tem que se afastar deste debate, e manter-se na neutralidade ativa (imparcial porque por força da vocação constitucional, faz com que o poder judiciário aja segundo a Rule of Law e, num segundo momento, teleologicamente, ou seja, sem intentio partidária).

 

Seguindo nesta direção, meu país, a partir da promulgação da Carta da República de 1988, elegeu o Poder Judiciário para cumprir estes encargos – o do atuar como poder de correção por via do controle constitucional e o de exercê-lo nas esferas infraconstitucionais; e mais: a de confiá-lo as variadas legislações de controle.

 

V. Governar com habilidade

 

A experiência brasileira moldada a partir da atual Constituição apoia-se sobre quatro pilares: a) construção e controle da moralidade administrativa; b) a produção de normas para a regulação dos interesses difusos; c) poder que garanta a liberdade e a democracia, que no Brasil é exercido pela Justiça Eleitoral; d) poder de executar com imparcialidade políticas sociais básicas, independentemente do governo de partidos.

 

Compreendemos fundamentais estes quatro pilares.

 

Fizemos uma legislação voltada a coibir condutas de improbidade de agentes administrativos, de políticos, ou de quem quer que seja que tenha praticado desvio de conduta na administração que lhe foi confiada. O Tribunal de Justiça de São Paulo tem milhares de julgamentos em curso outros tantos já encerrados, nos quais políticos e administradores foram condenados ao ressarcimento dos cofres públicos e à perda dos cargos que ocupavam. Dos vinte milhões de processos em curso no Poder Judiciário de São Paulo, 64% deles têm como parte (tanto na figura de réu, quanto na de autor) o poder público.

 

Temos uma legislação que regula o bom desempenho da gestão administrativa no que toca à responsabilidade fiscal. Os gastos, as despesas são largamente vigiadas, acompanhadas quando da execução que são examinadas por controles internos bem como externos, (Conselhos de Contas – impropriamente denominados Tribunais de Contas), e por último, o controle judicial.

 

Temos legislação ambiental em desenvolvimento – e grande número de julgamentos proferidos em Câmara constituída para julgar estas matérias. Temos também a Justiça Eleitoral que garante o Estado Democrático de Direito. E a jurisdição comum aqui no Brasil tem determinado com bastante frequência a dispensação de tratamento médico e fornecimento de medicamentos para quem deles tem comprovadamente, necessidade.

 

Ao Judiciário, confirma-se uma tendência, cada vez mais presente – a do debate democrático concreto. Onde ele se situa? No próprio âmbito do processo dialético em que as partes desenvolvem livremente os argumentos que tem em mãos. Pode-se dizer, então, que a boa governança somente tem sentido na medida em que há atuação judicial.

 

E ainda, no campo da efetividade, nós podemos acrescentar muito mais. Eu acredito que ainda está vívido em todos nós, a palestra proferida pelo Professor Hernando de Soto na última segunda-feira, quando os presentes trabalhos foram abertos. Como se lançasse um desafio para todos, ele enfatizou quão importante é para a democracia e, consequentemente, para a boa governança, que não apenas o Estado, isto é, per se, mas também a comunidade, a sociedade e todos nós, devemos nos empenhar para estabelecer uma Rule of Law direcionada para os cidadãos que estão abaixo da linha da pobreza. Nós não podemos negligenciar a dignidade humana: o ser humano, dentre várias características, se distingue pela habilidade de produzir riqueza e comercializar produtos e serviços.

 

Nesse sentido, acho que nós podemos ser úteis. Ademais, considero importante que a Rule of Law a ser estabelecida não venha de uma fonte ex auctoritate, mas do senso comum das pessoas envolvidas nesta área de interesse. Como o Judiciário de São Paulo tem vasta experiência em julgar e conciliar, nós estamos aptos a contribuir no sentido da efetividade deste projeto, no que diz respeito à jurisdição desses interesses peculiares. Assim, por delegação do Governo brasileiro, e com a autorização do diretor da Escola Paulista da Magistratura (EPM), eu sugiro que comecemos com o projeto de inclusão econômica, que, entre outras coisas, atende ao princípio do acesso gratuito à Justiça, em favor a milhões de pessoas que ainda mantém vivo o espírito da liberdade e da livre iniciativa, e para darmos a eles – o quanto for possível – identidade econômica e legal, principalmente, porque eles dão a vida por tais princípios, como vimos recentemente.

 

Em suma, há quem diga que a história da teoria política caracterizou-se no século XIX pela grandeza do poder legislativo, depois, no século XX pelo fortalecimento (até ao totalitarismo) dos executivos. Nosso século, sem dúvida será marcado pelo fortalecimento do poder jurisdicional.


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