642 - Direito Ambiental e o processo penal. Os crimes ambientais. Adequação e eficácia do processo penal à proteção dos interesses difusos e coletivos

 
FELIPE POYARES MIRANDA [1] - Juiz de Direito

 

 

Sinopse: Este artigo trata da relação entre Direito Ambiental e o processo penal, com enfoque nos crimes ambientais e na adequação e eficácia do processo penal à proteção dos interesses difusos e coletivos.

 

Summary: This article deals with the relationship between environmental law and the criminal procedure, focusing on environmental crimes and the adequacy and effectiveness of the criminal proceedings to the protection of diffuse and collective interests.

 

São Paulo, 7 de abril de 2015.

 

1.1 - Direito Ambiental e o Processo Penal

                           

Sérgio Luis Mendonça Alves[2], anota que aproveitando da inteligência demonstrada por Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira e Ronaldo Sergio Moreira da Silva[3], em artigo publicado em obra coletiva organizada pelo Professor Marco Antonio Marques da Silva, a propósito do que hoje se denomina criminalidade moderna, as garantias constitucionais e sua influência no Direito Penal e Processual Penal, salta aos olhos que não há mais espaço para o romantismo da clássica doutrina penal e processual penal, sem que, entretanto, tenhamos que abdicar de seus pressupostos de garantia.

                           

O mesmo autor, Sérgio Luis Mendonça Alves[4] transcreve o seguinte trecho da obra de Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira e Ronaldo Sergio Moreira da Silva:

 

“(...) O que se deve notar é que a criminalidade da qual aqui se trata, no mais das vezes empreendida por organizações criminosas com ramificações nos mais variados países, não raro acabam por afetar bens jurídicos de pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público, dos mais diferentes Estados nacionais, como o patrimônio (público ou privado), a saúde pública, moralidade e probidade administrativas etc. No tempo do Direito penal tradicional, falava-se em ofensa aos direitos subjetivos do indivíduo; evoluiu-se depois para admissibilidade também dos direitos coletivos e dos bens supraindividuais. Agora se propugna pelo reconhecimento de bens jurídicos universais ou planetários. A ecologia, indiscutivelmente, constitui exemplo patente dessa tendencial globalização dos bens jurídicos. (...)”

                           

Nesse quadro de violações de bens com alcance macrossocial, pluriofensivo, aduz Sérgio Luis Mendonça Alves[5] que se estreita a relação do Direito Ambiental, com o Direito Penal, dando origem a nova disciplina, cujas funções ainda se aproximam de sua utilidade de outrora.

                           

Erika Bechara[6] nos traz excelente artigo sobre a tutela penal e processual penal do meio ambiente:

 

“No Boletim IBCCRIM 53/15, de abril de 1997, os advogados Dani Rudnicki e Salo de Carvalho, comentando o artigo sobre tutela penal ambiental por nós escrito em periódico anterior (Boletim IBCCRIM 49/11, de dezembro de 1996), propuseram um debate mais profundo sobre o tema, pois que indignados com o posicionamento então defendido no sentido de se punir com mais seriedade os delitos praticados contra o meio ambiente, posicionamento este que, segundo os autores, "não se sustenta", eis que condizente com o ultrapassado Direito Penal Máximo.

Acatando a sugestão de debate, colocamo-nos a rebater alguns dos aspectos levantados pelos citados advogados, que, na nossa visão, também não se sustentam.

A existência de uma tutela penal do meio ambiente em momento algum reforça a teoria do Direito Penal Máximo, que preza pela criminalização das mais variadas condutas, perpetradas contra os mais variados bens jurídicos. Muito pelo contrário, a criminalização de ações e omissões contrárias ao ambiente vai ao encontro do atual Direito Penal Mínimo, pois que, se este propugna pela intervenção penal como ultima ratio, i.e., apenas para a defesa dos bens jurídicos mais relevantes, temos que o entorno, sendo um bem mais que relevante, fundamental e imprescindível para o sustento da vida humana na Terra, merece, mais do que qualquer outro bem da vida, a então conclamada proteção jurídica penal.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado está intimamente ligado ao direito à vida e, muito melhor, à dignidade de vida, fundamento da República (art. 3º, III da CF). Como adverte Flavia Piovesan(1), "só existirá sadia qualidade de vida se o meio ambiente for ecologicamente equilibrado, não degradado. Vale dizer, sem a proteção ambiental, não há como cogitar do direito à saúde, e, por sua vez, não há como cogitar do direito a uma vida digna".

Se bem dessa magnitude não merece a atenção e os cuidados do Direito Penal (Mínimo), que bens o mereceriam?

De outro lado, se realmente se pretende combater a existência de uma tutela penal ambiental, é mister que se faça com base em argumentos sólidos e irrespondíveis e não por meio de pseudo empecilhos, tais como o excesso de produção legislativa nesse âmbito, a ausência de vítimas individuais nos delitos dessa ordem e a pouca visibilidade dos danos causados pela ação ou omissão do agente — só para citar alguns dos óbices levantados pelos autores.

É bem verdade que, atualmente, a preservação ambiental encontra-se regulada por uma série de leis esparsas, mas isso não é motivo para espancar de vez a associação do Direito Penal (e demais outros ramos do Direito) com o Direito Ambiental, já que o problema se resolveria pela sistematização de todas essas normas. É, inclusive, por conta disso, que atualmente tramita projeto de lei na Câmara dos Deputados que versa especificamente sobre crimes ambientais.

Quanto ao fato de as vítimas dos delitos ambientais não poderem ser individualizadas, o que se deve à natureza difusa do bem atingido, não vemos como e porquê esse aspecto poderia comprometer a incidência do Direito Penal sobre a matéria, tendo em vista que nem mesmo para o Direito Penal tradicional a determinação da(s) vítima(s) é fator imprescindível para o preenchimento do tipo e penalização do infrator. Tanto é que a Parte Especial do Código Penal de 1940 tipifica diversos crimes vagos — que têm como sujeito passivo uma coletividade destituída de personalidade jurídica —, a se ver pelos arts. 209, 233, 286, 287, etc.

No que tange à pouca visibilidade dos danos causados pelo crime ambiental, temos que este aspecto também não se afigura óbice à tutela penal, haja vista que, devendo o Direito Penal Ambiental voltar-se para prevenção de danos, claro está que sua atuação se dará sempre antes da ocorrência da lesão. Assim, realmente não aplaudimos o Direito Penal meramente repressivo, que atua ato contínuo à lesão ambiental, mas sim um Direito Penal preventivo, que age contra as atividades que tão simplesmente ponham em risco a integridade do entorno. E o art. 15 da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente — por nós enfocado no ensaio citado —, a propósito, instituindo um delito de perigo (concreto), adequa-se fielmente a esta postura.

Isso tudo não bastasse, a existência de uma tutela penal ambiental é exigência constitucional, tendo em vista que o § 3º do art. 225 impõe que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sejam submetidas a sanções penais, administrativas e civis (cumulativamente). Por essa razão, como bem lembra Paulo José da Costa Jr.(2), aqueles que concluem pela inconveniência da intervenção do legislador penal no setor da tutela ecológica, "entendendo como preferível à criação de novos crimes ecológicos a adoção de medidas sociais e administrativas" acabam sendo confrontados — e obviamente vencidos — pela Constituição da República.

Claro que, ao afirmarmos necessária uma tutela penal ambiental, não pretendemos fazer a apologia da pena de prisão, mesmo porque sabemos dos efeitos perniciosos que um sistema carcerário falido e desestruturado como o nosso provoca no indivíduo, fugindo, com isso, dos propósitos reeducativos da pena. Mas o Direito Penal não se resume a privação da liberdade. Tanto é que a Carta Constitucional prevê sanções penais outras que não a privativa de liberdade, tais como a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos (art. 5º, XLVI), todas elas muito mais eficientes na reestruturação de caráter do preso e na mitigação — para a sociedade — dos efeitos de sua conduta. Antes, portanto, de opormo-nos à criminalização das práticas comprometedoras do entorno, preferimos seguir as diversas vozes que, no mundo todo, clamam pela humanização das penas e pela aplicação de penas alternativas. É dizer que ao invés de propugnar que o Poder Legislativo descriminalize as condutas atentatórias ao ambiente, devemos lutar para que ele viabilize a aplicação das penas não restritivas de liberdade para os crimes ambientais.

Vale consignar, por fim, que concordamos com os autores que a tutela do meio ambiente merece atenção de outros ramos do Direito, de sorte que a preservação do entorno seja praticada, também, por outras vias. Só não podemos deixar de esclarecer para os menos avisados que a responsabilidade civil por danos ambientais, diferentemente do que colocam, é, sempre e sempre, objetiva, na modalidade do risco integral, conforme disposição expressa na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (art. 14, § 1º) e disposição implícita — porém inequívoca — da própria Constituição (art. 225, § 3º).

A responsabilidade subjetiva do art. 159 do Código Civil de há muito foi deixada de lado pelo Direito Ambiental, de sorte que a sua utilização, bem ao contrário de promover a adequada tutela do meio ambiente, acaba por inviabilizá-la.

De resto, só podemos dizer que o Poder Público e a coletividade têm o dever de lançar mão de todos os recursos possíveis e cabíveis para manter intacto o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E se o Direito Penal pode auxiliar-nos nessa empreitada, é óbvio que não devemos furtá-lo de bem desempenhar essa sua tão nobre missão”.

                           
1.2 - Os crimes ambientais

Luiz Regis Prado[7] nos traz interessante artigo sobre os crimes ambientais:

 

“É cediço que o escopo imediato do Direito Penal contemporâneo reside na proteção de bens jurídicos — sejam esses de caráter individual ou coletivo. Isso vale dizer: não há infração penal sem lesão a um bem jurídico. Todavia, essa função primeira deverá nortear-se por determinados princípios penais fundamentais, dentre os quais se destacam o princípio da liberdade e dignidade da pessoa humana — enformador de todos os demais —, da reserva legal, da culpabilidade, da intervenção mínima, da fragmentariedade, da proporcionalidade, da insignificância e da personalidade e individualização da pena, entre outros. Desse modo, faz-se mister que qualquer intervenção legislativa em matéria penal se encontre sempre alicerçada nesses princípios de garantia, verdadeiros pilares edificadores de um Estado de Direito democrático e social.

O ambiente ecologicamente equilibrado é, sem dúvida, um bem jurídico-penal portador de substantividade própria, erigido pelo texto constitucional como direito fundamental da pessoa humana (art. 225, CF). Estampado na Constituição Federal — ponto jurídico-político de referência obrigatória em tema de injusto penal — como valor digno de tutela, a efetiva proteção do ambiente exige a observância das linhas mestras já mencionadas, que figuram como limites infranqueáveis à atividade punitiva do Estado (cf. Luiz Regis Prado, "Bem Jurídico-Penal e Constituição", pp. 65 e segs., SP, RT, 1997).

Não obstante, verifica-se que vários dos dispositivos da recente Lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente) colidem frontalmente com essas regras garantistas, o que compromete sobremaneira sua legitimidade e eficácia. E isso porque, antes de considerar diretivas de natureza exclusivamente ambiental (v.g., prevenção e reparação do dano ambiental) deveria o legislador na tutela penal do ambiente se preocupar em respeitar, de modo estrito, os postulados acima gizados. À norma constitucional — hierarquicamente superior — cabe assegurar a unidade material de sentido da legislação ordinária subjacente, que não pode ser de forma alguma elaborada sem tomar em consideração tais linhas substanciais prioritárias. O legislador infraconstitucional, a pretexto de garantir o bem jurídico ambiente, ignorou os referidos critérios basilares, que se consubstanciam em esteio da ordem política e da paz social. Embora reconhecida a magnitude social do ambiente enquanto bem jurídico autônomo, sua proteção penal deveria ter-se efetuado em total consonância com os preceitos de garantia epigrafados no texto magno.

De fato, a lei dos crimes ambientais é pontilhada por violações às mais elementares diretrizes constitucionais penais. Afronta-se o princípio da legalidade dos delitos e das penas (art. 5º, XXXIX, CF; art. 1º, CP), sobretudo na sua vertente taxatividade/determinação, em vários dos tipos penais albergados na Lei nº 9.605/98. Com efeito, o legislador de 1998 é pródigo no emprego de conceitos amplos e indeterminados — permeados, em grande parte, por impropriedades lingüísticas, técnicas e lógicas —, o que contrasta com o imperativo inafastável de clareza, precisão e certeza na descrição das condutas típicas. Nessa trilha, é de acentuar-se que a previsão de modalidade culposa para a conduta ancorada no art. 40 — causar dano direto ou indireto a unidade de conservação — denota sensível enfraquecimento da função de garantia do tipo penal, já que a noção de dano indireto culposo é altamente nebulosa (Luiz Regis Prado, "Crimes Contra o Ambiente", SP, RT, no prelo). De semelhante, a incriminaçao prevista no art. 68 vale-se de termos imprecisos, conferindo ao intérprete vasta margem de discricionariedade (o que se entende por "obrigação de relevante interesse ambiental"?).

Também o tipo legal do art. 54, caput, revela-se de grande amplitude e incerteza, com cláusulas normativas de cunho valorativo, que estão muito aquém das exigências do princípio da legalidade (v.g., poluição "de qualquer natureza", "em níveis tais", destruição "significativa"), e que, aliás, ocasionou a revogação tácita de vários dos preceitos que outrora disciplinavam a matéria (arts. 270, 1ª parte, 252 e 271, CP; art. 38, LCP e art. 15, Lei nº 6.938/81).

A propósito, recentemente, o Decreto nº 2.661/98, ao traçar normas de precaução relativas ao emprego do fogo em práticas agropastoris e florestais, determina que o descumprimento dos preceitos que o integram, bem como das exigências e condições instituídas em razão da aplicação de suas normas, "sujeitará o infrator às penalidades previstas nos artigos 14 e 15 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, e na Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998". O fato de esse dispositivo reportar-se a artigo claramente revogado nada significa se comparado ao seu conteúdo de atentado ao princípio da legalidade — que sanciona para a matéria penal uma reserva absoluta de lei —, posto que criminaliza toda a matéria contida no citado diploma. Cuida-se, portanto (art. 25 do Decreto nº 2.661/98), de norma inconstitucional.

Convém destacar, nesse passo, que a nova lei dos crimes ambientais é marcada por seu caráter altamente criminalizador e, ao mesmo tempo, por uma ligação por demais estreita com a disciplina administrativa. Desse entrecruzamento resulta que foram erigidos à categoria de delitos numerosos comportamentos que, a rigor, não deveriam passar de meras infrações administrativas ou de contravenções penais. Exemplos emblemáticos dessa clara violação aos postulados da intervenção mínima e da fragmentariedade são os arts. 30, 34, 42, 44, 49, 52 e 60 da Lei nº 9.605/98, dentre outros. Assim, o tipo insculpido no art. 49 não deveria passar — quando muito — de infração administrativa. Há evidente e inconcebível exagero do legislador, que chega ao ponto de criminalizar, por exemplo, o dano culposo provocado em uma planta ornamental (v.g., tulipa, orquídea) em lugar público ou privado, o que em muito contribui para a ineficácia da tutela penal da flora.

Insta acentuar, por oportuno, que a intervenção penal em matéria ambiental deve cingir-se, prima facie, a uma função subsidiária da disciplina administrativa. A sanção penal é a ultima ratio do ordenamento jurídico, o que significa que apenas as hipóteses de atentados graves ao bem jurídico devem ser tipificadas (cf. Luiz Regis Prado, "Direito Penal Ambiental", pp. 52 e segs., SP, RT, 1992).

Sobreleva registrar, ainda, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, enunciada pela Lei nº 9.605/98 (art. 3º), constitui exemplo claro de responsabilidade penal objetiva, incompatível com os rígidos ditames dos princípios constitucionais penais (v.g., personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima) que regem o ordenamento jurídico pátrio. Demais disso, a ausência de indicação taxativa de quais delitos são passíveis de serem imputados ao ente coletivo configura flagrante transgressão ao princípio da legalidade dos delitos e das penas (cf. Luiz Regis Prado, "Crime ambiental: responsabilidade penal da pessoa jurídica?", Boletim IBCCRIM 65/02).

Ainda nessa trilha, cabe salientar que em muitos de seus dispositivos a Lei nº 9.605/98 não obedece à necessária relação de proporcionalidade entre a sanção penal cominada e a magnitude da lesão ao bem jurídico, representada pelo injusto penal. Corroborando essa afirmação, é de observar-se que a produção de qualquer dano — ainda que indireto — em Unidade de Conservação é punida com pena de reclusão, de um a cinco anos (art. 40, caput), enquanto que a completa destruição de floresta nativa, por exemplo, prevê pena de detenção, de três meses a um ano, e multa (art. 50). Agregue-se, à guisa de exemplo, que a pena abstratamente prevista para a conduta de penetrar em floresta de preservação permanente conduzindo instrumento próprio para exploração de produto florestal (art. 52) — a saber, detenção, de seis meses a um ano — em nada difere daquela cominada para a efetiva extração de areia ou cal da mencionada floresta (art. 44) — conduta essa sabidamente geradora de graves desequilíbrios ecológicos. Ademais, no âmbito dos crimes contra a fauna, tem-se que se o agente exporta, sem autorização, peles e couros de anfíbios e répteis em bruto, incorrerá nas penas do art. 30 — a saber, reclusão, de um a três anos, e multa. Entretanto, se exporta produtos e objetos oriundos dos citados exemplares da fauna (bolsas confeccionadas com couro de réptil, por exemplo), sem a devida licença, permissão ou autorização, sua conduta será sancionada com detenção, de seis meses a um ano, e multa (art. 29, § 1º, III).

É de notar, ademais, que não andou bem o legislador de 1998 ao incluir a matéria nuclear no âmbito dos delitos contra o meio ambiente de modo genérico (arts. 55, 56 e 67). Na verdade, os delitos relativos à energia nuclear, pela sua grande especificidade e pela extrema gravidade que encerram — com atentados a bens jurídicos fundamentais, como vida, saúde pública, integridade corporal e ambiente —, ficariam melhor se alocados em lei específica, já que exigem também proporcionalmente ao desvalor da ação e do resultado uma sanção penal mais severa.

Frise-se, destarte, que em lugar do clássico e lacônico "revogam-se as disposições em contrário" (art. 82), deveria o legislador ter indicado expressamente a matéria objeto de revogação — mormente em sede ambiental, dada a enorme quantidade de leis esparsas —, em nome dos princípios da codificação e da segurança jurídica. Assim, seriam afastados posicionamentos doutrinários díspares a respeito da vigência de determinados dispositivos.

De resto, e para remate dessa breve digressão, é impressionante constatar a facilidade com que o legislador brasileiro transgride princípios elementares, verdadeiros pontos nodulares do Estado de Direito, em seu afã (inglório!) de querer tudo solucionar pela via criminal.”

                           

Cito também o seguinte artigo, de autoria de José Carlos Meloni Sicoli [8]:

 

“A questão ambiental tem merecido amplo destaque na agenda internacional, partindo da constatação de que o desenvolvimento econômico e social, imprescindível à civilização moderna, está sendo alcançado à custa de acelerada, e em alguns casos irreversível, degradação dos recursos naturais, com perda de qualidade de vida e pondo em risco, em alguns casos já comprovados, a própria sobrevivência humana em certas localidades do planeta.

Situações graves como a desertificação de grandes regiões desmatadas, a transformação de rios importantes em corredores de esgotos a céu aberto, as chuvas ácidas resultantes da poluição do ar, causando a destruição da vegetação natural e a contaminação das águas, o uso imoderado de agrotóxicos, contaminando os alimentos, a crônica escassez de água potável e inúmeras outras similares, servem para dar a exata dimensão do problema, ao mesmo tempo em que evidenciam a quase total ineficácia dos mecanismos jurídicos destinados ao controle das atividades causadoras de degradação ambiental.

Com base nesta preocupante realidade e na própria Constituição Federal que reconhece como direito fundamental do cidadão o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, estabelecendo a sujeição, dos responsáveis pelas condutas e atividades ao mesmo lesivas, a sanções penais, administrativas e civis, lançando mão, assim, da ultima ratio, ao convocar o Direito Penal na busca de dar efetividade à proteção deste valioso bem jurídico.

Nessa esteira advém a nova Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente, tutelando, em suas várias figuras típicas, não apenas a fauna, a flora ou outro valor ambiental em si considerado, mas o direito da presente e das futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.

Este o traço fundamental do novo diploma legal, o que o justifica, mesmo sob a ótica da atual doutrina do Direito Penal mínimo, preconizando que sua intervenção deva ser reservada exclusivamente para a defesa dos bens jurídicos mais relevantes para a vida em sociedade.

 

Da responsabilidade penal da pessoa jurídica e a responsabilidade individual

 

A maior inovação contida na Lei nº 9.605/98, e que tem seu fundamento na Constituição Federal, é a responsabilidade penal da pessoa jurídica pelos atos de degradação ambiental cometidos por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade (art. 3º), sem excluir, evidentemente, a responsabilidade individual das pessoas físicas autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.

Trata-se de verdadeira revolução no Direito Penal pátrio, tradicionalmente edificado em torno da responsabilidade individual e no princípio da intranscendência.

O texto legal peca ao deixar de estabelecer regras processuais mais claras e definidas quanto ao rito e procedimentos processuais nos crimes atribuídos à pessoa jurídica, o que exigirá, além do natural emprego das normas processuais penais, a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.

As penas aplicáveis à pessoa jurídica, por óbvio, não serão as privativas de liberdade, mas as de multa, restritivas de direitos e prestação de serviços à comunidade (arts. 22 e 23), com possibilidade, inclusive, de liquidação forçada, na hipótese extrema de se constatar a constituição ou utilização da pessoa jurídica com o fim preponderante de praticar crimes ambientais (art. 24). É a "pena de morte da pessoa jurídica".

No tocante à responsabilidade do agente causador do dano ambiental, ficou evidenciada a preocupação em se dar preferência à substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito ou por prestação de serviços à comunidade, com ênfase a atividades voltadas para o meio ambiente, inclusive na imposição das condições em caso de concessão do sursis.

 

Da reparação do dano e as infrações de menor potencial ofensivo

 

A reparação do dano ambiental recebeu atenção especial, exigível como condição prévia para a transação do art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, bem como para a declaração de extinção da punibilidade, nas hipóteses de aplicação do art. 89 do mesmo diploma legal.

A lei ainda estabelece que a sentença penal condenatória fixará o valor mínimo para a reparação dos danos, considerando o prejuízo sofrido pelo ofendido ou pelo meio ambiente.

Importante atentar para a coincidência de objetivos entre a legislação penal e a civil, relativamente à reparação do dano, com a possibilidade, especialmente em se tratando de dano ambiental considerado de pequena monta e de simples apuração, do equacionamento da questão na esfera penal, com base na Lei nº 9.099/95, sem a necessidade, pois, da propositura da correspondente ação civil pública.

 

Dos crimes em espécie

 

No que diz respeito às condutas tipificadas pela Lei nº 9.605/98, atualizou-se dispositivos já contemplados em textos legais que tratavam de forma esparsa da questão ambiental, com a transformação de algumas contravenções em crimes, criando-se algumas novas figuras delitivas.

Abandonou-se o exagerado rigor do anterior Código de Caça, que impunha sanções severas e considerava inafiançáveis os delitos contra a fauna silvestre. Se destacam o combate ao comércio de animais, à exportação de peles e couros de anfíbios e répteis e à introdução descontrolada de espécime animal no País. A contravenção de maus tratos contra animais passou a ser crime, com a punição de todo ato de abuso praticado contra animais silvestres, domésticos ou domesticados, o que reforça a posição contrária à realização de rodeios, ocasião em que o emprego de instrumentos como sedem e esporas submetem os touros e cavalos a desconforto e incômodo.

A pesca predatória, principalmente com o uso de explosivos ou substâncias tóxicas, passou a ser sancionada com pena de reclusão (de 1 a 5 anos).

Na seção dos crimes contra a flora, basicamente foram repetidas as contravenções do Código Florestal, agora consideradas crimes, com destaque para as florestas de preservação permanente, mesmo que em formação (definidas nos arts. 2º e 3º da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965 - Código Florestal); para as matas e florestas em geral, nas quais se insere a reserva florestal legal (art. 16 do Código Florestal), e para as Unidades de Conservação, cujo elenco é trazido no § 1º do art. 40. A motosserra, instrumento principal com o qual se promove desmatamentos, continua controlada e a sua comercialização ou emprego sem o devido registro no Ibama, configura o crime do art. 51. O incêndio em matas ou florestas é o crime mais severamente apenado na nova lei, e os "balões", reconhecidos como perigosos não apenas às florestas mas também às áreas urbanas e a qualquer tipo de assentamento humano, estão definitivamente proibidos (art. 42).

A Seção III cuida de toda espécie de poluição que resulte ou possa resultar em danos à saúde humana ou que provoque mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Especial destaque para a poluição atmosférica que cause danos diretos à saúde da população (dispositivo que possibilitará combate mais efetivo à prática da queima da palha de cana-de-açúcar), para a poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público, para os resíduos industriais e o emprego e destinação de produto ou substância tóxica, notadamente as nucleares ou radioativas.

O Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural, que integram o meio ambiente cultural ou artificial, estão contemplados na Seção IV, onde se encontram as punições para condutas contra bem especialmente protegido, arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei. Da mesma forma, mereceram atenção edificações ou locais especialmente protegidos por lei em razão do valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, quando houver indevida alteração do aspecto ou estrutura, bem como construção em solo não edificável ou no seu entorno.

Os pichadores e grafiteiros responderão, a partir de agora, pelo crime do art. 65.

Finalmente, são tipificadas condutas contra a administração ambiental, com a imposição de sanções penais aos funcionários públicos que atuarem de modo inadequado nos procedimentos de autorizações e licenciamentos ambientais, bem como a quem deixar de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental ou ainda atuar obstando ou dificultando a ação fiscalizadora do poder público no trato de questões ambientais.

No capítulo seguinte, a lei traça as regras do processo administrativo para apuração de infração ambiental, prevendo o rito a ser seguido e as penalidades aplicáveis, inclusive a multa, que pode atingir a impressionante soma de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais).

 

Conclusão


Esta, em rápida abordagem, a nova Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente, já duramente criticada por muitos, mas com muitas virtudes, representando importante avanço no trato da questão ambiental no País, podendo receber aperfeiçoamentos com o correr do tempo.

Sua edição, apesar das ressalvas, vem em boa hora e reafirma o propósito da implantação definitiva da cidadania plena entre nós. Sua implementação, especialmente no que diz respeito aos dispositivos penais, incumbe precipuamente ao Ministério Público, detentor da titularidade da ação penal pública.

Do poder público, especialmente dos órgãos competentes para licenciamento e fiscalização ambiental, também se espera nova postura diante da questão, cumprindo de maneira eficiente e decidida seu papel de implantação de políticas adequadas à compatibilização do desenvolvimento e à preservação do meio ambiente.

Enfim, o esforço deve ser de todos para que a sociedade brasileira finalmente veja a questão ambiental sair do acadêmico ensaio retórico, passando às ações concretas e eficazes, de modo a se garantir qualidade de vida a esta e às gerações que ainda estão por vir.”

 

1.3 - Adequação e eficácia do processo penal à proteção dos interesses difusos e coletivos

                           

Rosana Ribeiro da Silva[9] aborda muito bem a questão da adequação e eficácia do processo penal à proteção dos interesses difusos e coletivos, no artigo que segue:

 

“Os riscos sempre fizeram parte da existência humana em sociedade. Todavia, antes do advento da Revolução Industrial, os riscos eram tidos e sentidos pela coletividade como oriundos de fatores externos e estranhos a ela. Assim, ou se referiam a eventos naturais ou a contato belicoso com outras comunidades.

Com a evolução tecnológica, enquanto se minimizavam riscos externos, como doenças e catástrofes naturais, numa contradição apenas aparente, a sociedade humana passou a se expor a uma carga cada vez maior de riscos originados naquela mesma evolução tecnológica. Riscos estes inversamente proporcionais às facilidades decorrentes do desenvolvimento científico.

Vivemos hoje em tempos de globalização, cujas principais causas são a aceleração dos ritmos de abertura econômica, dos intercâmbios de mercadorias e serviços; a liberalização dos mercados de capitais; e a revolução das comunicações e da informática, que veio a conectar o tempo real com o espaço. Também os riscos se globalizaram. Se de inicio os riscos eram pessoais,  durante a Idade Moderna Clássica os riscos assumiram uma nova dimensão, passando a atingir não mais indivíduos, mas antes coletividades; agora, na sociedade pós-moderna em que vivemos, os riscos passaram a poder potencialmente atingir a toda a sociedade humana.

O risco passou mesmo a fazer parte integrante de qualquer atuação humana numa sociedade globalizada. Nos dias de hoje o homem passa a ter de atuar sobre o mundo sem poder dispor de antemão de normas seguras ou conceitos fixos sobre a natureza correta de suas ações, ou seja, caso queira ele atuar sobre a realidade, deverá fazê-lo com risco.

Assim, a evolução da sociedade humana fez com que transcendesse ao individualismo liberal para ingressar numa fase de necessária limitação da conduta do homem em prol de bens jurídicos maiores, quais sejam, aqueles pertencentes não a um indivíduo particularmente considerado, mas antes a uma coletividade deles.

Por conseguinte, a humanidade vive hoje cada vez mais na denominada sociedade de risco, entendida como aquela na qual se vislumbra uma orientação à prevenção e controle das fontes de perigo, bem como a minimização dos riscos. Tal realidade vem criando contradições que não podem deixar de ser consideradas pelo Direito. Conforme leciona Feijoo Sánche, embora não se constitua em fim ou função primordial do Direito Penal a manutenção da confiança dos jurisdicionados na vigência da norma, não podemos negar que esta seja uma das funções do Direito e, por consequência, do Direito Penal, que se constitui em ultima ratio do ordenamento jurídico. Isto, pois a confiança depositada pelos jurisdicionados na obediência das normas por parte dos outros, é um efeito empírico da existência das normas de conduta e, principalmente, das normas sancionadoras.

Diante das alterações que a realidade vem sofrendo na atual globalizada sociedade de risco, é de todo compreensível que o ordenamento jurídico anseie pelo aumento exponencial dos bens jurídicos a serem tutelados. Todavia, os deveres de cuidado correspondentes não comportam sujeição ao mesmo fenômeno de multiplicação, sob pena de deixarem aquelas normas de conduta de ter relevância, passando a ser regra geral o seu desrespeito, e não o seu acatamento. Isto ocorre pois a interiorização por parte dos jurisdicionados de novas regras de conduta sempre dependeu do fator tempo. É a relevância atribuída pela sociedade a um bem jurídico que o torna suscetível de tutela penal. Somente os bens jurídicos entendidos como bens jurídicos penais possibilitam a sua tutela através do Direito Penal. Assim, pelo pensamento dominante é que, como bem nos explica Jorge de Figueiredo Dias, se por um lado temos a restrição da tutela penal a bens jurídicos penais, e por outro temos a subsidiariedade desta tutela, a conclusão natural a que devemos chegar é de que o Estado e seus aparelhos de controle da criminalidade devem intervir o menos possível, e na medida exata para possibilitar a manutenção do funcionamento da sociedade.

Todavia, a ruptura do paradigma de proteção de bens individuais e sociais a que se destina o Direito Penal, e o entendimento tradicional de que o Direito Penal se constitui ultima ratio legis (princípio da intervenção mínima), não poderiam deixar, em confronto com a atual realidade globalizada, de fazer emergir novas teorias que tenham por fim possibilitar a tutela penal de interesses que transcendam ao individualismo tradicional.

Uma teoria é a que prega um Direito Penal funcionalizado, ou seja, aquele que objetivaria a tutela por antecipação dos grandes riscos a que está e estará sujeita a humanidade. Por esta teoria é indispensável que haja uma aceleração do processo legislativo para criação de normas penais, o que certamente implica numa hipertrofia legislativa. Fenômeno este que estamos presenciando nos dias que seguem.

Outra teoria propugna pela fragmentação do poder punitivo do Direito Penal, através da transferência de uma parcela daquele a um Direito Administrativo ao qual se atribui poder sancionador. Competiria a este Direito Administrativo Sancionatório a punição de condutas que, inicialmente insignificantes para o Direito Penal tradicional, quando adquirem uma dimensão coletiva, passam a representar a possibilidade de geração de danos massificados, de ampla abrangência. Ou seja, condutas, que de início irrelevantes, tenham o condão de adquirem uma potencialidade de destruição em massa, tanto espacial quanto temporal, capazes de afetar populações inteiras, presentes e futuras. Como que buscando um equilíbrio possível entre aquelas teorias, Renato de Mello Jorge Silveira propugna que seja deixado ao Direito Penal a reprovabilidade de condutas estritamente reprováveis, devendo se deslocar as demais questões para outras áreas do Direito.

 

2. Bem Jurídico Penal

 

É entendimento majoritário na doutrina penal nos dias de hoje que é missão do Direito Penal a proteção da sociedade, que se dá através da proteção dos bens jurídicos, entendidos estes como os interesses sociais que por sua importância mereçam a proteção do Direito.

É, assim, função do Direito Penal a proteção de bens jurídicos. Todavia, nem todos os bens jurídicos devem ser protegidos pelo Direito Penal, mas somente aqueles tidos pela sociedade como os mais relevantes. A estes denominamos bens jurídicos penais.

A indicação de quais sejam estes bens jurídicos de relevância penal está a cargo do legislador, como representante que é da sociedade, a quem incumbe identificar aqueles objetos da realidade que são por ela valorados como bens jurídicos merecedores de regulamentação jurídico-penal.

Das várias conceituações ofertadas pela doutrina sobre o que venha a ser bem jurídico penal, ressaltamos aqui a criada por Polaino Navarrete, que entende bem jurídico como bens e valores mais consistentes da ordem de convivência humana em condições de dignidade e progresso da pessoa em sociedade.

Na doutrina nacional, grandemente influenciada pela doutrina italiana, temos que bem ou interesse jurídico é tudo aquilo que seja capaz de satisfazer a uma necessidade humana.  Todavia, desde a década de 80 o conceito de bem jurídico vem sofrendo grandes alterações, donde a correção da percepção de Figueiredo Dias de que talvez jamais venha a converter-se em um conceito fechado. Isto porque, por óbvio, o direito é dinâmico, constituindo-se em um sistema aberto e não fechado.

Gianpaolo P. Smanio, após estudo sobre o desenvolvimento histórico da conceituação de bem jurídico penal, em sua obra Tutela Penal dos Interesses Difusos, tendo por base uma perspectiva sistêmico-social, conceitua bem jurídico como “um objeto da realidade que constitui um interesse da sociedade para a manutenção de seu sistema social, protegido pelo direito, que estabelece uma relação de disponibilidade, por meio da tipificação das condutas”. Quatro são os princípios que possibilitam a identificação de quais bens jurídicos devam ser tutelados pelo Direito Penal. O primeiro é o princípio da lesividade, segundo o qual é indispensável para a tutela penal de um bem jurídico a comprovação da lesão efetivamente sofrida por este, sem a qual não será possível a aplicação de qualquer sanção pelo Estado ao seu ofensor. O segundo é o princípio da intervenção mínima, pelo qual o Direito Penal somente deverá atuar na proteção de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não possam ser eficazmente tutelados por outros ramos do direito. O terceiro princípio é o da fragmentaridade, segundo o qual somente agressões e ataques socialmente intoleráveis a bens jurídicos de extrema relevância os sujeitam a tutela penal. O quarto e último princípio é o da subsidiaridade, pelo qual o Direito Penal é remédio extremo, somente utilizável quando a atuação de qualquer outro dos ramos do direito, como o Direito Civil ou Administrativo, se quedar insuficiente.

 

3. Bens Jurídicos Supra-Individuais

 

Com dito neste trabalho, vivemos nos dias de hoje em sociedades ditas de risco, em decorrência das quais novos bens jurídicos vêm se consubstanciando: os denominados bens jurídicos supra-individuais ou metaindividuais, que, como o próprio nome indica, transcendem ao individual.

A expressão “interesses metaindividuais”, ou a sinônima “supra-individuais”, inclui em seu bojo duas espécies distintas de interesses: os interesses públicos e os interesses coletivos lato senso.

Os interesses coletivos lato senso se dividem em: interesses individuais homogêneos, interesses coletivos estrito senso, daqui por diante denominados unicamente por interesses coletivos, e interesses difusos. Estudemos resumidamente cada um desses conceitos.

João Batista de Almeida, baseado no magistério de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, conceitua direitos individuais homogêneos como “os vinculados a uma pessoa, de natureza divisível e de titularidade plúrima, decorrentes de origem comum”. Ressalta o autor que tais direitos são tipificados pela homogeneidade, donde serem “iguais ou idênticos para todos os interessados e decorrerem de origem comum”. Como exemplo de interesse individual homogêneo temos a ação civil pública movida perante a 1ª Vara Federal de São Paulo, pela OAB – Seção de São Paulo, concernentes aos contratos de leasing de automóveis com prestações vinculadas à variação cambial. O pedido consistia determinar que as instituições financeiras rés emitissem novos boletos onde as parcelas passariam a ser corrigidas pela variação do INPC. Os direitos ali a serem tutelados são inquestionavelmente individuais, todavia possuem inegável origem comum, qual seja, o mesmo tipo de contrato, o que possibilita a sua defesa em juízo na modalidade coletiva.

Para Péricles Prade são direitos coletivos aqueles “perseguidos através do processo associativo, conatural ao homem (família, cooperação profissional, empresa, sindicato)”. Ou seja, “são interesses comuns a uma coletividade de pessoas e apenas a elas” que repousam sobre “vínculo jurídico definido que as congrega”. Temos como exemplo, além dos já indicados: a sociedade comercial, o condomínio, associação de pais, etc.

Ainda quanto ao conceito de direitos coletivos, Celso Bastos os conceitua como aqueles “afetos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membros de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre os indivíduos e o Estado”, dentre os quais se pode notar a existência de “um vínculo jurídico básico (...) que une todos os indivíduos”.

Como exemplo temos a ação civil público ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra a cobrança indevida de taxa de iluminação pública, de cujo julgado constava que, ademais de os interesses pertinirem a pessoas naturais, quando visualizados em conjunto transcendem à esfera dos interesses puramente individuais para se constituir em interesses da coletividade como um todo. Direitos difusos, no magistério de Péricles Prade são aqueles “titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situações, passíveis de lesões disseminadas entre todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num quadro abrangente de conflituosidade”. Para Mazzilli direitos difusos são "interesses indivisíveis de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático muito preciso". A indivisibilidade de tais interesses diz respeito ao seu objeto, que não pode ser quantificado e distribuído entre os membros da coletividade.

Como exemplos de interesses difusos temos: habitar a mesma região, consumir o mesmo produto, viver sob determinadas condições sócio-econômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos, etc.

Caso prático que melhor possibilita a compreensão do que seja interesse difuso é o da apelação nº 41.630/5-00, da Vara da Infância e Juventude do Foro Regional de Pinheiros, Comarca da Capital, que foi julgada pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2.7.98. Dizia respeito ao condicionamento da matrícula de crianças menores de seis anos de idade à existência de vagas. Tal condicionamento foi afastado em vista a obrigação de criação de vagas pelo Estado para atender a todas as crianças.

Necessária se faz, ainda, a distinção entre interesses difusos e interesses públicos. Como muito bem disse Miguel Teixeira de Sousa, “interesses públicos correspondem aos interesses gerais de uma colectividade, mas abstraem dos interesses individuais que são satisfeitos; (...) os interesses difusos são sempre interesses que estão a satisfazer necessidades efectivas de cada um dos membros de uma classe ou de um grupo”. Exemplifica o mesmo autor: “os interesses difusos dos consumidores ou dos habitantes de uma região não podem ser pensados sem as utilidades que eles concretamente atribuem àqueles consumidores ou habitantes”. O que não ocorre na hipótese de interesses públicos.

O interesse público, sendo um interesse geral, se consubstancia como interesse próprio do Estado e apresenta uma conflituosidade mínima, posto pressupor consenso coletivo. Havendo conflito, este se expressa na perspectiva clássica do indivíduo contra o Estado.

Podemos exemplificar como interesses públicos ou gerais os seguintes: as garantias individuais e sociais fundamentais, a segurança pública, a moralidade administrativa, a qualidade de vida, a harmonia da família, o pleno emprego, a educação, a paz, etc. Vários autores nos brindam com claras explicações acerca das características dos interesses difusos. Vejamos as principais identificadas pelos autores:

A primeira característica é a pluralidade de titulares em um número tal que não possibilita a identificação de todos individualmente. A inexistência de vinculação jurídica entre os titulares dos interesses difusos impossibilita a individualização e identificação daqueles.

Outra característica é a indivisibilidade do bem jurídico difuso, pois o objeto da realidade que o constitui não comporta partilha entre os seus titulares, pertencendo como um todo a todos eles em igual medida, mas não comportando atribuição exclusiva a nenhum de seus titulares. No dizer de Cappelletti, interesse difuso é aquele que “pertence a todos e a ninguém”.

As duas características seguintes são de todo complementares. Uma delas é a ausência de vínculo associativo que aglutine os titulares do interesse difuso. A segunda característica é a existência de vínculo fático a unir os titulares do direito difuso. Assim, apesar de não existir uma vinculação jurídica que unifique os inumeráveis titulares de um interesse difuso, conglomerando-os em uma massa identificável de indivíduos, entre eles existe uma vinculação fática, consistente no simples fato de que todos o são do mesmo bem jurídico (EX: propaganda que não seja enganosa).

Quinta característica é a potencial e abrangente conflituosidade. Como o direito difuso possui uma titularidade plúrima, a sua lesão leva ao surgimento de uma desavença envolvendo um número por vezes indeterminável de indivíduos, não raro contrapondo interesses de massa ou de grupos sociais diversos. Assim, por vezes a solução do litígio pressupõe uma escolha política.

A sexta e última característica é a ocorrência de lesões disseminadas em massa. Ou seja, diante da realidade massificada em que vivemos, também os direitos assumem uma dimensão de massa, donde a sua violação, por vezes praticada por grupos sociais, atingir a um número sequer determinável de lesados.

 

4. Bem Jurídico Penal Difuso

 

Tudo o quanto dito acima acerca dos bens jurídicos penais se aplica, com algumas ressalvas concernentes às suas peculiaridades, ao denominados bens jurídico penais difusos.

A existência de bens jurídicos de dimensão coletiva no campo penal é reconhecida pela doutrina desde o início dos debates sobre a conceituação de bens jurídicos. E a tendência atual é cada vez mais o Direito Penal transcender ao individualismo para reconhecer a importância da tutela do sistema social, posto ser ali onde os membros de uma sociedade se desenvolvem e se realizam como indivíduos. Com isto não estamos, todavia, a pregar o abandono da tutela dos interesses individuais, mas apenas que o Direito Penal deve estender sua proteção a interesses “menos individuais porém de grande importância para amplos setores da população”.

Doutrinadores nacionais, que se debruçam sobre questões penais, como Miguel Reale Júnior e Ivete Senise Ferreira, vêm reconhecendo a existência de bens jurídicos penais difusos. Para Gianpaolo P. Smanio bens jurídicos penais difusos são aqueles concernentes à sociedade como um todo, dos quais os seus membros, individualmente considerados, não possuem disponibilidade, e que são indivisíveis e traduzem uma conflituosidade social. Como exemplo temos: a proteção do meio ambiente, a proteção das relações de consumo, a proteção da saúde pública, a proteção da economia popular, da infância e juventude, dos idosos, etc.

O que nos indica se aqueles bens listados são tidos por bens jurídicos penais difusos ou não é a sua análise no caso concreto, ou seja, através da análise da conduta praticada contra aqueles bens jurídicos. Assim, conforme a gravidade da lesão ou ameaça de lesão sofrida por aqueles bens, identificamos a sua qualificação como bens jurídicos penais difusos ou bens jurídicos difusos concernentes a outros ramos do direito.

O mesmo procedimento acima nos possibilita ainda identificar quando uma mesma conduta criminosa atinge concomitantemente mais de um bem jurídico penal: individual, coletivo e difuso.

Ao buscarmos identificar quais bens jurídicos difusos possuem relevância (dignidade) penal e carecem de tutela penal, devemos utilizar como filtro os princípios acima abordados, tendo sempre em vista as peculiaridades do caráter difuso do bem jurídico estudado.

Assim temos que, para o atendimento do princípio da lesividade, é necessário que haja lesão ao bem jurídico para que este seja passível de tutela penal. Todavia, a proteção penal dos bens jurídicos de maior relevância social (difusos) vem se dando, na grande maioria das vezes, por meio da criação de crimes de perigo, principalmente abstrato. Assim, como seria possível o atendimento àquele princípio?

A solução do aparente dilema está na compreensão de que a lesividade a que se refere o princípio não pode ser entendida naturalisticamente como “dano”, mas antes como “ofensa” aos bens jurídicos penais difusos, seja esta na forma de dano (lesão) efetivo ou de colocação em perigo.

Temos aí então a possibilidade de tutela penal dos interesses difusos por meio dos denominados crimes de perigo, sem que haja violação ao princípio da lesividade, que melhor seria se chamado mais explicativamente de princípio da ofensividade.

Grande cuidado deve ser tomado pelo legislador ao criar crimes de perigo quando da proteção dos interesses difusos, devendo restringi-los ao mínimo indispensável, sob pena de violação aos princípios fragmentário e da intervenção mínima. Para evitar tal violação deve o legislador cuidar para evitar a mera formulação penal simbólica.

 

5. A Tutela Penal dos Interesses Penais Difusos

 

A tutela penal dos interesses difusos, devido às características típicas e diferenciadas destes, exige todo um tratamento também diferenciado da criminalidade, o que implica em mudanças adaptativas profundas no sistema penal.

Na sociedade globalizada em que vivemos observamos um aumento crescente de crimes de natureza econômica e ambiental praticados por empresas, sendo que estas, em face da presente realidade mundial, apresentam uma preocupante desnacionalização e despersonalização dos fenômenos que lhes concernem.

A fim de trabalhar com esta realidade, o Direito Penal teve de criar teorias quanto à responsabilidade penal da pessoa jurídica, dentre as quais traremos para este trabalho as três que entendemos principais.

A primeira teoria é a que não admite a responsabilização penal das pessoas jurídicas, posto que, se são elas pura ficção legal, não podem ser verdadeiramente responsabilizadas penalmente. Entende que tal responsabilidade penal deverá recair sobre os homens cuja vontade conjugada fez nascer a ficção legal pessoa jurídica.

Esta teoria se fundamenta no seguinte argumento: se as pessoas jurídicas somente podem atuar no mundo dos fatos através de seus órgãos humanos, nunca pessoalmente, então não podem elas ser apenadas, mas apenas aqueles que são seus órgãos. A segunda teoria ora estuda é a que prega a responsabilização da pessoa jurídica por meio de medidas especiais, não penais. Seus argumentos são praticamente os mesmos acima, todavia admitindo a existência de um meio termo entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, denominado Direito de Intervenção.

Para esta teoria, como não é possível a aplicação de sanções graves, tais como as privativas de liberdade, aos entes morais, a eles devem ser aplicadas, por via do Direito de Intervenção, que faça aquele meio termo, medidas especiais, tais como: dissolução da entidade, intervenção na empresa, fechamento desta, suspensão de atividades, proibição da realização daqueles no futuro, etc. A terceira teoria é a que reconhece a responsabilidade penal da pessoa jurídica, o que pressupõe a criação de todo um novo sistema teórico a possibilitar tal posicionamento.

Esta posição doutrinária se baseia na teoria da realidade da pessoa jurídica, donde possuir ela vontade própria, distinta e independente dos membros que a constituem, mas que, por possuir peculiaridades próprias distintas da ação humana, faz imprescindível uma análise diferenciada do dolo e tipicidade de sua conduta. Nossa Carta Magna prevê expressamente, no seu art. 225, § 3º, a possibilidade de aplicação de sanções penais a pessoas jurídicas, e assim o Direito Penal pátrio não pode se esquivar ao reconhecimento da capacidade penal daquelas pessoas.

 

Conclusão

 

Por tudo quanto dito acima, podemos observar que hoje ainda não existe questão fechada no que tange aos direitos penais difusos e a forma pela qual devam receber proteção jurídica. Todavia, não se questiona a necessidade premente de se buscar garantir tutela jurídica e jurisdicional àqueles direitos.

Mais uma vez convém ressaltar que, sendo função do Direito a regulamentação dos hábitos e atividades sociais, compete-lhe, diante da natural contínua evolução a que estão sujeitas as sociedades humanas, acompanhar-lhe os movimentos evolucionários através de alterações das regras jurídicas existentes ou da criação de novas interpretações para aquelas.

 

Se atualmente as sociedades, em decorrência das evoluções tecnológicas que minimizaram a interação tempo-espaço, passam a apresentar uma conflituosidade até então desconhecida do Ordenamento Jurídico, deverá este, indubitavelmente adaptar-se através da criação de novas regras jurídicas ou da adaptação das pré-existentes àquelas novas exigências”.

 

1.4 - Bibliografia

 

 - ALVES, Sérgio Luis Mendonça. Artigo: O Homem, sua natureza e a inutilidade das Leis. Uma reflexão sobre princípios e garantias constitucionais aplicáveis aos Direito Penal e Processual Penal Ambiental.In: COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antônio Marques da. Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2006, p.763/764.

 

- BECHARA, Erika. Artigo: Tutela penal do meio ambiente: Direito penal máximo? Boletim do IBCCRIM, nº 63 - Fevereiro / 1998.

 

 - OLIVEIRA, Carlos Alberto Corrêa de Almeida; SILVA, Ronaldo Sérgio Moreira. Artigo: A criminalidade moderna e as garantias constitucionais. A influência da globalização no direito penal e Direito Processual Penal. In: SILVA, Marco Antonio Marques da (coord.). Processo Penal e Garantias Constitucionais. São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2006, p.41.

 

- PRADO, Luiz Regis. Artigo: Princípios penais de garantia e a nova Lei ambiental. Boletim do IBCCRIM, nº 70, 1998.

 

- SICOLI, José Carlos Meloni. Artigo: A tutela penal do meio ambiente na lei nº 9.605, de 13 de fevereiro de 1998.Boletim do IBCCRIM, nº 65, 1998.

 

- SILVA, Rosana Ribeiro da. Artigo: Tutela Penal dos Interesses Difusos. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=848, acesso em 26/2/2014.

 

 



[1] Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestrando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[2] ALVES, Sérgio Luis Mendonça. Artigo: O Homem, sua natureza e a inutilidade das Leis. Uma reflexão sobre princípios e garantias constitucionais aplicáveis aos Direito Penal e Processual Penal Ambiental. In: COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antônio Marques da. Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2006, p.763/764.

[3] OLIVEIRA, Carlos Alberto Corrêa de Almeida; SILVA, Ronaldo Sérgio Moreira. Artigo: A criminalidade moderna e as garantias constitucionais. A influência da globalização no direito penal e Direito Processual Penal. In: SILVA, Marco Antonio Marques da (coord.). Processo Penal e Garantias Constitucionais. São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2006, p.41.

[4] Op. cit.

[5] Op. cit.

[6] BECHARA, Erika. Artigo: Tutela penal do meio ambiente: Direito penal máximo? Boletim do IBCCRIM, nº 63 - Fevereiro / 1998. 

[7] PRADO, Luiz Regis. Artigo: Princípios penais de garantia e a nova Lei ambiental.Boletim do IBCCRIM, nº 70, 1998. 

[8] SICOLI, José Carlos Meloni. Artigo: A tutela penal do meio ambiente na lei nº 9.605, de 13 de fevereiro de 1998.Boletim do IBCCRIM, nº 65, 1998.

[9] SILVA, Rosana Ribeiro da. Artigo: Tutela Penal dos Interesses Difusos. http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=848, acesso em 26/2/2014.


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