650 - Da audiência de custódia e seu impacto no processo penal brasileiro

  

RAFAELA CALDEIRA GONÇALVES [1] - Juíza de Direito

 


1. 
Introdução

 

Em 24 de fevereiro de 2015, foi dado o ponta pé inicial para a implementação de projeto que envolvia o Supremo Tribunal Federal, Tribunais de Justiça dos respectivos Estados, o Conselho Nacional de Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, para que fossem iniciadas as então denominadas audiências de custódia.

 

Muitos foram os fatores debatidos, tanto de natureza jurídica, quanto metajurídica, para uma exitosa implementação do projeto. Entre os primeiros, mencionem-se as discussões sobre o que se perguntar e como se perguntar para se adentrar ao fumus comissi delicti, em análise da existência de cautelaridade para a prisão. Já na segunda categoria de fatores, estava a preocupação com a estrutura e a segurança de todos os atores do projeto e ainda com o atendimento dos investigados, em especial os que seriam soltos, no que se refere ao retorno para suas casas e também à necessidade e à viabilidade de um possível acompanhamento.

 

Entretanto, o que mais intrigava a todos implicados nesta empreitada era descobrir os reais motivos que teriam levado a implementação de uma audiência, prevista em tratado internacional, cujo ingresso no ordenamento jurídico brasileiro havia se dado há mais de 23 anos, sem que nestas mais de duas décadas, houvesse surgido tal preocupação, observado também que a precariedade do sistema penitenciário brasileiro não se tratava de constatação recente.  

 

Dentre os verdadeiros motivos, pode-se mencionar a condição do país de possuidor da 4ª maior população carcerária do mundo, com 607.731 presos, tendo sido feita a estimativa de existência de 300 presos para cada 100 mil habitantes, superando duas vezes o número de vagas existentes no sistema prisional (377 mil vagas), com um déficit de 231 007 vagas, com percentual de ocupação de 161% dos estabelecimentos prisionais. Isto é, para cada espaço construído para dez pessoas, existem dezesseis, em verdade, ocupando o recinto. [2]

 

Ademais, em termos de população carcerária, como mencionado, estão na frente do Brasil, somente Estados Unidos, China e Rússia. Contudo, todos com uma diferença crucial quanto ao panorama brasileiro. Considerado o período analisado (entre os anos de 2010 a 2014), de acordo com a disponibilidade de dados, houve uma diminuição do encarceramento nestes três países, de modo que tal taxa é negativa nos três: - 8% nos Estados Unidos, - 9% na China e – 24% na Rússia, enquanto no Brasil há uma taxa positiva de 33%.[3]

 

Outrossim, especificamente sobre a realidade de São Paulo, tem-se que tal Estado é o que possui cerca de 36% da população carcerária do país, sendo a unidade da federação com maior número de presos, seguido de Minas Gerais e Rio de Janeiro, sem que se possa deixar de frisar também a circunstância de São Paulo ser o estado com maior densidade demográfica.[4]

 

A tal panorama se soma a crescente sensação de insegurança da população brasileira, em nítida conclusão de que o Sistema de Justiça não consegue conter a criminalidade como deveria, tendo o Brasil obtido a classificação de 122º, entre 132 países avaliados, no que se refere ao quesito de segurança, conforme dados do Relatório do Índice de Progresso Social, formulado em 2014.[5] Neste sentido, aliás, também se aponta o 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil,[6] ao mencionar falhas nos sistemas policial e penitenciário, inclusive com a participação de autoridades em violações aos direitos humanos.

 

Frise-se, também, que é crescente a preocupação da comunidade internacional com as condições do sistema penitenciário brasileiro, tendo em vista as denúncias e a divulgação de notícias no âmbito internacional sobre a situação do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Estado do Maranhão, no ano de 2014, bem como diante da existência de caso pendente de julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, relativo à situação do Presídio de Urso Branco, em Rondônia[7]. Tanto assim o é que, ao fim não pôde a Corte Suprema Brasileira negar tal situação, como ficou de fato consignado na decisão liminar do Pleno, proferida na ADPF 347, em data recente, na qual foi reconhecido o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário do país, bem como estabelecido o prazo de noventa dias para início das audiências de custódia em todo território.[8]  

 

Contudo, as polêmicas relativas à Audiência de Custódia de longe se limitam à motivação para sua implementação, também ganhando contorno de debate jurídico de extrema importância e interesse, inclusive acadêmico, a questão a respeito da necessidade de alteração do Código de Processo Penal, para o seu início.

 

2Do Pacto de San José da Costa Rica e sua aplicabilidade

 

Antes de qualquer outra digressão sobre a referida necessidade de alteração da legislação processual penal, contudo, mister que sejam tecidas algumas considerações ao Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, considerado o tratado-regente do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e grande códex dos direitos civis e políticos do mesmo continente.


Como já mencionado, o Brasil é parte desta Convenção desde 1992, tendo tal Pacto ingressado no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto 678 do mesmo ano. Entretanto, pouco se evoca este instrumento internacional na prática jurídica e muito menor ainda é sua referência nas decisões proferidas pelos Tribunais Brasileiros, não obstante a importância e riqueza dos direitos ali estabelecidos.

 

Sua pouca aplicação muito se atribui ao desconhecimento e resistência dos operadores do direito às normas internacionais, em adoção a uma postura de apego e primazia ao ordenamento jurídico nacional, em razão de uma influência de um positivismo nacionalista, que predominou do século XIX até meados do século XX, quando se exigia que os direitos previstos em Tratados Internacionais também fossem prescritos em normas internas para serem pleiteados em face do Estado ou de particulares[9]. Contudo, esta não foi a intenção da Constituição Federal de 1988, que, ao fim da extensa declaração de direitos do artigo 5º, estabelece que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais, em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

Indiscutível, portanto, que ao assim ditar a Carta Magna, não esteja ela a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional, quando o seu conteúdo se refira a direitos e garantias fundamentais.

 

A tal respeito discorreu a professora Flavia Piovesan para quem tal conclusão advém de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional, afirmando, ainda, que a esse raciocínio se acrescenta o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de globalização que propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional – abertura que resulta na ampliação do bloco de constitucionalidade.[10]

 

E a mesma doutrinadora prossegue o seu raciocínio sobre o tema, enfatizando que, enquanto os demais tratados internacionais têm força hierárquica infraconstitucional, nos termos do artigo 102, inciso III, b, do texto (que admite o cabimento de recurso extraordinário de decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos detêm hierarquia constitucional. Este tratamento jurídico diferenciado se justifica, segundo ela, na medida em que os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comum. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre os Estados-partes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não de prerrogativas do Estado. [11]

 

Em verdade, tais linhas da ilustre jurista surgem no sentido de demonstrar que, ainda que as Constituições dos países continuem a ser uma carta de identidade política e cultural de um Estado-Nação, cada vez mais estas devem se articular com outros direitos, mais forjados em novas unidades políticas, tais como a Comunidade internacional, a Comunidade Europeia, a Organização dos Estados Americanos, dentre outras ainda por emergir. Por todos estes motivos, outro não pode ser o olhar da comunidade jurídica brasileira ao Pacto de San José da Costa Rica.[12]

 

Neste sentido também, o professor André de Carvalho Ramos que sustenta que para melhor defesa dos direitos humanos adota-se a aplicabilidade imediata dos textos normativos às situações fáticas existentes, de modo que se reconhece que, sob o aspecto formal (jurídico normativo), tais direitos são tendencialmente completos, ou seja, aptos a serem invocados desde logo pelo jurisdicionado.[13]

Ademais, não se trata apenas de reconhecer a natureza constitucional das normas internacionais de direitos humanos, mas em observância ao disposto no parágrafo 1º do referido artigo 5º, de se reconhecer a imediata aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais, no sentido de não se fazer necessário qualquer ato de intermediação pelo Poder Legislativo para outorgar vigência e obrigatoriedade no plano interno, dos direitos em tais documentos internacionais estabelecidos, porque aptos de maneira imediata a gerar direitos subjetivos a particulares.[14] 

 

Neste sentido, aliás, o parágrafo 3º do artigo 5º, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/04, por meio do qual se previu quórum qualificado para aprovação de tratados de direitos humanos, com status de emenda constitucional, somente vem reforçar o entendimento quanto à incorporação automática dos tratados de direitos humanos, visto que não se mostra pertinente que, após todo o processo solene exigido pelo artigo 60, do Texto Constitucional para a aprovação daqueles na forma de emenda, fique sua incorporação, no âmbito interno, condicionada a um Decreto do Presidente da República. [15]

 

Nesta direção também vem caminhando o entendimento da Suprema Corte Brasileira que se utiliza da expressão supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, para dizer que se encontram acima das leis ordinárias e com aptidão de revogar normas infraconstitucionais que estejam em desacordo com seu conteúdo.  

 

Neste tocante, mister mencionar o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, de 22 de junho de 2005, decidido pelo Plenário. Em tal julgamento, após o voto do Relator, Ministro Cezar Peluso, que negava provimento ao recurso, sem adotar uma posição expressa quanto à questão da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, votou o Ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.[16]

 

Tais considerações se mostram relevantes, em especial diante da discussão já mencionada a respeito da necessidade de previsão no direito interno, mais especificamente no Código de Processo Penal, no que se refere à audiência de custodia, que por certo envolve a aplicabilidade do Pacto de San José da Costa Rica, no âmbito interno brasileiro.

 

Tal instituto tem por fundamento o disposto no artigo 7º, item 5, da referida Convenção, que estabelece que toda pessoa presa, detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo, com o friso de que tal liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. [17]

 

Imperioso mencionar, ainda, que, a referida convenção não é o único documento internacional ratificado pelo Brasil que neste sentido determina, havendo disposição equivalente no Pacto de Direitos Civis e Políticos, de 22 de dezembro de 1966, promulgado internamente por meio do Decreto n. 592 de 6 de julho de 1992. Tal tratado internacional dispõe em seu 9.3 que qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.

 

Apenas para não deixar dúvidas sobre a importância do instituto em análise, que atua em nítida proteção ao direito à liberdade e à integridade física  dos indivíduos, no que se refere à atuação do Estado, em especial da Polícia Judiciária, mencione-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do Caso Tibi, decidiu que tal garantia constitui um meio de controle idôneo para evitar capturas arbitrárias e ilegais, e que, além da proteção do direito de liberdade, também assegura e protege outros direitos, como a vida e a integridade pessoal.[18]

 

Outrossim, frise-se também a consideração tecida por Stefan Trechsel, quanto a ser esta uma garantia particularmente importante em países em que existe um perigo efetivo de brutalidade policial ou tortura[19], como não se pode negar ser o caso do Brasil.

 

Mister consignar que tal questão já foi objeto de discussão perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu Parecer Consultivo nº 07/86, por meio do qual reconheceu que a Convenção Americana de Direitos Humanos é autoaplicável, com isso declarando que os direitos convencionais nela protegidos, devem ser aplicados perante todos os órgãos estatais, inclusive o Poder Judiciário, sem que haja necessidade de edição de lei ou de ato administrativo.

 

A aplicabilidade imediata do Pacto de San José subsiste, portanto, desde 1992, e assim também do referido dispositivo que estabelece a obrigatoriedade de apresentação da pessoa presa perante a autoridade judiciária brasileira. Entretanto, na prática, o que se verificou foi a existência de acirrado debate jurídico, fundado primordialmente na inexistência de previsão no ordenamento brasileiro de tal ato processual.

 

3. A prisão cautelar e a Audiência de Custódia

 

A respeito da custódia cautelar, tem-se que, embora objeto de cuidado do artigo 5º, da Constituição Federal, o que constou relativo a tal instituto foi que, ressalvada a prisão em flagrante, ninguém poderá ser preso, senão por ordem judicial (inciso LXI), sendo a prisão comunicada imediatamente ao juiz e à família do preso (inciso LXII), que também terá direito à assistência de um advogado (inciso LXIII), bem como à identificação dos responsáveis pela prisão. Constou ainda, que, sendo comunicada ao juiz, se a prisão for ilegal será relaxada (inciso XV) e, mesmo nos casos em que respeite a lei, não se manterá ninguém na prisão, se a lei admitir liberdade provisória (inciso LXVI). Nesse rol, contudo, repita-se, não está assegurado, expressamente, o direito de qualquer pessoa presa ser levada, sem demora, ou o mais prontamente possível, perante uma autoridade judiciária, para que esta verifique a legalidade de sua prisão.

 

O que existe para as hipóteses de prisão em flagrante delito é a obrigatoriedade de comunicação imediata da prisão ao juiz, até mesmo porque, em tal situação, por se tratar de uma medida que nasce administrativamente, é necessária a sua mais pronta jurisdicionalização, para que aquele relaxe a prisão, se ilegal, ou a convalide, se legal, hipótese em que o acusado não ficará preso se for adequada a liberdade provisória. Não exige a Constituição, contudo, que a tal comunicação se siga uma audiência de convalidação da prisão. Muito menos exige a Lei Maior que o preso seja imediata ou prontamente interrogado por um juiz, limitando-se a prever que, se interrogado – e nesse momento, normalmente o será por autoridade policial – terá o direito de permanecer em silêncio.

 

Por seu turno, do Código de Processo Penal, em seu artigo 306, determina apenas que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre sejam comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada, fixando o prazo máximo de vinte e quatro horas, após a realização da prisão, para o encaminhamento do auto de prisão em flagrante àquele, sem olvidar do fornecimento de cópia integral para a Defensoria Pública, na hipótese de o individuo detido não possuir advogado. Ao final, o mesmo artigo ainda estabelece que no mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

 

Com vistas à adequação da legislação processual penal ao referido tratado internacional, houve a elaboração do Projeto de Lei 554/11, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, por meio do qual se pretendia dar a seguinte redação ao aludido dispositivo:

 

“Art. 306. (...) § 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”.

 

Contudo, o referido projeto de lei veio a receber, quando em trâmite na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), uma emenda substitutiva apresentada pelo Senador João Capiberibe, a qual, devidamente aprovada – por unanimidade – naquela Comissão, alterou o projeto originário, conferindo-lhe a seguinte redação:

 

“Art. 306. (...) § 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2.º A oitiva a que se refere o § 1.º não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 3.º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 4.º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2.º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código”.

 

Da leitura do referido substitutivo, nota-se que há normativa praticamente completa sobre a audiência de custódia, sequer abrindo margem para interpretações sobre a autoridade a quem o preso deve ser conduzido (o juiz), ou a respeito do prazo em que tal medida deve ser viabilizada (em até vinte e quatro horas da prisão), além de cercar a realização da audiência de custódia das garantias do contraditório e da ampla defesa, quando prevê a imprescindibilidade da defesa técnica no ato.

 

Porém, até a presente data, tal projeto segue em tramitação[20] e o Codex Processual Penal ainda se vê inalterado neste tocante. Fato é, entretanto, que as audiências de custódia já são uma realidade em praticamente todo território brasileiro, sendo objeto de atenção e cuidado do próprio Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo Lewandoviski, de sorte que a implementação de tal instituto tem se dado por meio de Provimento editado pela Corregedoria dos respectivos Tribunais de Justiça do país.

 

Porque pioneiro na sua realização, foram os provimentos n. 3 e 4 de 2015 da e. Corregedoria e Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, questionados quanto a sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 5240, proposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, tendo como fundamentos principais para o reconhecimento da suscitada inconstitucionalidade, a usurpação de matéria de competência exclusiva da União, conforma artigo 22,[21] do texto constitucional, porquanto criado verdadeiro ato processual por meio de normativo interno de Tribunal. Foi arguido ainda o impacto direto de tal provimento nas atividades dos Delegados, cujas atribuições possuem previsão específica na Carta Magna, no artigo 144, parágrafos 4º e 6º, de modo que tais profissionais não poderiam estar sujeitos a atos normativos, cuja abrangência necessariamente deveria ser interna aos integrantes do referido Poder Judiciário.  

 

Em decisão do Pleno da Suprema Corte Brasileira, datada de 20 de agosto de 2015, a ação foi julgada improcedente, reconhecida a constitucionalidade dos Provimentos 3 e 4 de 2015, do Tribunal de Justiça de São Paulo, de sorte que já superada no plano judicial tal questão.[22] Porém, além dos argumentos mencionados sobre a aplicabilidade imediata de tal tratado, em razão da interpretação do texto constitucional, entende-se como importante mencionar não só a constitucionalidade, mas a convencionalidade dos referidos provimentos, em razão do conteúdo de outro artigo de extrema relevância do mesmo tratado internacional em análise, qual seja, o artigo 2º, que dispõe que se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-artes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

 

Em comentário a tal artigo, o jurista Valério de Oliveira Mazzuoli dispõe que o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Convenção Americana devem estar efetivamente garantidos no plano do direito interno de seus Estados-partes, quer por disposições legislativas, quer por disposições de qualquer outra natureza, nesta categoria, portanto, incluídos provimentos internos dos Tribunais de Justiça que se fizerem necessários para regular a realização de tal ato internamente nos respectivos Poderes Judiciários. Com isso, em nenhuma medida se afirma ser despicienda a alteração do Código de Processo Penal, mas apenas e tão somente se refuta de maneira definitiva a inconstitucionalidade de tais provimentos, bem como se reconhece sua convencionalidade, à luz do referido Pacto Internacional. [23]

 

Ademais, o mesmo ilustre jurista comenta que não somente por disposições legislativas podem os direitos previstas na Convenção Americana serem protegidos, senão também por medidas de outra natureza. Nesse sentido, o que pretende o referido dispositivo ressaltar é que o objetivo maior de tão importante documento internacional é a proteção da pessoa, não importando se por ele ou outra medida estatal qualquer (v.g. um ato do Poder Executivo, ou Judiciário, etc.). Outra não poderia ser a conclusão já que os Estados-parte na Convenção têm o dever jurídico de adequar todo o seu direito interno às disposições convencionais que aceitaram quando da ratificação da Convenção, de sorte que tal dever geral implica que as medidas de direito interno têm de ser necessariamente efetivas. [24]

 

Mencione-se, ainda, que no Direito Internacional Público, o dever dos Estados em realizar no seu direito interno as modificações necessárias para assegurar a execução das obrigações internacionalmente assumidas, decorre de preceito consuetudinário de validade universal, não tendo feito a Convenção Americana mais do que apenas positivar, em documento escrito, tal regra já anteriormente aceita pela sociedade internacional em seu conjunto.

 

Contudo, especificamente quanto aos Provimentos n. 3 e 4 do E. TJSP entende-se que seus artigos 10º[25] e 3º[26], respectivamente, não são dotados da mesma constitucionalidade e convencionalidade acima mencionadas, em especial por estabelecer tratamento diferenciado aos indivíduos detidos. A ofensa à constituição e à convenção que se constata, refere-se à previsão de não realização das audiências durante os finais de semana, obstando, assim, aos autuados em flagrante neste período (sábado e domingo) de serem apresentados perante um juiz de direito.

 

Neste sentir, não se pode entender como razoável, a alegação de questões de natureza estruturais como aptas a justificar o desrespeito de norma de conteúdo de direitos humanos. Não serve como justificativa a necessidade de tempo para a adequação dos órgãos estatais, para a completa implementação do referido instituto, visto que não cabe ao cidadão arcar com o ônus da ineficiência do Poder Público. Quanto a tal argumento, mister mencionar o perigo de sua aceitação por país que, tão somente com cerca de trinta anos de regime democrático, embora se afirme atento aos standards internacionais, muito tem ainda por fazer no que se refere ao fortalecimento de sua democracia.

 

Entendida como constitucional ou convencional tal situação proposta pelo mesmo provimento, chega-se à incômoda situação prática de se reconhecer a necessidade de relaxamento da prisão pela não apresentação de alguém que comete um ilícito de segunda a sexta-feira, sem que tenha sido apresentado em 24 horas perante um juiz de direito, reconhecida a audiência como ato essencial à regularidade da prisão em flagrante; enquanto que, para individuo preso pelo mesmo crime, porém, na sexta-feira, após o encerramento do expediente forense e até o domingo, sua prisão seria reconhecida como regular, já que justificado neste caso pelos aludidos Provimentos sua não apresentação.

 

Do mesmo modo, o parágrafo 2º, do artigo 3º, do referido Provimento n. 3[27], também merece reparo, visto que autoriza a não apresentação do investigado, quando circunstâncias pessoais, cuja análise fica a cargo da d. autoridade policial, assim justificarem. Tal dispositivo estabelece cláusula extremamente aberta, enquanto o que se deveria viabilizar, em especial para as hipóteses de autuados feridos ou que demandarem atendimento médico imediato, fosse a possibilidade de apresentação em prazo superior ao de 24 horas, sem simplesmente lhes afastar a possibilidade de contato com o magistrado, que, nestes casos, deverá ter especial interesse em entender sobre o estado de saúdo do preso, com vistas à apuração de alguma violência ou tortura policial; outra finalidade que se presta tal apresentação do autuado, como deixa claro o próprio artigo 7º, do mesmo provimento.[28]  

 

A questão do prazo para apresentação, diga-se, é um dos pontos sensíveis relacionados ao instituto da audiência de custódia, em especial porque a Convenção em seu artigo 7º não estabelece um prazo específico, consignando apenas que toda pessoa presa deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz. Com relação à mesma Convenção e suas outras versões em línguas estrangeiras, tem-se que em espanhol, do respectivo texto consta a expressão “sin demora”, enquanto que em inglês, é utilizado o advérbio de tempo promptly (“prontamente”), de modo que, muito embora não exatamente sinônimas, seus sentidos se mostram bastante semelhantes.

 

A mesma discussão surgiu em relação à Convenção Europeia de Direitos Humanos, ante a diferença da terminologia utilizada na versão inglesa – promptly – e francesa – aussitôt – do mesmo dispositivo paralelo ao artigo 7º da Convenção Americana. Embora a primeira tenha o significado literal de prontamente, a segunda, tem a conotação de imediatidade, pelo que se pode dizer que a Convenção Européia foi ainda mais rigorosa do que a Americana no que se refere a esta garantia.

 

Em análise do referido artigo, a Corte Europeia, portanto, reconheceu que há muito pouco grau de flexibilidade para interpretar a expressão prontamente, de sorte que considerou, em alguns julgados, que a apresentação consiste em  uma “immediate judicial oversight”.[29] Porém, também considerou importante se ater às especificidades de cada caso, sem que a avaliação de tais aspectos prejudique a própria essência do direito garantido pelo artigo.

 

Ainda com relação ao prazo para apresentação, mister mencionar as conclusões do estudo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo para subsidiar o referido PL 554/11[30], que se baseou em grande parte na análise comparativa de legislações de países da Europa e também da América Latina, para concluir pela necessidade de limitação do período máximo de custódia antes da apresentação do autuado a um juiz; observado que se tratava de disciplina existente em todos os países estudados, no que diferiam substancialmente da realidade brasileira até a implementação do referido instituto.

 

Outrossim, não basta apenas que a pessoa detida seja apresentada no prazo estipulado, mas também que no mesmo prazo, para tanto estabelecido, haja apreciação judicial sobre a prisão por meio de decisão fundamentada. Neste tocante, mencione-se que a autoridade que deve exercer o controle da prisão, de acordo com o art. 7(5) da Convenção Americana de Direitos Humanos será um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.

 

Na visão do ilustre professor Gustavo Badaró[31], tal expressão juiz não demanda maiores esclarecimentos, afirmando que se trata de autoridade judiciária, em relação a qual se exige os atributos do art. 8(1), quais sejam, independência, imparcialidade e competência estabelecida por lei.[32]

 

Já a expressão outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais é mais problemática, segundo este mesmo jurista[33], muito embora afirme que, no caso do Brasil, a questão não demande maiores divagações, na medida em que a Constituição Brasileira prevê que a comunicação seja feita ao juiz competente (art. 5º, caput, LXII) e que a prisão ilegal será relaxada pela autoridade judiciária (art. 5º, caput, LXV). A este respeito, ademais, tem-se que o país está alinhado, inclusive, com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que não tem admitido que esse controle da legalidade da prisão seja realizado por membros do Ministério Público, que, muito embora atue também como fiscal da lei, no processo penal, é titular da ação penal e órgão acusador.[34]

 

Outra não poderia ser a conclusão, considerado em especial que a denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de todo cidadão preso ser conduzido, sem demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão.

 

Segundo o jurista Carlos Weis, a realização de tal audiência aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência.[35]

 

Por tais motivos, aliás, é que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem decidido reiteradamente que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”, e ainda, que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção”.[36]

 

Neste contexto, não há como se concluir que o artigo 306 do Código de Processo Penal sobreviva ao controle de convencionalidade, quando comparado com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos a que o Brasil voluntariamente aderiu, especialmente o Pacto de San José da Costa Rica, com aptidão, inclusive, de ensejar a responsabilização do país perante a aludida Corte.

 

Outrossim, considerada a finalidade do referido instituto, tem-se que este é requisito procedimental essencial, a se realizar antes de o juiz decidir sobre a legalidade e necessidade da prisão, conquanto mais se considerado que o controle de uma prisão já se dá na forma de contraditório diferido; circunstância esta que à evidência diminui a possibilidade de uma efetiva confrontação de argumentos, ainda mais se uma das partes está presa e não tem a chance de procurar documentos ou obter outros meio de prova que demonstrem a ilegalidade ou desnecessidade da segregação.

 

Destarte, a realização de uma audiência, levando-se o preso à presença do juiz, que deverá ouvi-lo, de viva voz, implementa um importante mecanismo dialético de controle da legalidade e justiça da prisão cautelar. Neste tocante, especificamente a respeito desta questão, dispôs a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Chaparro Álvarez, que: “para satisfacer la exigencia del artículo 7.5 de “ser llevado” ante um juez. La autoridad judicial debe oír personalmente al detenido y valorar todas las explicaciones que éste le proporcione, para decidir si procede la liberación o el mantenimiento de la privación de libertad.[37]

 

No caso de prisão em flagrante, essa situação é ainda mais relevante, porque a medida não é fruto de uma prévia decisão judicial, na qual um sujeito, independente e imparcial, decide sobre a presença ou não do pressuposto e dos requisitos da prisão. Assim, a audiência da pessoa presa, com a realização de seu interrogatório, integra o pressuposto constitutivo da medida cautelar. Se não for realizada a oitiva do preso pela autoridade judiciária, como mecanismo de controle de um ato realizado a non iudice, a prisão será ilegal, posto que não terá sido efetivamente convalidada, nos termos do que determina a Convenção.


Ressalte-se, ainda, que Corte Interamericana de Direitos Humanos tem considerado que o direito do artigo 7(5) não é satisfeito pelo simples envio ao juiz de um informe policial da realização da prisão: “El hecho de que un juez tenga conocimiento de la causa o le sea remitido el informe policial correspondiente, como lo alegó el Estado, no satisface esa garantía, ya que el detenido debe comparecer personalmente ante el juez o autoridad competente”.[38]  

 

Ao ouvir investigado, promotor e defensor, nesta nova audiência, o juiz tem oportunidade de examinar todos os fatos que militam a favor de sua prisão – e que foram considerados pela autoridade policial ao prendê-lo em flagrante delito – bem como considerar os argumentos contrários à prisão preventiva e decidir sobre a sua manutenção, substituição por medida alternativa à prisão, ou mesmo a sua simples revogação, tendo uma visão mais completa de toda situação.

 

A oitiva do preso, portanto, tem característica precípua de um interrogatório pro libertate, prescindindo, frise-se, de uma finalidade investigativa, que não pode o magistrado em nenhuma hipótese pretender lhe atribuir, sob pena de comprometer sua imparcialidade, a menos que necessária para a verificação de quaisquer das hipóteses previstas no artigo 302, da legislação processual penal, no que se refere à existência de situação de flagrância.

 

Destarte, a audiência de custódia sem dúvidas possibilita ao indivíduo detido o exercício da própria autodefesa, esclarecendo sua posição com relação à individualização das exigências cautelares contra ele consideradas existentes, do mesmo modo como aprimora o seu conhecimento sobre a imputação que lhe é feita, visto que também incumbe ao magistrado esclarecer de maneira resumida, o motivo de sua prisão e finalidade da aludida solenidade.

 

Não há, porém, em regra, possibilidade de o investigado que se encontra preso, produzir provas orais, especialmente pela oitiva de testemunhas em tal audiência. O contraditório e a defesa se desenvolvem como atividade argumentativa e, do ponto de vista probatório, limitam-se à análise das provas já produzidas e constantes dos autos, à formulação de reperguntas de esclarecimento sobre aspectos objetivos da prisão e à juntada de documentos.

 

Anote-se, ainda, que o juízo a ser realizado neste ato é complexo e bifronte, porquanto não se destine apenas a controlar a legalidade do ato já realizado, mas também a valorar a necessidade e adequação da prisão cautelar, para o futuro.

 

Neste contexto, entende-se que com ela também surge uma figura totalmente nova no ordenamento processual brasileiro, qual seja, o Juiz de Garantias, cuja função jamais pode ser desempenhada pelo magistrado do processo criminal, sob pena de grave violação aos direitos de ampla defesa e contraditórios do autuado, visto que a versão apresentada em audiência de custódia poderia influenciar na formação da convicção deste segundo juiz sobre o mérito da pretensão acusatória, caso deduzida no futuro.

 

Outrossim, nesta audiência, duas são basicamente as atividades deste magistrado peculiar. A primeira corresponde a uma atividade retrospectiva, voltada para o passado, com vista a analisar a legalidade da prisão em flagrante; enquanto que a segunda é de prospectiva, projetada para o futuro, com o escopo de apreciar a necessidade e adequação da manutenção da prisão, ou de sua substituição por medida alternativa à prisão ou, até mesmo, a simples revogação sem imposição de medida cautelar.

 

Em especial quanto a este segundo aspecto, é de se ponderar ainda que uma vez atuante o Ministério Público na audiência de custódia, com ampla possibilidade de verificação dos elementos colhidos pela autoridade policial, bem como de avaliação dos requisitos relativos à cautelaridade, à proporcionalidade e à adequação da prisão cautelar, conforme previsto no artigo 282, da legislação processual penal, imperativa é a conclusão pela impossibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz da custódia, sob pena de comprometimento, inclusive, de sua imparcialidade, para a hipótese em que não houver representação da d. autoridade policial ou requerimento do órgão ministerial.

 

Isto porque o direito à apresentação sem demora do autuado perante o juiz, bem como de realização de audiência de custódia para verificação da regularidade de sua prisão e necessidade de sua manutenção, somados aos dispositivos introduzidos pela Lei n. 12403/11, em especial a nova redação dada ao artigo 311, do Código de Processo Penal - por meio do qual a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz se faz possível somente no curso da ação penal – obstam qualquer conduta do juiz sem prévia provocação, no que se refere ao decreto da prisão preventiva, que ganha contornos ainda mais marcantes de excepcionalidade.

 

Deste modo, se não sustentada a necessidade da prisão, seja pelo órgão investigador, seja pelo órgão acusador e a persecução penal tenha apenas se dado por iniciada, sem que haja ação penal em curso, outro não pode ser o entendimento à luz dos paradigmas introduzidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, quanto à atuação do Juiz de Garantias, que existe, primordialmente, para que a privação da liberdade do indivíduo se faça apenas e tão somente nos casos estritamente necessários e proporcionais.

 

4. Conclusão

 

Diante de todo o exposto, em primeiro lugar, tem-se que como inconcebível que, justamente o maior país latino-americano, em extensão territorial, e detentor das maiores diversidades, desconheça e, portanto, não utilize o principal instrumento regional de proteção dos direitos civis e políticos já concluído no continente americano, qual seja, o Pacto de San José da Costa Rica.

 

Demais disso, tem-se também que o Processo Penal, como ramo do Direito que mais sofre a influência da normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, impõe o reconhecimento da existência de um devido processo, não apenas legal e constitucional, mas também convencional.  Neste sentido, aliás, são as lições do Nereu Giacomolli, quando afirma que: Uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário. A partir daí, faz-se mister uma nova metodologia hermenêutica (também analítica e linguística), valorativa, comprometida de forma ético política, dos sujeitos do processo e voltada ao plano internacional de proteção dos direitos humanos. Por isso, há que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitário, ou seja, o do devido processo.[39]

 

Inserida no devido processo convencional, portanto, está a audiência de custódia, cujas vantagens são inúmeras, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Não só, este instituto inaugura a figura de um novo juiz – cuja função precípua é de velar pela observância das garantias fundamentais do indivíduo detido, ao se promover, por seu intermédio, o contato do magistrado com o preso, superando-se, desta forma, a distância estabelecida no art. 306, § 1º, da legislação processual, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.

 

Deste quadro, por conseguinte, afigura-se inquestionável a incompatibilidade do sistema brasileiro, segundo o qual basta que o juiz seja comunicado imediatamente da prisão, instrumentalizado pela regra supramencionada do Código de Processo Penal, que prevê que, em até 24 horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante, com a Convenção Americana de Direitos Humanos, especificamente no que se refere ao conteúdo do seu artigo 7º ( 5).

 

Por fim, também em sede de conclusão, mister mencionar a perspectiva trazida pelo brilhante jurista Aury Lopes Junior, sobre o instituto em questão, com a certeza de que a audiência de custódia é somente o primeiro passo para a mudança de tantos paradigmas dentro do sistema de justiça criminal, no que pertine à observância das normas internacionais de Direitos Humanos:


“Parece-nos possível identificar, na superação deste enclausuramento normativo que somente tem olhar para o ordenamento jurídico interno, o surgimento, talvez, de uma nova política-criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder punitivo a partir do diálogo (inclusivo) dos direitos humanos. É imprescindível que exista uma mudança cultural, não só para que a Constituição efetivamente constitua-a-ação, mas também para que se ordinarize o controle judicial de convencionalidade. Incumbe aos juízes e tribunais hoje, ao aplicar o Código de Processo Penal, mais do que buscar a conformidade constitucional, observar também a convencionalidade da lei aplicada, ou seja, se ela está em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Constituição não é mais o único referencial de controle das leis ordinárias.”
[40]


Bibliografia

 

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18.
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=347&classe=ADPF&codigoClasse=0&ORIGEM=JUR&recurso=0&tipoJulgamento – acesso em 14 de dezembro de 2015.


19.
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=5240&classe=ADI&codigoClasse=0&ORIGEM=JUR&recurso=0&tipoJulgamento – acesso em 14 de dezembro de 2015.


20.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf. Acesso em 12 de dezembro de 2015.


21. 
http://www.oas.org/dil/esp/tratados_B-32_Convencion_Americana_sobre_Derechos_Humanos.htm.- Acesso em 12 de dezembro de 2015.


22. 
http://www.oas.org/dil/treaties_B-32_American_Convention_on_Human_Rights.htm. - Acesso em 12 de dezembro de 2015.



[1] Juíza de Direito Auxiliar do TJSP com atuação no Departamento de Polícia Judiciária e Mestranda em Direitos Humanos pela PUCSP.

[2] Tatiana Whately de MOURA e Natália Caruso Theodoro RIBEIRO, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN – junho de 2014, p. 11.

[3]  Ibid, p. 14.

[4] Ibid, p. 17.

[5] G1, São Paulo, 05 de abril de 2014.

[6] Disponível em: http://www.nevusp.org/downloads/down099.pdf.

[7] CIDH, Caso Internos Presídio Urso Branco x Brasil, Relatório n. 81/06.

[8]  In STF, ADPF 347, DJU 9.9.2015.

[9] André de Carvalho, RAMOS, Curso de Direitos Humanos, p. 83: “O risco aos direitos humanos gerado pela adoção do positivismo nacionalista é visível, no caso de as normas locais (inclusive as constitucionais) não protegerem ou reconhecerem determinado direito ou categoria de direitos humanos. O exemplo nazista mostra a insuficiência da fundamentação positivista nacionalista dos direitos humanos”.

[10]  Luiz Flávio, GOMES e Flávia, PIOVESAN (Coordenadores), O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro, p. 160.

[11] Luiz Flávio, GOMES e Flávia, PIOVESAN (Coordenadores), O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro, p. 162-163.

[12] Ibid, p. 162.

[13] André de Carvalho, RAMOS. Teoria Geral Dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 196.

[14] Antônio Augusto Cançado, TRINDADE, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I,  p. 431.

[15] Flávia, PIOVESAN, Direitos Humanos e Justiça Internacional, p. 92.

[16]  Ainda sobre o mencionado RExt no 466.343/SP, o Ministro Celso de Mello adota postura ainda mais progressista em relação à posição do Min. Gilmar Mendes, no que se refere à atribuição de status supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, afirmando terem estes hierarquia constitucional. Tal Ministro destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados: 1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CR de 1988, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2.º do art. 5.º da CR; 2) os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3.º do art. 5.º da CF; 3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais o nosso País aderiu) entre a promulgação da CF de 1988 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade.

[17] No mesmo sentido, prevê a Convenção Europeia de Direitos Humanos, em seu artigo 5(3): “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure o comparecimento do interessado em juízo”.

[18]  CIDH, Tibi v. Equador, sentença de 07.09.2004, §§ 114 e 118.

[19] Stefan, TRECHSEL, Human Rights in Criminal Proceedings, p.505.

[20]  Andamento disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/102115.

[21] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”

[22] In STF, ADI 5240, Ministro Relator Luiz Fux, DJU 02.09.15.

[23] Luiz Flávio, GOMES e Valério de Oliveira, MAZZUOLI, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, p.32.

[24]  Ibid, p. 33-34.

[25] “Art.10. Não será realizada a audiência de custódia durante o plantão judiciário ordinário (art. 1127, I, NSCGJ) e os finais de semana do plantão judiciário especial (art. 1127,II,NSCGJ).”

[26] “Art. 3º: A audiência de custódia será realizada nos dias da semana (de segunda-feira à sexta-feira) e durante o horário do expediente forense, observando-se a rotina de trabalho estabelecida pelos Juízes designados para o Departamento de Inquéritos Policiais da Capital. Parágrafo único. Fica estabelecido o limite de 16h30 para apresentação da pessoa detida, nos termos do artigo 3º caput e § 1º do Provimento conjunto nº 3/2015.”

[27] Parágrafo 2º: Fica dispensada a apresentação do preso, na forma do parágrafo 1º, quando circunstancias pessoais, descritas pela autoridade policial no auto de prisão em flagrante, assim justificarem.”

[28] “Art. 7º O juiz competente, diante das informações colhidas na audiência de custódia, requisitará o exame clínico e de corpo de delito do autuado, quando concluir que a perícia é necessitar para a adoção de medidas tais como:

I – apurar possível abuso cometido durante a prisão em flagrante, ou a lavratura do auto;

II- determinar o encaminhamento assistencial, que repute devido.”

[29]  CEDH, Borgan e outros v. Reino Unido, 1209/84, 11234/84, 11266/84 e 11386/84, sentença de

29.11.1988, § 62.

[30]  Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos), Apresentação do Preso em Juízo – Estudo de Direito Comparado para Subsidiar o PLS 554/11 ,p. 1-23.

[31] Gustavo Henrique R. I, BADARÓ. Parecer formulado em razão de consulta do IDDD e da Defensoria Pública da União, para a Ação Civil Publica registrada sob o n. 8837-91.2014.4.01.3200.

[32] CIDH, Acosta Calderón v. Equador, sentença de 24.06.2005, § 80; Tibi v. Equador, sentença de 07.09.2004, § 119; Cantoral Benavides v. Perú, sentença de 18.08.2000, §§ 74-75.

[33] Ibid.

[34] Neste tocante, a Corte Interamericana decidiu que: “no puede considerarse que la declaración de las víctimas ante el fiscal cumpla con el derecho consagrado en el artículo 7.5 de la Convención de ser llevado ante un “juez u otro funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones judiciales” (Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez v. Equador, sentença 21.11.2007, § 84. No mesmo sentido: CIDH, Tibi v. Equador, sentença de 07.09.2004, § 119.

[35] Carlos, WEIS. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justiça Criminal, Edição 05.

[36] CIDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008. No mesmo sentido, cf. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21.11.2007; Caso Garcia Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25.11.2005; Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005.

[37] Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez v. Equador, sentença 21.11.2007, § 85. E, no Caso Tibi a CoIDH,

(Tibi v. Equador, sentença de 07.09.2004, § 118) que tal controle judicial deve se dar com “imediação

processual”. A mesma expressão foi utilizada no Caso Acosta Calderón, no qual se acresceu: “el detenido debe comparecer personalmente y rendir su declaración ante el juez o autoridad competente” (CIDH, Acosta Calderón v. Equador, sentença de 24.06.2005, § 78). No mesmo sentido: CIDH, Bayarri v. Argentina, sentença de 30.10.2008, § 65.

[38] CIDH, Tibi v. Equador, sentença de 07.09.2004, § 118. No mesmo sentido: Acosta Calderón v. Equador, sentença de 24.06.2005, § 78, considerou-se que “El simple conocimiento por parte de un juez de que una persona está detenida no satisface esa garantía, ya que el detenido debe comparecer personalmente y rendir su declaración ante el juez o autoridad competente”.

[39] Nereu José, GIACOMOLLI, O Devido Processo Penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de San José da Costa Rica, p. 12.

[40] Aury, LOPES JUNIOR, Audiência de Custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal,  p. 16


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