08/04/08: Howard Zehr, um dos mentores da Justiça Restaurativa, faz conferência na USP

 

No dia 7 de abril, Howard Zehr, professor de Sociologia e Justiça Restaurativa nos Estados Unidos, realizou uma conferência na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. A Escola Paulista da Magistratura – EPM, em parceria com outras instituições, foi uma das responsáveis pela coordenação do evento, no qual Zehr apresentou as diretrizes do conceito de Justiça Restaurativa. Este foi o primeiro evento de uma série que serão realizados nessa primeira visita do professor ao Brasil. A vinda de Zehr ao País é uma realização da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, da Associação dos Magistrados Brasileiros e da Associação Palas Athena. A conferência na USP também fez parte do programa de palestras do primeiro Curso de Extensão Universitária de Justiça Restaurativa da EPM.

                    

O diretor da EPM, Antonio Rulli Junior, participou da conferência, juntamente com o secretário de Reforma do Judiciário, Rogério Favreto, o professor Carlos Alberto de Salles, professor de Direito Processual Civil da USP, a defensora pública Renata Tibiriçá, a secretária executiva da Comissão Municipal de Direitos Humanos, Célia Whitaker, o coordenador de ensino da região metropolitana de São Paulo, Luiz Candido Rodrigues Maria e os juízes Egberto de Almeida Penido, Daniel Issler e Eduardo Rezende Melo, responsáveis pelos projetos de Justiça Restaurativa no Estado. O desembargador Rulli Junior deu boas-vindas ao professor Zehr e parabenizou os três juízes de São Paulo por suas iniciativas: “Gostaria, em nome da EPM, de cumprimentar os meus ótimos colegas que estão a frente da Justiça Restaurativa por esse trabalho magnífico que envolve uma parte da solução dos conflitos que são levados aos juízes.”

  

A Justiça Restaurativa é uma nova referência para ser aplicada em conflitos, crimes e situações de violência. Zher foi um dos primeiros no mundo a propagar seus princípios e práticas. Em sua palestra (leia abaixo na íntegra), o professor frisou a importância de ter esse novo modelo adentrado no sistema de justiça tradicional dos Estados Unidos como uma opção procedimental. Uma das grandes diferenças entre o sistema convencional e o sistema restaurativo reside no papel que é dado à vítima, que é colocada em posição central nas práticas restaurativas. “As vítimas querem uma chance de dizer o que sentiram. Elas querem ter opções no processo”, afirma Howard Zehr. No processo criminal comum, a vítima é tratada como mais um meio de prova com o fim de incriminar o réu.

            

Na tarde do dia 7, Howard Zehr esteve no Palácio da Justiça, onde se reuniu com o presidente do tribunal paulista, Roberto Antonio Vallim Bellocchi, e participou de outra conferência, destinada a autoridades governamentais e membros de instituições envolvidas com os projetos de Justiça Restaurativa no Estado de São Paulo. As experiências são desenvolvidas nas comarcas de São Caetano do Sul e Guarulhos e no bairro paulista de Heliópolis, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e abarca escolas públicas das três localidades.

 

Em sua estada pelo País, Howard Zehr faz palestras em Brasília, em Florianópolis – onde participa do XXII Congresso da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude – e em Porto Alegre. Brasília e Porto Alegre também implementam projetos-piloto com Justiça Restaurativa. Zehr aproveita a visita ao Brasil para lançar seu novo livro ‘Trocando as Lentes: um Novo Foco sobre Crime e Justiça’.             

"Bom dia. Muito obrigado pela presença. É uma honra estar aqui e um privilégio. Eu já aguardo ansiosamente esta visita. Isso ajuda o país Brasil, que adora café. Eu já há muito tempo estava doido para tomar um café brasileiro. A minha esposa tem uma perspectiva diferente com relação à minha santidade. Antes de me canonizarem, melhor falar com a minha esposa.  

Eu gostaria de começar, então, com uma história. Alguns anos atrás, numa cidade americana, num bairro tranqüilo, numa tarde, houve uma explosão na frente de uma casa. Era uma bomba pesada e causou estragos a um carro e à vegetação. Uma senhora acabava de pegar um bebê e o estilhaço passou bem perto. Um senhor tinha acabado de fechar a porta de uma casa vizinha, quando o estilhaço bateu na porta da sua casa.

 

Imagina se você estivesse ali naquela casa. Se você fosse membro daquela família, a sensação: ‘Por que é que isso aconteceu? Será que acontecerá de novo?’

 

O homem era diretor de uma escola. Então, ele imediatamente pensou que alguém lá na escola, algum aluno, tinha colocado a bomba ali. Imaginem a vizinhança se perguntando: ‘O que é que está acontecendo? Será que vai acontecer de novo?’

 

Dois jovens foram presos por esse crime e eram alunos, sim, da escola daquele diretor. A seqüência normal seria: eles seriam sentenciados a encarceramento, provavelmente, e as vítimas continuariam indagando: ‘Por que aconteceu esse acidente? Quem eram esses jovens? Será que havia outras pessoas que poderiam fazer a mesma coisa?’

 

Esses jovens jamais entenderiam o impacto do que fizeram. Eles até poderiam achar que eram vítimas, porque agora estavam sofrendo ou sofreriam o trauma da prisão. Mas, em vez disso, essa comunidade tinha um programa de Justiça Restaurativa. O caso chegou ao juiz e eles admitiram sua culpa. Em vez de dar o veredicto na hora, o juiz permitiu que eles fizessem parte do programa de Justiça Restaurativa. Então, um facilitador entrou em contato com as diversas famílias – das vítimas e dos infratores.

 

O diretor falou: ‘Eu não sei. Acho que esse rapaz aí não tem solução. Mas eu quero conversar com o outro.’ Então foi agendada uma reunião. Eu não sei se um parente também estava presente, mas o casal (o diretor e sua esposa) estava ali e também um membro do conselho da escola.

 

O garoto estava chateado com o conselho porque a escola tinha decidido fechar ou cancelar o programa de futebol americano. Vocês sabem que os americanos adoram futebol americano. Eles tinham ali uma motivação. Então passaram pelo processo. O jovem explicou porque que tinha colocado a bomba, explicando a sua insatisfação com a escola. A esposa falou: ‘Olha, eu quase perdi o meu filho e o meu marido.’ E o jovem começou a chorar quando percebeu o que tinha de fato feito. Aquele membro do conselho da escola era especialista em explosivos e explicou: ‘Olha, era uma bomba realmente muito potente e ficou muito próxima uma fatalidade.’

 

Eu não vou falar o resultado ainda, mas a reunião foi tão satisfatória que o diretor aceitou conversar com o outro jovem e, no final das contas, acabaram chegando à conclusão de que os jovens iriam pagar os custos do carro, que foi destruído. Eles iriam também replantar as plantas, a roseira. E iriam circular pela vizinhança e tocar a campainha de cada vizinho para falar: ‘Olha, nós que colocamos a bomba. Eu quero que os senhores saibam que nós não vamos repetir essa ação.’

 

Imaginem a sensação de paz compartilhada por toda a comunidade depois do incidente. Também concordaram em ajudar a escola. A escola também entendeu que, quanto à decisão de cancelar o programa de futebol americano, seria importante conversar com os alunos antes de cancelar o programa.

 

Depois, no final, se reuniram: ‘Está solucionado o caso. Fim da história.’ Então, quando os jovens foram ao tribunal, o juiz os mandou à cadeia, mas suspendeu a sentença. ‘Vocês vão concluir esse acordo e aí vocês vão ter a pena como dada. Se não cumprirem com o acordo, aí sim a coisa vai ficar diferente.’

 

Essa é uma história de milhares de histórias que eu poderia contar nessa área. Mas tudo começou com uma outra história. A justiça restaurativa tem raízes em várias comunidades, em várias culturas, em muitas tradições religiosas, mas o campo, como um todo, começou com um caso, em uma comunidade no Canadá, em 1974.

 

  Dois jovens se embebedaram e começaram a andar para cima e para baixo em uma rua. Eles estragaram 22 propriedades (casas, carros). A comunidade, claro, se irritou muito. Lógico. E o juiz que iria dar a sentença falou: ‘O que é que eu posso fazer nesse caso? Se eu adotar a resposta normal, esses jovens vão para a cadeia e jamais vão entender o que fizeram. E as vítimas não vão ter nada de volta, não vão ter retorno nenhum.’

 

Um amigo falou para ele: ‘Eles têm que se encontrar com as pessoas que sofreram esse ato.’ E ele falou: ‘Não dá para fazer isso.’ Mas decidiram o seguinte: esse amigo iria escrever uma carta sugerindo essa alternativa e a colocaria no material apresentado ao juiz. No dia da sentença, o juiz falou: ‘Não. É impossível. Eu não tenho autoridade para tomar essa decisão.’ Mas, no dia da definição da pena, falou: ‘Vocês vão se encontrar com as pessoas que prejudicaram.’

 

Nesse dia, eles ainda não sabiam como tratar da questão. Hoje, treinamos os profissionais para fazer todo esse trabalho de mediação, de restauração. Eles levaram esses dois jovens porta à porta e falavam: ‘Vocês vão bater na porta aqui e vão falar ‘Nós somos as pessoas que fizemos aquele ato.’ Nós vamos estar bem atrás de vocês.’ Eles encontraram ali todo tipo de pessoas. Desde pessoas mais preconceituosas até uma senhora cristã que disse: ‘Entre. Vamos tomar um chá. Vamos comer um biscoitinho.’ Encontraram uma gama muito diferente de pessoas. Apesar de uma técnica ainda primitiva, o resultado foi muito bem sucedido. E esses jovens, esses infratores, não souberam o que viria a acontecer com o caso deles.

 

Poucos anos atrás, um desses jovens estava dando aula numa faculdade e alguém de um programa contou essa história. Aí caiu a ficha dele e ele falou: ‘Espera aí. Essa é a minha história. Esse aí sou eu.’ No trigésimo aniversário desse caso, todos se reuniram e fizeram uma dramatização do caso como um todo. Foi assim que tudo começou.

 

Começou então com casos criminais. Esses dois casos aí exemplificam muito bem. E também começou com casos menores. No início, fazíamos muito casos de roubos, de invasões. Porque nesses casos, para a vítima, há uma violação muito grande. É complicado você saber de que tipo de crime uma pessoa foi vítima. Esses sistemas jurídicos estão tão sobrecarregados, que a essas invasões nem se dá muita atenção. Então, no início, eram mais casos relativos a invasões.

 

Hoje temos programas no mundo todo, inclusive para os crimes mais graves. Só nos Estados Unidos, em 24 estados há programas para vítimas de crimes graves. Elas se encontram com os infratores na prisão. Isso se expandiu por todo o sistema criminal. Começamos com juízes. Agora as comunidades vêm trabalhando com os promotores e com a polícia para que esses casos nem cheguem ao sistema de justiça.

 

Apesar de ter começado com crimes mais leves, houve também uma expansão para outros países: Japão, Rússia, Coréia, Nova Zelândia, Austrália. A lista aqui é interminável. E na Nova Zelândia – e eu sei que vocês já estiveram lá avaliando o sistema deles –, todo o sistema de justiça juvenil está organizado baseado na Justiça Restaurativa. Na Nova Zelândia foi mudada a ordem. Em vez de ser o tribunal a primeira linha, o tribunal é a retaguarda. Primeiro há uma conferência restaurativa. Radicalmente reduziram o número de processos, reduzindo a carga do Judiciário e inclusive também a população carcerária.

 

A expansão foi  além da justiça criminal, principalmente  nas escolas. Muitas escolas começaram a avaliar seus processos disciplinatórios e perceberam que o que faziam era duplicar o sistema de justiça criminal. Quando alguém cometia um delito, violava uma regra, ouvia: ‘Agora você vai ser punido. Vai para o diretor. Vai ser expulso da escola.’ E não funcionava. Não tem funcionado. Então, cada vez mais, esses programas vêm usando procedimentos disciplinatórios restaurativos.

 

Na Nova Zelândia, a escola que tinha enviado o maior número de pessoas para um tribunal juvenil, na cidade de Wellington, era a principal fonte de infratores que chegavam ao sistema judiciário. Depois de começarem com um programa de mediação e um programa restaurativo, conseguiram reduzir o número substancialmente. Existe uma conexão entre o que fazemos na escola e o que fazemos nos tribunais. Então a Justiça Restaurativa já adentrou em várias áreas. Foi iniciada uma comissão de restauração na África do Sul também, pensando no que fazer para atacar o problema da violência.

 

O que é que é Justiça Restaurativa, então? Como alguns dos autores já disseram, é, na verdade, uma oportunidade para vítimas e infratores, que estiverem de acordo, se encontrarem. Há outras formas de Justiça Restaurativa, mas as mais conhecidas são as que permitem a reunião entre vítimas e infratores, oferecendo uma oportunidade para que as vítimas façam as perguntas que as incomodam. Elas têm a oportunidade de falar: ‘Olha, o que você fez para minha vida foi isso.’ E também lhes dá uma oportunidade de indagar: ‘Que tipo de pessoa é essa?’ Porque as vítimas às vezes imaginam que o infrator é uma figura maior do que é na própria realidade. Têm também uma oportunidade de se expressar quanto ao que precisa ser feito para reparação do dano e também para que os infratores entendam a extensão do mal. É realmente uma oportunidade de fazer alguma coisa para aliviar essa dor. Eu vou falar um pouco mais sobre isso depois.

 

Há várias formas de Justiça Restaurativa. Geralmente esse modelo é chamado de mediação vítima-infrator. É um modelo bastante individualizado. Nesse sistema é importante ter um facilitador, um mediador. Na reunião acontece o seguinte: você recebe uma indicação da polícia ou do sistema judiciário ou de uma escola e, depois de fazer uma avaliação, você designa um mediador, um facilitador. Ele vai primeiro se reunir separadamente com cada parte para falar sobre o que houve, quais são as necessidades, as percepções, etc. E pergunta aos envolvidos se estão dispostos a participar da reunião.

 

Na reunião, todos têm a oportunidade de contar a sua história, de falar, de expressar como se sentem, de fazer as perguntas que desejarem e dizer o que precisa ser feito – se algum tipo de acordo, de restituição. Pode ser uma compensação financeira, um trabalho comunitário. Às vezes, no delito, por haver uma relação doentia entre as duas pessoas, firma-se um contrato comportamental: ‘Esse vai ser o comportamento que eu vou adotar daqui pra frente.’ Temos muitos casos em que uma violência grave começou na escola com as pessoas fazendo ofensas racistas. O acordo poderá ser: ‘Eu vou parar de tratar você dessa forma. Vou passar a adotar esse comportamento a partir de agora.’ Essa é mediação vítima-infrator, também chamada de conferência vítima-infrator.

 

Na nova Zelândia temos as conferências familiares. Eles acreditam que, com jovens, a participação da família é importantíssima. E que, se houver essa participação, eles vão passar a ter um poder maior para solucionar os seus próprios problemas, mesmo quando se trata de famílias disfuncionais, de famílias problemáticas. Mesmo com jovens de rua, sempre se encontra alguém que é importante para aquela criança, como se fosse uma família alternativa, digamos assim. Na Nova Zelândia, por exemplo, participam da conferência a vítima e os seus parentes, a polícia – porque a polícia realmente apresenta o inquérito lá –, um advogado treinado e também o coordenador de justiça, que vai ser o mediador, o facilitador. Então trata-se de um grupo bem grande nesses casos. E eles têm a responsabilidade de todo o caso. A pessoa vai para a cadeia ou não? Deve haver um reembolso? Esses jovens precisam de tratamento? E é um processo consensual. Todos têm que estar de acordo. E todos podem interrompê-lo. É um processo realmente muito interessante.

 

O terceiro modelo, que teve um impacto enorme em muitas regiões do mundo, é o que chamamos de processo circular ou círculos de construção de paz. Começou com um grupo de indígenas, no Canadá. Um juiz percebeu lá que muito do que ele fazia, como juiz ocidental, não era muito adequado para aquela situação. As pessoas daquela comunidade processam sempre tudo em círculos. E ele começou a usar o processo circular, contando com a participação de mais pessoas. Você tem como se fosse um cachimbo da paz, mais ou menos assim. Cada um só fala quando tiver com esse objeto. É um processo muito potente porque conta com a participação da comunidade e de alguns moradores. Disse anteriormente hoje aqui que permite que você fale não só sobre o delito em si, mas sobre o que vem acontecendo na comunidade, sobre o que precisa ser feito para tratar do problema na comunidade.

 

Esse é um processo crescente para ser usado não só em casos criminais. Muitas escolas também usam esses processos circulares. Alguns professores dão início a sua aula ou terminam sua aula numa formação em círculo. Quando um garoto é suspenso, por exemplo, algumas escolas usam um círculo para reintegrar esse aluno. São muitas as possibilidades.

 

Esses três modelos, então, são os modelos mais conhecidos de Justiça Restaurativa. A Justiça Restaurativa é uma maneira de se implantar justiça, mas é mais do que isso, como já foi dito também anteriormente. É também uma filosofia, uma estrutura, como um fotógrafo, como se fosse um conjunto de lentes. O sistema legal define o crime como uma violação direta. Você, como advogado, tem que determinar qual lei foi violada e depois perguntar quem cometeu essa violação e qual é a punição merecida. Eu sempre falo para os advogados: ‘Você gasta o tempo assim – quais leis violadas, quem fez e qual a punição.’

 

A Justiça Restaurativa tenta trazer novas perguntas: Quem sofreu? Quando você causa dano a alguém, essas pessoas têm necessidades. Quais são essas necessidades? Quem vai suprir essas necessidades? É um conceito bastante simples. As nossas tradições religiosas, culturais, os nossos ancestrais entendiam que o que está errado com o delito é o dano causado. O importante é o dano que foi causado. Sempre que eu causar um dano, eu tenho uma obrigação. E a obrigação o que é? É tentar consertar aquilo que eu fiz, dentro do possível. É sobre isso que falamos aqui hoje – é tentando reparar, restaurar o que eu fiz. O foco não pode ser a punição apenas, mas sim a restauração do dano causado.

      É um esforço. A maioria de nós está convencida que precisamos de um sistema legal. Ele faz coisas muito importantes, mas, em algumas coisas, ele não se sai tão bem. É neste lugar que está o porquê da gente fazer Justiça Restaurativa. Isso veio de um esforço para abordar algumas coisas que o sistema de justiça não fazia bem. Há duas grandes áreas, uma delas tem a ver com as vítimas. As vítimas não recebem justiça porque o crime é contra o Estado. Eu estive envolvido no caso de Timothy McVeigh em Oklahoma e o julgamento era Timothy contra o Estado norte-americano. As duas mil vítimas não tinham uma posição jurídica. Elas tinham que ir ao Congresso e conseguir um mandado para ver o seu próprio caso, para ver o seu processo. Um dos nossos especialistas em trauma nos Estados Unidos disse o seguinte: ‘Se você quiser um sistema para criar um trauma pós-traumático, nada melhor do que um tribunal de justiça.’ O nosso sistema cria esse estresse pós-traumático. Então queríamos um jeito de dar às vítimas acesso à justiça e cuidar das suas necessidades.

 

Começamos a trabalhar com vítimas. Trabalhei com muitas vítimas de crimes ao longo dos anos e comecei a perceber algumas das coisas que elas passam. Eu às vezes treino policiais, juízes e outros para ajudá-los a entender o que a vítima passa. Porque as pessoas que trabalham com vítimas todo dia freqüentemente não entendem o que acontece com elas e porque elas estão onde estão. Quando você passa por algo assim, tem sonhos, raivas, medos. Há uma série de necessidades que eu ouço das vítimas. Algumas delas, elas precisam destinar ao terapeuta ou à família, mas há uma série de necessidades que eu chamo de necessidades de justiça.

 

Quando eu trabalho com uma vítima que eu sinto vingativa e agressiva é freqüentemente porque a necessidade dela de justiça não foi atendida. Ao passo que vítimas que conseguem refazer sua vida e se recuperar é porque a justiça que eles precisavam foi feita e é isso que eu chamo de necessidades restaurativas. Uma delas é a segurança. Elas querem saber que algo está sendo feito para que não aconteça isso de novo com elas e com outros. Elas querem saber que outros não vão passar pelo que elas passaram e querem segurança.

 

A segunda coisa - eu não vi dados do Brasil, mas, na maioria das pesquisas que eu vejo no mundo, as vítimas acham isso muito importante – elas querem respostas a perguntas. ‘Por que você colocou uma bomba no meu quintal? Por que você invadiu a minha casa? Como é que você sabe que eu não estava, você estava observando a minha casa? E por que é que você fez um ato que violou meu domicílio? E se eu estivesse em casa?’ Uma família que, por exemplo, perdeu uma filha assassinada quer saber: ‘O que foi que a minha filha disse? Quais foram as últimas palavras?’ ‘O que é que meu filho assassinado estava fazendo naquela noite?’ Eles querem respostas. Infelizmente – pelo menos no nosso sistema legal, que é tão limitado pelo que é ‘legalmente relevante’ – a vítima não recebe resposta. Eu tive um amigo que era advogado num fórum. Eles não recebem as respostas que querem. Eles recebem justificativas legais. Queremos que as vítimas tenham respostas às suas perguntas porque isso é importante para restaurar sua saúde mental.

 

Uma terceira informação, um terceiro aspecto é que elas precisam contar sua história, o que chamamos de contar a verdade. Alguma coisa terrível aconteceu com elas que elas tentam integrar na vida. Eu poderia prosseguir falando da psicologia disso por muito tempo, mas elas precisam simplesmente contar sua história. Eles restauram a sua história quando a contam. A Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul entendeu isso. Por isso que fizeram audiências públicas, nas quais as vítimas podiam contar sua história. Era muito importante. Especialmente importante, às vezes, contar a história para quem cometeu o ato, o delito. Eu fui mediador num caso serial de estupro e as vítimas diziam: ‘Eu quero que ele saiba o que ele fez da minha vida. Eu quero que ele saiba que eu comecei a usar droga, perdi meu emprego, perdi meu marido, tudo isso por causa do que ele fez.’ Era importante para elas contar. Então a terceira coisa é dar chance de contar a história.

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Em quarto lugar está a experiência de uma palavra estranha, que significa assumir a autoridade. Quando alguém invade a sua casa e te aponta uma arma, ele tem um poder em cima de você. Se você não consegue tirar ele dos sonhos e tem essa raiva dele, você sente que perdeu as rédeas da sua vida. Essas pessoas querem retomar suas rédeas. Em todo nosso sistema convencional de justiça, quanto mais você envolver a vítima, mas ela vai ver que foi tratada com justiça. Porque ela quer retomar as rédeas da sua vida. É um jeito de envolver a vítima. Dar para ela opções é o que a Justiça Restaurativa busca.

 

Finalmente, às vezes você precisa de restituição do pagamento. Mas muitas vezes eles dizem: ‘Não é só o pagamento.’ Eu lhes disse uma história da bomba que explodiu. Não é o dinheiro, é alguém dizer: ‘Eu sou responsável e você não é.’ Acho que todos temos a necessidade de equilibrar a contagem. Se eu lhe dou um presente, você vai pensar que deve me retribuir. Ou você calcula na sua cabeça porque não é necessário retribuir. Mas a razão de trocarmos presentes de natal e pedir vingança vem do mesmo lugar. A gente precisa acertar as contas. Eu acho que há jeitos positivos e negativos de fazer isso. Restituição, pedido de desculpas são um jeito de equilibrar a contagem.

 

Resumindo: a Justiça Restaurativa se esforça para atender algumas necessidades das vítimas as quais a justiça convencional não atende. Quando vítima e infrator não conseguem se encontrar, a gente trabalha com o tribunal para fazer com que a experiência seja mais restaurativa. Por outro lado, nós fazemos justiça em nome da responsabilidade. Os juízes me dizem o tempo todo que o infrator precisa ser responsabilizado pelo que faz. Mas a questão é ‘O que é responsabilidade?’ 'O que o infrator faz e por quê?' Ele usa aquilo que se pode chamar de estratégia neutralizante. Ele se desculpa. Se você trabalhou com um, você viu todos. ‘Eu só roubo de gente rica. Eles merecem.’ Eu já tive gente que invadiu casa e disse: ‘Eu peguei as fotos da família e virei para a parede porque eu não queria ver a cara da família para não achar que eu estava ofendendo eles.’ Eles fazem algo através da negação. Aí um amigo meu, juiz da Nova Zelândia, diz: ‘Uma via, por exemplo, é ‘faça o Estado provar’’. Então o advogado dizia aos infratores: ‘Não importa o quão culpado você seja, diga que você é inocente e faça o Estado provar sua culpa.’ Isto é a ferramenta maior para a negação. E aí a gente coloca eles em prisões onde não há cultura da responsabilidade.

 

Deixa eu ler pra vocês o que um juiz americano disse sobre infratores. Ele disse o seguinte: ‘Queremos que o infrator tenha valor para ele próprio para destruí-lo. Queremos que ele seja responsável para tirar a responsabilidade dele. Queremos que ele seja parte da nossa comunidade, então isolamos ele da comunidade. Queremos que ele seja positivo e construtivo, aí degradamos ele e tornamos ele inútil. A gente quer que ele seja confiável, botamos ele num lugar onde não há confiança. Queremos que eles sejam não violentos, colocamos eles num lugar onde há violência. Queremos que eles sejam gentis e delicados e colocamos eles num  lugar onde não há nada disso. Queremos que eles não sejam assim durões e colocamos eles num lugar onde os durões são respeitáveis. Queremos que não nos explorem, colocamos eles na prisão, onde todos exploram. E colocamos eles numa posição de parasitas, totalmente dependentes de nós.’ Preocupava-nos que a responsabilidade que temos no sistema legal não é responsabilidade. Nós achamos que responsabilidade é começar por entender o que você fez, quem foi a pessoa que você magoou, que você machucou.

 

Também nos preocupava a maneira de deixar a comunidade fora do processo. O juiz Stuart, no Canadá, começou a usar esse processo de círculos e ele dizia: ‘As nossas comunidades são tão fracas porque dizemos: ‘Deixa isso para os profissionais. Mantenha a comunidade fora. Agora a comunidade se constrói, vai resolvendo o problema junto. Quando a comunidade pode ser parte, reconstruímos a comunidade.’ Então muitos de nós acreditam que, mesmo quando a comunidade está tão destruída, a Justiça Restaurativa ajuda a refiar o tecido que está esgarçado. E é isso que queremos fazer. Algumas pesquisas recentes dizem e por isso atribuo aos nossos resultados: a Justiça Restaurativa funciona. Ela está avançando porque funciona.

 

Nos Estados Unidos há um trabalho com uma organização na Inglaterra que observou 37 estudos, no mundo todo, de programas de Justiça Restaurativa que reuniram vítimas e infratores. O modelo não me empolgou muito porque alguém da polícia que fazia a mediação. Isso me preocupa um pouco. Mas eram estudos que comparavam isto à não existência de um processo restaurativo. Eles perceberam que diminuíram as infrações – um terço de redução entre jovens. Os infratores jovens que passam por isso, raramente fazem de novo. E, se cometem uma ofensa de novo, o crime é menos grave. Verificou-se que era muito eficiente para crimes graves. O índice de reincidiva é mais reduzido para os crimes sérios. Percebeu-se também que o estresse traumático das vítimas diminuiu muito. Projetou-se que, se isso fosse feito ao nível nacional, reduziremos o custo da saúde pública porque menos vítimas teriam que passar pelo sistema de saúde mental.

 

Verificou-se também que diminuiu o desejo de vingança da vítima e, como na maioria dos nossos estudos, verificou-se que as vítimas que passaram por isso tinham menos medo depois. Também averiguaram que, tanto para a vítima quanto para o infrator, o índice de satisfação era elevado. Também perceberam que quando isso era trabalhado com promotores e advogados, eles conseguiam manter o processo fora da justiça e isso reduziu o custo dos processos todos. Agora, mesmo se ela não tiver efeito sobre a diminuição de crimes, ela ajuda muito as vítimas. Eles continuaram dizendo que a prova da eficiência da Justiça Restaurativa é muito mais positiva do que outras políticas de justiça implementadas em nível nacional.

 

Essa pesquisa é muito consistente com o resto do que vimos: alto nível de satisfação para infratores e vítimas, menos reincidiva na parte dos infratores, melhor entendimento e assim por diante. Eu gostaria de sugerir algumas razões do porquê desses resultados, porque é que eles surgiram. Para as vítimas, eu acho é que simplesmente é porque atendeu às necessidades delas. Elas querem poder perguntar à pessoa que fez e só a pessoa que fez vai ter a resposta. E elas querem uma chance de dizer o que sentiram, elas querem tirar isso do peito, elas querem ter opções no processo. E querem ter alguma espécie de restituição e um pedido de desculpas. Então isso funciona paras as vítimas pelas razões ditas. Ajuda a atender às necessidades da vítima e reduz o trauma.

 

Do lado do infrator, eu quero sugerir três razões pelas quais eu acho que isso funciona. Eu acredito que a maioria dos infratores ou foram vítimas ou acreditam que são vítimas. E que, à sua vista, o seu crime é a resposta a isso. Um psiquiatra importante norte-americano, que foi chefe da psiquiatria de um dos sistemas penitenciários por um tempo, dizia que toda a violência é um esforço para fazer justiça ou desfazer uma injustiça, seja o que for, terrorismo ou crime comum. Alguns infratores foram vítimas e repetem a sua vitimização. Outros acreditam que foram vítimas. E a justiça nas ruas dos Estados Unidos é aquela do olho por olho. Alguém te fez, você faz de volta. E quando punidos, reforçamos a idéia de que eles são vítimas, revitimizamos. Eu acho que é por isso que o nosso sistema penal é, às vezes, tão ineficaz. Uma das razões pelas quais o sistema restaurativo funciona é porque quebra aquele círculo entre vítima e agressor. E ajuda a desmanchar a idéia de que a justiça é dar aos outros o que eles merecem.

 

Nós temos infelizmente a pena de morte nos Estados Unidos. Mas quando você executa alguém, há provas de que os assassinatos aumentam em vez de diminuir. Eu tenho a impressão que as pessoas para as quais queremos passar a mensagem que ‘se você cometer esse crime, você vai ser executado’ entendem a mensagem de que ‘tudo bem, castigue alguém que fez mal a você’. E é por isso que, penso eu, às vezes o índice de criminalidade aumenta depois de uma execução. Queremos romper esse ciclo.

 

Uma outra razão – e isso é complexo e foi muito debatido –, eu penso que tem a ver com a maneira de lidar com a vergonha. A violência é feita para evitar a vergonha ou para lidar com ela. Você vê muito disso nas ruas nos Estados Unidos. Pessoas tentam ter respeito de forma ilegítima. Os psicólogos nos dizem que a violência muitas vezes busca remover a vergonha. Quando você envergonha pessoas que já se sentem envergonhadas tem o resultado oposto.

 

Um pesquisador da Austrália fez um trabalho importante. Ele diz: ‘A gente estigmatiza no sistema legal.’ A gente diz para a pessoa: ‘Você é ruim. Você sempre foi ruim. Quando você sair da prisão, você vai ser um ex-presidiário. Na nossa comunidade, às vezes você não pode votar. Você está preso.’ E o que as pessoas fazem quando isso acontece são várias coisas. Às vezes viram os valores de cabeça para baixo. O que a sociedade diz que é bom é ruim. O que a sociedade diz que é ruim é bom. Então, na nossa América urbana, temos algo chamado código da rua, que funciona justamente fazendo o oposto do que a sociedade acha que é bom. Eu tenho um amigo que está preso há 25 anos, quase trinta. Nós falávamos de quando ele cresceu no gueto urbano da Filadélfia e eu disse: ‘O que te deu respeito?’ Aí ele dizia: ‘É o oposto do que vocês querem. Quando eu apontava a arma para alguém e meus amigos me viam fazendo isso, isso me dava respeito. A primeira vez que eu fui preso, eu passei naquele camburão pela minha comunidade, foi o dia mais orgulhoso da minha vida.’

 

Quando a gente envergonha alguém, algumas vezes ele se junta com outros e aí vem a sub-cultura da delinqüência, a reversão de valores. Se é verdade que a violência é movida, pelo menos em parte, pela vergonha e que a punição reforça essa vergonha, é uma situação bastante perigosa. A pesquisa que eu mencionei antes mostra algo chamado de um desafio. Se o infrator experimenta a justiça como algo que ele acha que não é legítimo, ele nega a vergonha e a transforma em respeito. Quando ouvimos que a vergonha acontece, mas que não devemos tentar envergonhar as pessoas, alguns acham que é preciso fazer o infrator sentir vergonha. As pesquisas dizem: ‘Não. O infrator se sente envergonhado.’ Mas tome cuidado, vergonha é uma emoção perigosa. Você não deve impô-la e sim administrá-la. A pesquisa diz que a Justiça Restaurativa funciona porque ela permite ao infrator e à vítima lidarem com sua vergonha e avançarem com isso – lidar com a vergonha de uma maneira positiva.

 

A terceira razão pela qual eu acho que funciona talvez seja a mais importante. O interessante é que a neurociência, a ciência do cérebro, reforça isso. Daniel Goleman, um americano que publicou um livro sobre inteligência emocional – vocês provavelmente conhecem isso – publicou um novo livro chamado Inteligência Social, que resume o que nos diz a neurociência. Ele diz que o cérebro humano, desde o nascimento, está projetado para se conectar com outras pessoas. Se você vê um bebê, ele tenta fazer contato. O cérebro está conectado para se ligar com os outros e é assim que aprendemos. Mas se você não se liga a seus pais, ou se você sofre abuso ou negligência, aquelas vias de passagem, as passagens neurais, que representam o aprendizado saudável, ficam distorcidas.

 

Eu ouvi um outro neurocientista analisar a Justiça Restaurativa e ele diz que ela funciona porque nada reprograma o cérebro melhor do que uma experiência de empatia. O cérebro é projetado para a empatia. Ele pode ser distorcido, mas o jeito mais fácil de aprender é pela empatia. É isso que nos dizem as pesquisas. Uma das razões pelas quais isso funciona é porque o infrator começa a entender a vítima e o impacto na vida dela. A vítima começa a entender o infrator e ambos vêem que são seres humanos e têm uma experiência de empatia.

 

Agora, eu falei um pouco a respeito da Justiça Restaurativa porque a fazemos e porque achamos que funciona. Também quero lhes dizer que ela não é perfeita. Há muito que não sabemos a respeito. Só estamos fazendo isso há trinta anos. Há muita coisa que não sabemos e uma das coisas mais empolgantes é viajar ao redor do mundo e ver como os diferentes países adaptam isso, cada um do seu jeito. A resolução da ONU ajudou muito e estimulou muito, mas não nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são muito arrogantes e não ouvem muito à ONU. Eu acho que a maioria dos americanos nem sabe que a ONU aprovou essa resolução, infelizmente.

 

Um dos desafios da Justiça Restaurativa é que é preciso pensar de maneira original e fora da nossa educação de sempre. Há um número cada vez maior de advogados se empolgando com essa idéia. Isso está entrando nas faculdades de direito. Mas há muitas idéias equivocadas. Muitos acham que é uma opção ‘soft’. Não é. É muito difícil encarar sua vítima. Tivemos casos em que trouxemos membros de gangue para enfrentar sua vítima e, quando eles se deram conta que iam enfrentar sua vítima, eles começaram a tremer tanto que precisaram de um tempo para se recompor. Não é fácil. Muita gente, muito infrator que passou por isso, disse que ir para a prisão é mais fácil. Então não é uma opção ‘soft’. Mas os outros às vezes acham que é.

 

                                   

Muita gente, na comunidade de vítimas, acha que tem a ver algo com perdão e isso não é o que a Justiça Restaurativa busca. E sim atender às necessidades da vítima e responsabilidade do infrator. Se a vítima opta por perdoar, é opção dela. Mas ela não vai sofrer pressão para fazer isso. Então essas são as concepções equivocadas. Um dos perigos que me preocupam é que a Justiça Restaurativa deve ser orientada para as vítimas. Nós, diferentemente do sistema de justiça, colocamos a vítima no centro. A ajuda para a vítima deve estar lá, quer o infrator seja preso ou não. Mas o caso, em geral, é definido pelo réu e todo mundo no sistema é treinado para trabalhar com o infrator. E na vida real isso acaba detonando um jeito básico de lidar com infratores. Eu passo muito tempo nos Estados Unidos trabalhando com grupos para garantir que sejamos responsáveis pela nossa promessa em relação às vítimas, de colocar a vítima no centro. Mas nós não acreditamos que isso realmente acontece. Às vezes não acontece e uma das minhas preocupações é que sejamos igualmente preocupados com a vítima e com o infrator.

 

Eu gostaria de concluir, usando uma observação que foi feita, falando sobre os valores na base da Justiça Restaurativa. Muitas pessoas me procuram e dizem: ‘A Justiça Restaurativa é um modo de vida.’ E eu perguntei: ‘O que essas pessoas estão falando? Estamos tentando falar de pessoas que cometeram crimes e vítimas. Como isso pode ser um modo de vida?’ Perguntava para as pessoas e não chegava à conclusão nenhuma. E quando eu estava lecionando, eu vi um exemplo. Eu visitei um presídio feminino lá na Pensilvânia, onde eu morava. Há prisões para sentenças de prisão perpétua em que há mulheres estudando Justiça Restaurativa. Eu fui visitá-las e eu descobri que estavam vivendo suas vidas assim, sempre que alguém estava fazendo alguma coisa errada. Essa é a forma da Justiça Restaurativa. Eu achei a observação interessante.

 

Eu dei aulas para um grupo na Nova Zelândia, em setembro, e perguntei: ‘O que essas pessoas querem dizer quando afirmam que a Justiça Restaurativa é um modo de vida?’ Falam que ela sugere relacionamentos, representa aquela vontade de participar de uma comunidade, que a palavra restauração sugere reconexão e conexão, ou seja, você restaura, repara. A palavra maori, lá na Nova Zelândia, é a palavra que implica participação, ou seja, a Justiça Restaurativa trata de valores. Valores que são geralmente submersos pelas culturas modernas. São muitos os valores muito importantes que eu poderia mencionar. Um deles seria o respeito. Cada vez mais eu me convenço de que o que queremos demonstrar é respeito a todos os participantes.

 

Eu estou convencido de que o comportamento violento tem na base o desejo de respeito. E o motivo pelo qual o sistema judiciário não funciona é porque não damos o respeito que as pessoas merecem. Quer dizer, violência gera mais violência. Não se diz isso? Desrespeito gera mais desrespeito. E quando trabalho com as vítimas eu acabo descobrindo: o trauma acontece justamente pelo desrespeito do infrator e também o desrespeito da comunidade e dos seus entes queridos. É muito difícil conversar sobre essas coisas. As pessoas vêm falar: ‘Você precisa superar. Você precisa perdoar. Você não precisa ficar tão irritado. Por que você não consegue dormir a noite?’ E eles se sentem desrespeitados. E o sistema judiciário repete esse desrespeito. O que estamos tentando é oferecer uma experiência respeitosa para todos, tentando reparar e restaurar esse respeito. Esse é um valor, o valor do respeito.

 

Em segundo lugar, há o valor da responsabilidade. Pelo menos na minha sociedade se dá muita ênfase aos direitos. ‘Olha, precisamos fazer valer os nossos direitos.’ Ninguém fala sobre responsabilidade com a mesma freqüência. Um dos valores que a Justiça Restaurativa tenta restabelecer é essa idéia, essa noção de responsabilidade, que inclui a percepção de que o nosso comportamento causa impactos nos outros. As minhas ações causam impactos nos outros e quando há impactos negativos, há responsabilidades associadas a esse comportamento. Então há uma balança, um equilíbrio entre direitos e responsabilidade. Aprendemos que devemos ser responsáveis pelo nosso comportamento. O segundo valor então seria a responsabilidade.

 

E o terceiro – em inglês, os três valores começam com R, eu não sei em português – é relacionamentos ou interconexões. Tentamos nos lembrar de que tudo aquilo que os nossos ancestrais sabiam era que estamos conectados. Voltando às nossas tradições, sempre estivemos interconectados. Por isso que muitos processos tradicionais são processos restaurativos. O que eu faço afeta a harmonia não só das pessoas à minha volta, mas toda uma comunidade. A Justiça Restaurativa tem por base essa idéia de estarmos interconectados, tentando reaprender essa noção. Não somos indivíduos isolados numa sociedade, estamos também interconectados de diversas formas.

 

Eu estava falando com um amigo maori lá na Nova Zelândia. Ele disse que a Justiça Restaurativa nunca tinha conexão para ele. Ele não conseguia se expressar. A Justiça Restaurativa trata da construção e reconstrução das comunidades e relacionamentos. Então é isso que as pessoas querem dizer quando afirmam que a Justiça Restaurativa é um modo de vida. Eu vou contar mais uma história, pois me disseram que eu tenho ainda mais alguns minutos. E depois eu vou passar para a conclusão.

  Quando eu estive na Nova Zelândia, eu conversei com esse amigo maori que praticava a Justiça Restaurativa já havia muito tempo. Ele tinha entrado numa loja e reconheceu a mãe de um infrator com quem ele tinha trabalhado há alguns anos. Ele era um coordenador do Estado, um moderador, um facilitador. Nesse caso, três jovens maoris (indígenas da Nova Zelândia que compõem de 10 a 15% da população) foram infratores num ato de vandalismo contra a escola e montou-se uma conferência para tentar descobrir o que deveria ser feito. Polícia, advogado e etc. participaram. Eram quase cem pessoas participando: alunos, seus pais, diretores da escola, o corpo de bombeiros também – porque o ato acabou causando um incêndio – e ainda a empresa de luz – porque um transformador havia sido queimado.

 

Dois dos jovens estavam bastante respeitosos, bastante quietos, calados. O terceiro jovem estava de boné, olhava para o chão e os seus pais também estavam muito irritados. Ele falou: ‘Espera aí. Como é que eu vou cuidar desse caso aqui?’ Mas nesse processo havia uma garotinha cuja mãe havia falecido por conta de um câncer. Ela tinha recebido um estojo especial de presente e esse estojo havia sido destruído no incêndio. Então quando as vítimas começaram a falar, essa garotinha foi falar e contar essa história do estojo que ela havia recebido da mãe. Quando ela falava, eu olhei e esse garoto estava chorando. Anos depois, o facilitador encontrou a mãe do jovem lá na loja e ela falou: ‘Você lembra desse caso? Eu nunca havia visto meu filho chorar. Somos maoris. Olha, a gente achou que não era maori mesmo. Eu achava que ele era um chocolate – um prestígio (branco por dentro e preto por fora). Mas, eu nunca tinha visto meu filho chorar. O meu marido o espancava, talvez a causa do problema, e ele jamais chorou. E esse realmente foi um momento, uma virada na sua vida. Hoje ele tem uma família, já tem os seus filhos, está trabalhando, está se saindo muito bem. Eu gostaria de agradecê-lo por essa grande virada na vida dele.’ É justamente sobre isso que estamos falando, sobre oferecer um ponto, uma virada na vida das pessoas.

 

Uma outra história: eu leciono num programa de pós–graduação para práticos no mundo todo. Então, alunos de cinqüenta países freqüentam as minhas aulas – jornalistas, advogados, pacifistas, trabalhadores de unidades de trauma, etc. E tinha um rapaz, comandante de uma força policial da fronteira no Paquistão, numas áreas ali mais complicadas onde opera o Taliban. Ele vinha com uma bolsa para estudar, para se aperfeiçoar e ele se interessou por Justiça Restaurativa e ficou principalmente interessado no sistema circular. O sistema dele para tomar decisões é similar. Então ele ficou muito interessado no processo circular que era bastante semelhante ao dele. Ele usava círculos com a sua família – faziam essas reuniões circulares.

 

No nosso programa você precisa fazer um estágio no final do curso e eu o enviei para uma grande cidade onde a polícia aplicava a Justiça Restaurativa. Ele trabalhou num reformatório para jovens com membros de uma gangue. Era um presídio de segurança máxima. Aí ele decidiu adotar o modelo circular com os jovens e o pessoal falou: ‘Impossível. Você não vai conseguir.’ Depois de uma semana, eles não só sentavam em círculos, mas rivais conversavam e pediam desculpas uns aos outros. E logo a equipe do presídio também participava das reuniões. ‘Será que a gente consegue implantar no sistema inteiro?’ – essa foi a pergunta feita. Um supervisor escreveu e falou: ‘O Kamal (era o nome desse jovem paquistanês) trouxe de volta esse sentido de comunidade que a gente acabou deixando para trás.'

 

Eu gostaria de encerrar a minha palestra com esse comentário. Não sei se vocês perceberam que houve agora há pouco tempo o aniversário de morte de Martin Luther King. Eu só conversei com ele uma vez na minha vida toda. Mas eu estudei onde ele estudou e também lecionou. Eu fui o primeiro aluno branco a se formar naquela faculdade. Ele se tornou um mentor espiritual para mim. Em 63, ele fez um discurso muito famoso com uma metáfora de justiça, usando um rio. Ele falou: ‘Eu tenho o sonho de que a justiça vai fluir como a água e como uma torrente.’ E eu gostaria de concluir essa aula com esse sonho. O meu sonho é de que, quando falarmos de justiça, eu não precise mais falar de Justiça Restaurativa. Porque o meu sonho é: algum dia a justiça vai ser restaurativa. A justiça vai buscar a cura e reparar a comunidade. Esse é o meu sonho. Muito obrigado."

 


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