03/07/07: Justiça Itinerante de Macapá leva cidadania às comunidades ribeirinhas

Aqui começa o Brasil
 

Macapá é a única capital brasileira banhada pelo rio Amazonas. Em um passeio de barco, é possível avistar as comunidades ribeirinhas que vivem em palafitas sobre as águas. Na maioria delas, a única forma de acesso é pelo rio. Essa população, apesar da pujança da floresta Amazônica, vive em situação de extrema pobreza.

Nesse lugar, em 1996, foi criado um projeto especial: uma embarcação com uma equipe multidisciplinar a bordo, que desce o rio para resolver os problemas legais do ribeirinho.

A idealizadora do projeto é uma juíza que acredita que é necessário humanizar a Justiça. “Aqui começa o Brasil”, brinca Sueli Pereira Pini, uma paranaense de Sertanópolis, que cruzou o Brasil, com uma escala em Rondônia, para prestar um concurso para a Justiça do recém-criado estado do Amapá.

 Em 1995, Sueli Pini integrou a equipe que desenhou o formato atual do Juizado Especial. E com isso foi possível a embarcação “Tribuna – A Justiça Vem a Bordo”. “Os juizados especiais representam na história da Justiça brasileira um divisor de águas. Talvez o efeito histórico mais importante que a Justiça já teve em toda a sua existência no país. Poder propor pessoalmente a sua demanda é muito revolucionário”, diz Sueli Pini.

O Tribuna sai de Macapá a cada dois meses em direção ao arquipélago do Bailique (7 mil habitantes, distribuídos em 8 ilhas e 32 vilarejos), a 200 quilômetros de distância. Bailique em tupi quer dizer ilhas que dançam e traduz precisamente a condição geográfica dessa região. O rio Amazonas, considerado o mais caudaloso, carrega uma grande quantidade de sedimento e, com isso, modifica continuamente o desenho do arquipélago. Ilhas se formam e desaparecem ao sabor do rio.

Em boas condições temporais, o barco leva 12 horas para realizar o percurso. Com 22 metros de cumprimento e uma tripulação de aproximadamente 46 pessoas - entre juiz (que pode atuar em qualquer área do direito: Cível, Família, Criminal, Órfãos, Sucessões, Juizado Especial Cível e Criminal, Infância e Juventude) escrivão (para fazer registros de crianças e casamentos), promotor, policial militar (para atuar se for preciso levar alguém para a prisão em Macapá), psicólogo, assistente social, enfermeiro, médico, dentista, defensor público, cozinheiro, entre outros profissionais - o barco ancora em quatro localidades (Vila Progresso, Livramento, Ipixuna e Itamatatuba) com a missão de ouvir as pessoas, mediar conflitos, prestar serviços de saúde, ou seja, levar Justiça e cidadania à população.

 

Critérios como oralidade, simplicidade, economia processual e rapidez, são as palavras de ordem da tripulação do tribunal ambulante, cujo objetivo é obter a conciliação entre as partes.

 

“Num país de dimensões continentais como o nosso, por mais que a Justiça Federal esteja capilarizada com sedes e comarcas, em vilas e rincões, temos ainda muitos vácuos de sua presença. Mas a gente tem que pensar numa distância muito mais perversa que a geográfica, que é a cultural e, nesse sentido, a Justiça Itinerante e os juizados especiais têm uma grande possibilidade de cumprir o seu papel”, diz Sueli Pini.

A 76ª jornada da Justiça Itinerante do Amapá saiu do porto de Santana, cidade vizinha a Macapá, no dia 17 de junho, rumo ao arquipélago de Bailique, onde permaneceu até o dia 22 do mesmo mês.

Arquipélago do Bailique – Logo depois do amanhecer, várias canoas se aproximam do vilarejo. Quando a porta do Tribunal improvisado num centro comunitário se abre, um grande número de pessoas aflui. Uns vem registrar o filho que acabou de nascer, outros querem se casar “depois de 14 anos vivendo em pecado”, outros ainda, querem fazer um reconhecimento de paternidade. São inúmeras histórias.

 

Segundo o marinheiro Moisés de Mira Pena Filho, que conduziu o barco na primeira jornada, naquela viagem os trabalhos começaram às 7 horas e se estenderam até 2 da manhã, à luz de velas. Sueli Pini relembra o fato: “Quando eu fiz a primeira jornada, parecia que eu estava entrando num túnel do tempo, rumo à Idade Média. Nós percebemos que milhares de pessoas viviam em estado de exclusão absoluta. Não existia energia, água potável, serviço de saúde, ninguém tinha documentação civil, não recebiam nenhum benefício, tal o estado de isolamento em que estavam. Hoje, apesar de ainda terem problemas por deficiência de uma série de serviços, quando vejo que já têm até Lan House, tenho a sensação de que estamos ajudando a contribuir para mudar a realidade dura que existe por aqui.”

Atualmente, o DVD mais pedido em uma das locadoras de Vila Progresso é “As Torres Gêmeas”, de Oliver Stone, com Nicholas Cage e Allison Jimeno, que narra o drama de dois policiais soterrados nos escombros do World Trade Center, no fatídico 11 de setembro.

 Para Sonia Regina dos Santos Rodrigues, técnica judiciária, antes o que imperava nessa região era a lei da força, a justiça pelas próprias mãos. A partir do momento em que a Justiça Itinerante passou a atuar na região, a cultura local começou a mudar. “As leis eram algo muito distante, eles matavam, ofendiam, como se aquilo fosse uma coisa natural. A partir do momento em que a gente passou a vir para essas jornadas, começou a trazer para eles uma espécie de cultura, não só geral, mas especialmente a cultura jurídica. Eles passaram a entender que existem leis e que elas devem ser cumpridas.”

 O agente distrital Manoel Queirós Barbosa, espécie de prefeito local, acredita que o trabalho da Justiça Itinerante foi muito importante para que a comunidade se desenvolvesse. “Quando se falava em juiz, a população se assustava. Hoje nos sentimos honrados com esse trabalho.”

 
A economia da região é de subsistência. A maioria das pessoas vive da pesca e da extração de alguns produtos como o açaí, o palmito, a andiroba. Segundo Sueli Pini, grande parte das pessoas do arquipélago sobrevive com um salário mínimo por mês.

Para o médico que acompanha essa jornada, Iran Bernardo Souza, os maiores problemas de saúde da população são as deficiências alimentares, apesar de toda a riqueza da floresta. “Outro problema sério dessa região são as parasitoses causadas pela falta de saneamento básico”, diz.

Rosilene Pires dos Santos, 31, moradora da Vila Progresso, aproveitou a jornada para conferir se havia recebido um benefício federal. Pelo sorriso estampado, ficou claro que havia sido contemplada.“Estou precisando muito desse dinheiro, vou comprar o material escolar para os meus filhos. Meu marido é pescador. Na época do verão, a pesca falha e a gente vive aquela situação. Eu não ganho nada, trabalho em casa e tenho sete filhos”, diz.

Para o juiz substituto João Teixeira de Matos Júnior, que participou desta 76ª jornada, a maioria das comunidades que são atendidas são aquelas que ninguém quer olhar. “Eu costumo dizer que a Justiça Itinerante traz um rosto humano para aquelas pessoas esquecidas pelo Estado.”

 

No arquipélago do Bailique é comum a mulher engravidar aos 11 ou 12 anos de idade, após a menarca. Grande parte das meninas, logo depois do parto, dão a guarda das crianças para as avós. É muito comum observar famílias com gestações simultâneas em três gerações.

 

Ilsa de Oliveira, 20, mãe de Isabele, 2, entrou na Justiça para fazer um reconhecimento de paternidade. “Toda a vez que a jornada vem aqui, eu também venho, mas ele nunca aparece. Nós vivemos cinco meses juntos. Quando eu estava com um mês de gravidez, me separei. Meus pais me ajudam a cuidar dela. Eu só queria que ele reconhecesse a Isabele.”

 

A defensora pública Ely Célia Araújo Pinheiro reuniu Marinete Ferreira, 22, Adenildo dos Santos, 27 e Rosilda Bastos de Almeida, 56 para tentar uma conciliação. Marinete procurou a Justiça porque queria que o ex-marido lhe desse a casa de dona Rosilda, mãe de criação de Adenildo, para morar. Adenildo vendeu a casa de Marinete, que está há um ano morando com seu pai. Ele alega não ter dinheiro para pagar metade da casa ou mesmo a pensão alimentar para as filhas. Ele vive da extração do palmito, mas está com um ferimento na perna causado pelo facão e não pode trabalhar. Adenildo recebe 20 centavos por palmito. Na conciliação, os ânimos se acirraram. Depois de longa conversa, ficou decidido que Marinete vai ficar com a filha mais velha e Adenildo com a caçula. Assim ambos ficam isentos de pagar pensão. Dona Rosilda vai ajudar o casal, vai dar a Marinete R$ 100,00, metade do valor da casa. Uma composição amigável entre as partes foi estabelecida. Todos vão embora em paz.

 
Sueli Pini tem a consciência de que o cidadão da região ribeirinha da Amazônia, ao comprar um produto, paga o mesmo tributo que um paulistano morador da Avenida Paulista, o mesmo que um gaúcho de uma cidade de ponta como Porto Alegre. “Ele também não tem Direito aos mesmos serviços públicos?”, questiona.

 

Para Sueli Pini a Justiça Itinerante é um meio efetivo para romper as fronteiras geográficas, com é o caso da Amazônia, e culturais, como acontece em São Paulo. “Por mais que você diga que, na metrópole, o cidadão pode pegar um ônibus, um metrô, um motoboy e chegar ao fórum, eu me pergunto: e chegando lá, como ele aciona essa Justiça? Na Justiça Itinerante, o juiz tem que se despir de uma série de formalismos e burocracias que distanciam o cidadão do acesso à Justiça.”

 
Box: Em 1995, a Lei federal 9099/95 criou os juizados especiais, que substituíram os juizados de pequenas causas em todo o país. O objetivo era desburocratizar o julgamento e valorizar a conciliação para resolver os conflitos entre as partes, desafogando a Justiça comum. O Juizado Especial Cível ganhou a atribuição de julgar causas no valor de até 40 salários mínimos. Os criminais passaram a avaliar crimes com penas máximas inferiores a um ano. Com a vigência dessa lei, quem recorre aos juizados especiais não precisa ter assistência de um advogado nem pagar pelo serviço que recebe.

 

 

Afogando em Números

A 76ª jornada da Justiça Itinerante Fluvial atendeu:

Justiça

Registro de Nascimento Tardio 5

2a Via de Registro 1

Reclamação Cível 5

Proteção Específica 2

Termo Circunstanciado Recebido 21

Retificação de Certidão de Nascimento 1

Audiências Realizadas 10

Despachos Proferidos 30

Sentenças Proferidas 5

Mandados Expedidos 32

Ofícios Expedidos 8

Decisão 17

Ação de Guarda 1

Solicitações de Consultas a Processos 21

Termo de Guarda Expedido 1

Carga à DEFENAP  1

 

Infância e Juventude

21 atendimentos

Defensoria Pública

Petições Iniciais 1

Atendimentos 30

Audiências 4

Orientação Jurídica 30

Execução de Alimentos 3

Ação de Guarda 4

Ação de Divórcio 1

Acordo espontâneo verbal 1

Embargos à Penhora 1

Alegações Finais 1

Total 77

Delegacia regional do trabalho – DRT

Carteira Profissional 73

Clínica Médica Total

(Pediatria, enfermagem, clínica médica, ambulatório)

 

2.011 atendimentos

Odontologia

219 atendimentos

 

Politec

RG 54

 

Atendimento Psicológico e Assistente Social

46 atendimentos

 

Companhia de Águas e esgotos do Amapá - Caesa

228 casas visitadas

 

 

 


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