Núcleo de Ribeirão Preto realiza Encontro sobre Justiça Restaurativa e temas correlatos do ECA

O Encontro sobre Justiça Restaurativa e temas correlatos do ECA, bem como os desafios do funcionalismo do TJSP promovido pelo Núcleo Regional de Ribeirão Preto da Escola Paulista de Magistratura, no dia 17 de março de 2012, no salão do júri em Ribeirão Preto, contou com a presença de três palestrantes: o desembargador Antonio Carlos Malheiros e os juízes Samuel Karasin e Egberto A. Penido, todos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Confira abaixo o texto/artigo enviado pelo juiz Egberto Penido sobre a temática, o qual, em linhas gerais, adota a mesma linha de exposição por ele apresentada no encontro, citando o caso das "bombinhas na escola" ilustrado no vídeo que foi veiculado no dia e que pode ser visto no site da produtora (www.turnercom.com.br) que o fez. 

Justiça Restaurativa: a arte do encontro

Três alunos e uma bomba: a construção de um encontro.

Em junho de 2007, três alunos de uma escola estadual localizada no Bairro de Heliópolis, em São Paulo, insatisfeitos com algumas decisões tomadas pela Direção da escola, resolveram soltar uma pequena “bomba-caseira” próximo ao banheiro destinado aos funcionários da administração, para o fim de “dar um susto”.

Na hora de soltarem o petardo, o aluno que o tinha levado ficou com medo, fazendo com que um de seus companheiros pegasse e jogasse o artefato aceso. Ao lançar a bomba, esta caiu no páteo, fora do local planejado inicialmente. Assim, um terceiro aluno correu e chutou a bomba na direção originalmente planejada; mas o artefato se deslocou para uma quadra próxima, indo parar ao lado de onde se encontravam três alunas. Um daqueles alunos chegou a gritar para elas correrem, mas o petardo explodiu, logo em seguida. Alguns pequenos fragmentos deste artefato atingiram levemente as pernas das alunas; afora o imenso susto a que foram submetidas. Outros alunos saíram da sala de aula, com o barulho. Alguns professores ficaram alarmados e interromperam suas aulas, perguntando o que tinha acontecido. Houve uma grande movimentação dos funcionários, assustados e preocupados com o ocorrido. Os genitores das alunas ao serem contatados, preocupados, rapidamente foram até a escola, querendo entender o ocorrido, formulando perguntas, como: Por que aconteceu isso?  Suas filhas foram escolhidas intencionalmente para serem atingidas?

Após os atendimentos necessários, os alunos foram encaminhados para a Direção da escola. A intenção inicial por parte da Direção era promover uma transferência dos alunos para outra unidade escolar – havia um “cansaço” por parte dos integrantes desta Direção com situações envolvendo bombas, principalmente em época “Junina”. Se isso de fato ocorresse, estes jovens dificilmente entenderiam o impacto do que tinham causado. Poderiam, até mesmo, se verem como vítimas, porque não tinham agido com a intenção de causar danos às alunas e agora estavam sofrendo os desconfortos – para se falar o mínimo - de todo procedimento desencadeado após o ato a que deram causa (posteriormente, o fato foi comunicado à autoridade policial, desencadeando o procedimento formal para situações desta natureza). Além disso, a razão pela qual o ato foi praticado pelos alunos e as conseqüências decorrentes desta ação, ficariam também sem serem trabalhadas.

Sucede que esta escola tinha começado a participar do projeto piloto de Justiça Restaurativa: “Justiça e Educação: parceria para a cidadania” , que, para situações de violência ou conflito, viabilizou a opção de serem realizados círculos restaurativos no interior da referida unidade escolar ou em locais previamente preparados na comunidade de Heliópolis – comunidade do entorno daquela escola.

Com a concordância prévia dos alunos, alunas, seus genitores, diretora da escola, coordenador pedagógico, entre outros, optou-se pela a realização de um círculo restaurativo com a participação de todos. Este círculo restaurativo foi realizado no ambiente do Conselho Tutelar da Região do Ipiranga (onde, também em decorrência do projeto, duas conselheiras tutelares estavam capacitadas para atuarem como facilitadoras restaurativas).

Cumpridas as etapas de preparação para a realização do círculo, todos se encontraram num mesmo espaço para dialogarem, por meio da facilitação das conselheiras tutelares. Seguiu-se dinâmica – com passos pré-estabelecidos -  baseada em técnicas de comunicação, resolução de conflito de modo não-violento e mediação, propiciando um processo de compreensão mútua de reflexão de todos os participantes (sobremaneira acerca da responsabilidade que compete a cada um e como responder a esta responsabilidade), a relação entre aqueles alunos e alunas e seus genitores foi restaurada, bem como a relação dos alunos e a Direção da escola. Entre os encaminhamentos que resultaram do encontro, onde todos os participantes se engajaram de alguma forma, ficou acordado: (a) um pedido de desculpa dos alunos para as alunas, seus genitores e Direção da escola, feito espontaneamente e de modo sincero durante a parte final do encontro; (b) os alunos e as alunas visitariam o Corpo de Bombeiros da região, recebendo orientações de cuidados preventivos; (c) as conselheiras tutelares iriam providenciar este encontro no Corpo de Bombeiros junto com os genitores; (c) os alunos e as alunas reativariam um antigo “jornalzinho” feito na escola pelos alunos, construindo um canal a mais de informes e diálogo, com os outros alunos e com a própria Direção da escola; (d) a notícia desta iniciativa seria passada pelos alunos e alunas para os demais alunos da escola (mostrando, desta forma indireta, inclusive, a reconciliação entre eles); (e) a Direção da escola iria propiciar o espaço de realização deste jornal.

Após este círculo restaurativo, não houve mais nenhum caso de bomba no período matutino em que aqueles alunos estudavam.

Em um encontro posterior ao círculo, denominado de pós-círculo (feito para acompanhar o que foi acordado), verificou-se que: (a) a relação entre os alunos e alunas estava fluindo bem; (b) que o grupo tinha ido até o Corpo de Bombeiros e recebido as orientações de prevenção e cuidados; (c)  que os alunos passaram a se sentir incluídos na escola, aumentado a autonomia e a competência escolar; e (d) que o espaço para a realização do jornal foi arranjado (a elaboração do jornal foi suspensa com a saída da diretora da escola, mas, agora, os alunos estão conversando com a nova Direção, numa nova postura de diálogo para avançar em seus projetos).

Esta é uma das diversas histórias que começam a ser construídas no Estado de São Paulo e em outros Estados do país, por meio de projetos pioneiros de Justiça Restaurativa.  Ao conflito que gerou toda dinâmica poderiam ser dados diversos encaminhamentos, calcados em diversos valores e, consequentemente, chegando a diversos resultados. Optou-se pelo caminho da Justiça Restaurativa, o qual: (a) aumenta a probabilidade dos envolvidos em um conflito  entenderem as causas que levaram a ele  possibilitando, assim, que não ocorreram recaídas em situações semelhantes; (b) possibilita que se lide diretamente com as consequências do dano; (c) proporciona uma efetiva reflexão do valor da norma rompida com a ação danosa; (d) aproxima vítima e ofensores, possibilitando que relações sejam restauradas ou construídas; (e) evita que haja a jurisdicionalização destes casos; (f) promove a autonomia na resolução de conflitos, possibilitando a vivência de experiências que mostram que cada qual pode dar conta de seus conflitos, dentro de canais eficazes de diálogo; (g) evita que ocorra a sensação de nova vitimização – por parte de quem comete o dano e, sem reflexão, entende que está sendo duplamente injustiçado ; (h) evita a estigmatização, e, consequentemente, que aqueles que praticaram o dano se tornem mais vulneráveis ao envolvimento em outros atos danosos; (i) promove o envolvimento da família, aproximando seus integrantes; (j) leva à reflexão da responsabilidade dos agentes públicos; e (k) rompe com o ciclo de violência.

Como veremos a seguir, a opção pela Justiça Restaurativa constitui-se em uma opção calcada em experiência de vivência de valores, onde a própria maneira de resolver o conflito ou a situação de violência transmite, em si, os valores que se busca alcançar. O meio é indissociável do fim almejado.

Vejamos então, o que vem sendo entendido como Justiça Restaurativa e como está estruturado o projeto de Justiça Restaurativa na cidade de São Paulo.

Justiça Restaurativa: um conceito em aberto

A Justiça Restaurativa é um modelo complementar de resolução de conflitos, consubstanciada numa lógica distinta da punitiva. Embora seja um conceito ainda em construção , não possuindo uma conceituação única e consensual, pode-se dizer que: “numa de suas dimensões, pauta-se pelo encontro da “vítima”, “ofensor”, seus suportes e membros da comunidade para, juntos, identificarem as possibilidades de resolução de conflitos a partir das necessidades dele decorrentes, notadamente a reparação de danos, o desenvolvimento de habilidades para evitar nova recaída na situação conflitiva e o atendimento, por suporte social, das necessidades desveladas.”

A Justiça Restaurativa brota e começa a tomar forma no bojo de diversos movimentos sociais que, a partir da década de 70, problematizaram o sistema de justiça criminal do Ocidente, predominantemente retribuitivo.

Neste sistema retribuitivo, o crime é uma violação ao Estado, definida pelo descumprimento da lei e pela culpabilidade. A justiça determina a culpa e administra a pena mediante procedimento contencioso entre o ofensor e o Estado, dirigido por regras sistemáticas.  Desta referência do modelo retribuitivo, podemos pontuar as seguintes características: (a) o olhar é para o passado: se busca produzir provas para que se possa culpar o ofensor e impor uma sanção (na grande maioria das vezes de natureza aflitiva); (b) a relação é entre o Estado-réu (não participam a vítima, a comunidade, as pessoas indiretamente atingidas pelo dano e as pessoas que podem eventualmente contribuir com apoios); (c) a vítima é ouvida como mero meio de prova (as suas necessidades, sobremaneira aquelas advindas após o ilícito, não são consideradas) – e, em alguns casos, submetidas a uma segunda “violência” (ao entrar em contato com as dinâmicas de atendimento de nossos serviços públicos, onde, muitas vezes, o serviço prestado fica em muito aquém do cuidado necessário); (d) busca-se uma responsabilização individual (e não coletiva); (e) a responsabilização é passiva, pois compete a um terceiro (uma autoridade legitimamente investida com tal poder) dizer o que é certo ou errado e impor o que deve ser feito (inviabilizando eventual reflexão por parte do ofensor e de todos que possuem alguma parcela de responsabilidade do valor da norma rompida); e (e) na grande maioria das vezes, não se resolve o conflito, limitando-se a administrá-lo momentaneamente.

Na Justiça Restaurativa, são construídos encontros embasados em processos dialógicos e inclusivos, fundados na autonomia da vontade e na participação das partes afetadas por um delito ou um conflito, onde, de modo coletivo, elas podem lidar com as causas e conseqüências do conflito, buscando atender as necessidades de todos envolvidos e suas implicações para o futuro.

Desta referência do modelo restaurativo, podemos destacar as seguintes características: (a) o olhar é para o futuro; (b) por meio de um processo dialógico e inclusivo, se busca esclarecer as responsabilidades dos envolvidos, para daí realizar planos de ação que possam evitar nova recaída na situação conflitiva; (c) a vítima (diretamente atingida) e aqueles que indiretamente foram também afetados, são ouvidos em suas necessidades atuais; (d) busca-se refletir sobre a responsabilidade do ofensor, e de todos diretamente atingidos, onde cada qual se conscientiza de como foi afetado e de como sua ação afetou o outro; (e) a responsabilização se faz de modo ativo (através de dinâmicas ordenadas de comunicação), onde a reparação ou os planos de ações são escolhas feitas a partir do entendimento de toda a situação.

Justiça Restaurativa no mundo e no Brasil

Diversos países do mundo vêm aplicando Justiça Restaurativa, sendo exitosos seus resultados. Em face destes resultados, documentos internacionais oficiais da ONU e da União Européia foram produzidos, legitimando e recomendando a Justiça Restaurativa.

No Brasil, a Justiça Restaurativa foi introduzida formalmente em 2004, por meio do Ministério da Justiça, através de sua Secretaria da Reforma do Judiciário, que elaborou o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro” e, juntamente com o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, apoiou três projetos-piloto de Justiça Restaurativa, sendo um deles no Estado de São Paulo, na Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Caetano do Sul. Os outros dois projetos foram implementados no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirante, em Brasília/DF, e na 3ª. Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS, com competência para executar as medidas socioeducativas. Cada um destes projetos-piloto, implementados com base nos princípios da Justiça Restaurativa, ganharam contornos distintos, fazendo uso de práticas restaurativas nem sempre idênticas, em face das peculiaridades de cada Juízo, bem como das localidades em que estavam sendo implementados e, ainda, da circunstância de se tratarem de “pilotos”, que buscam na experimentação a construção do modelo regional e/ou nacional de Justiça Restaurativa mais adequado para as realidades brasileiras.

Justiça Restaurativa em Heliópolis

Em 2006, as iniciativas de Justiça Restaurativa se expandem para a Capital de São Paulo, na região de Heliópolis (e também para a cidade de Guarulhos). É firmada uma parceria entre a Secretaria Estadual da Educação e o Judiciário para que, no que diz respeito à região de Heliópolis, ocorresse a implantação de práticas restaurativas em 10 escolas públicas de ensino médio na região de Heliópolis. Foram capacitadas 10 (dez) educadores por escola, 08 membros das equipes técnica do Fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude da Capital e integrantes da comunidade do entorno das unidades escolares.

Esse projeto, denominado “Justiça e Educação: parceria para a cidadania” (já como uma expansão geográfica das iniciativas do modelo de São Caetano do Sul), objetiva contribuir para a transformação de escolas e comunidades que vivenciam situações de violência em espaços de diálogo e resolução pacífica de conflitos, por meio da colaboração entre o Sistema Judiciário e Educacional (do trabalho com a Rede de Apoio e da parceria com a comunidade). No âmbito do Judiciário, o projeto visa contribuir para o aperfeiçoamento do Sistema de Justiça da Infância e Juventude. Nesta parceria, busca-se tornar a Justiça mais educativa e a Educação mais justa.

Objetivou-se criar espaços de realização de círculos restaurativos nas escolas, para que conflitos ou situações de violência, envolvendo eventuais atos infracionais referidos a delitos de menor potencial ofensivo, pudessem ser resolvidos por meio destes círculos restaurativos, facilitados e organizados por pessoas da própria comunidade escolar. Uma vez realizados os círculos – como no exemplo acima descrito – os acordos são encaminhados para a Diretoria de Ensino da região e, eventualmente, tratando-se de atos referidos a delitos podem ser encaminhados ao representante do Ministério Público designado para atuar no projeto, o qual, não constatando qualquer irregularidade, sugere a remissão ao juiz responsável pelo projeto, que a homologa.

Do mesmo modo, foram criados espaços de resolução de conflitos, na própria comunidade do entorno das unidades escolares, onde os conflitos ali surgidos podem ser resolvidos por meio de círculos restaurativos. Na comunidade, os acordos são encaminhados diretamente ao Ministério Público, seguindo, a partir de então, a mesma seqüência descrita no parágrafo anterior.

Por fim, se eventualmente vier a ser lavrado um boletim de ocorrência e o caso for formalmente encaminhado para o Fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude, estando presentes as condições necessárias, estabeleceu-se o seguinte fluxo: é proposta aos envolvidos a suspensão do procedimento (ainda na fase do artigo 179 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou mesmo depois, até antes da sentença), e os envolvidos são encaminhados para o círculo restaurativo (o qual poderá ser realizado no ambiente do Fórum, na própria comunidade ou na escola de um dos envolvidos). Elaborado o acordo, retornam os autos ao Ministério Público que, da mesma forma que nas situações anteriores, requer a aplicação da remissão, que é homologada.

Os círculos restaurativos são facilitados por pessoas que foram capacitadas em seminários de mais de 80 horas. Os círculos restaurativos possuem três fases: o pré-círculo (onde se pontua o foco do conflito a ser trabalhado, se estabelece quem participará do encontro e toda a logística dele); o círculo restaurativo (o qual se faz de modo ordenado, mediante técnicas de comunicação e mediação e resolução de conflito de modo não violento); o pós-círculo (onde se verifica se o acordo elaborado no círculo restaurativo foi cumprido ou não – e nesse último caso as causas deste descumprimento.).

São requisitos para ocorrer o círculo restaurativo: (a) a voluntariedade de todos (não se faz o círculo de modo imposto); e (b) o reconhecimento pelo causador do dano da ação que a ele é imputada (no círculo, portanto, não se discutirá se ele fez ou não aquela ação; não se trata de uma câmara de julgamento, onde serão ouvidas testemunhas). O sigilo no círculo é observado.

Por fim, é importante ainda ressaltar, que concomitante à realização dos círculos, se busca a articulação de uma rede de apoio, que atue de modo sistêmico e interdisciplinarmente; e também mudanças institucionais e educacionais nas escolas e nas Varas da Infância e Juventude, possibilitando as condições físicas e organizacionais para que os princípios que informam a Justiça Restaurativa possam fazer parte do projeto pedagógico da escola e das redes de atendimento do Judiciário.

Conclusão

Justiça Restaurativa se mostra um meio eficaz de se lidar com o conflito e com o complexo fenômeno da violência, com uma real transformação das pessoas envolvidas, possibilitando que o processo de resolução do conflito se torne fonte criadora de consciência para elas e para a comunidade, permitindo inclusive que o tecido social seja restabelecido, e enriquecido com a experiência de conscientização e superação vivenciadas pelos autores sociais.”

Juiz Paulo César Scanavez, coordenador do Núcleo de Ribeirão Preto da EPM 

Fotos: Núcleo de Ribeirão Preto


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