Direito do Consumidor é analisado no Curso de Aperfeiçoamento/Merecimento
No dia 29 de maio, o juiz Alexandre David Malfatti, coordenador da área de Direito do Consumidor da EPM, discorreu sobre a facilitação da defesa do consumidor em juízo, estabelecida pelo inciso VIII do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor. A aula fez parte da programação do “Curso de Aperfeiçoamento/Merecimento – Juízes Vitalícios – Turma VI” e contou com a participação do juiz Eduardo Cortez de Freitas Gouvêa, tutor da área de Jurisdição Especial.
Inicialmente, Alexandre Malfatti chamou a atenção para a realidade social do País, em termos de formação e de acesso à informação, lembrando que apenas cerca de 30% da população brasileira possui o ensino médio, situação que não pode ser comparada à de países como a Argentina e o Chile, em que esse percentual ultrapassa os 80%. “O consumidor brasileiro, em sua maioria, sequer, possui ensino médio, fator que afeta, inclusive, a compreensão de aspectos contratuais”, ressaltou.
Ele ponderou que, no âmbito do Direito do Consumidor, há situações em que podem ser tomadas decisões processuais, que, embora pudessem ser questionadas, do ponto de vista do processo civil tradicional, são adequadas, do ponto de vista processual do consumidor.
Como exemplo, mencionou a ação de cobrança de hospital contra consumidor, em caso de negativa de cobertura de plano de saúde, afirmando que determina a emenda da petição inicial, com base no inciso VIII do art. 6º do CDC, solicitando ao hospital que esclareça se a internação foi feita com anúncio de cobertura de plano de saúde e – em caso positivo – os motivos da recusa, trazendo a prova documental e os contratos entre o hospital e o plano de saúde e entre este e o consumidor. “Embora essas provas não sejam essenciais para o processamento da demanda, de acordo com o CDC, no momento em que o juiz amplia o conhecimento sobre a causa de pedir daquela pretensão de cobrança, dará ao consumidor noção exata do motivo de recusa e permitirá que este busque outros caminhos, entre eles, a intervenção de terceiros, provocada no momento da defesa”, explicou.
O palestrante frisou que a inversão do ônus da prova é o principal exemplo de facilitação da defesa do consumidor, citando a definição do professor Cândido Rangel Dinamarco: “O ônus da prova é o encargo atribuído pela lei, a cada qual das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo”.
Ele lembrou que o ônus tem duas faces: o ônus propriamente dito e o dever. “O ônus implica a prática de um ato sob pena de um resultado, sendo decorrente de três princípios: a indeclinabilidade da jurisdição; o dispositivo – segundo o qual a iniciativa das provas deve ser das partes –; e a persuasão racional, pois o juiz tem que se convencer das provas”, explicou, apontando, ainda, a distinção feita por Pontes de Miranda, citada em acórdão pelo juiz Irineu Jorge Fava: “O dever é em relação a alguém, ainda que seja a sociedade; há relação jurídica entre dois sujeitos, um dos quais é o que deve: a satisfação é do interesse do sujeito ativo. O ônus é em relação a si mesmo; não há relação entre sujeitos: satisfazer é do interesse do próprio onerado. Não há sujeição do onerado; ele escolhe entre satisfazer ou não ter a tutela do próprio interesse”.
Nesse contexto, Alexandre Malfatti ponderou que há, por parte do interessado, um dever probatório. “A minha proposição é de que a visão atual de ônus da prova seja de algo parecido com um dever”, afirmou, lembrando que ele pode ser determinado pela lei, pelo juiz ou convencionado pelas partes. “No sistema de Direito do Consumidor, o fornecedor não pode colocar em contrato de adesão que o ônus da prova será do consumidor. Seria uma cláusula nula, porque abusiva”, acrescentou.
Quanto à inversão do ônus da prova, lembrou que ela independe de requerimento das partes, sendo possível determiná-la de ofício. “Além da previsão judicial, constante no inciso VIII do art. 6º, há quem diga que há outras previsões, no CDC, de inversão legal do ônus da prova”, observou. Em relação à iniciativa do magistrado na inversão e na produção de provas, adiantou que, sob o enfoque do Direito do Consumidor, o mundo moderno não comporta mais o processo civil em que o juiz é um mero espectador. “O juiz tem o dever/poder de inverter o ônus e, presentes os requisitos legais, deve fazê-lo”, ressaltou.
Ele observou que é comum se questionar se a inversão do ônus da prova é um direito do consumidor ou um ‘favor do juiz’. “Alguns a consideram um poder discricionário, o que, no meu entender, não está correto, porque se trata de um direito básico do consumidor. O que está a critério do juiz é o exame dos elementos, para verificar a verossimilhança ou a hipossuficiência – requisitos alternativos, conforme entendimento consolidado dos tribunais superiores”, salientou o palestrante.
Outro ponto analisado foi o momento de se inverter o ônus da prova: “Em geral, é o julgamento, mas nada impede que o juiz alerte o fornecedor sobre a possibilidade da inversão, o que pode, inclusive, evitar nulidades futuras”, explicou, lembrando que a inversão não está restrita ao fornecedor pessoa jurídica, que tem responsabilidade objetiva, mas estende-se ao profissional liberal. “A responsabilidade subjetiva também comporta inversão, conforme entendimento majoritário da doutrina”, explicou.
Em relação à amplitude, ponderou que a inversão do ônus da prova não deve ser total, citando, como exemplo, a alegação, sem comprovação, de extravio de bens de alto valor no interior de malas num transporte aéreo: "Como exigir do fornecedor (empresa aérea) a prova de que uma jóia não estava numa bagagem transportada? É preciso cautela pelo juiz, identificando-se os fatos alcançados pela inversão do ônus da prova".
Quanto ao reflexo econômico da decisão, recordou que prevalece nos tribunais superiores, principalmente no STJ, o entendimento de que a inversão do ônus da prova é distinta da atribuição de despesa processual ou do ônus financeiro. Embora sustente posição distinta (a inversão do ônus da prova leva também à atribuição do ônus financeiro para o fornecedor), o palestrante lembrou que a posição do STJ não exime o fornecedor da consequência da inversão: se a prova não for produzida, a alegação do consumidor será acolhida.
Por último, observou que, muitas vezes, a inversão é determinada em situações jurídico-processuais nas quais não é adequada ou não seria necessária. "Não é adequada nas hipóteses em que a lei já atribui o ônus da prova ao fornecedor: excludentes por responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 e 14 do CDC). Não é necessária quando o fato controvertido configura algo normal ou a demonstração somente pode ser feita pelo fornecedor", explicou. A respeito, citou o jurista José de Aguiar Dias, em sua obra “Da Responsabilidade Civil”, de 1960: “(...) a prova incumbe a quem alega contra a normalidade, que é válida tanto para a apuração de culpa como para a verificação da causalidade”. “Quem alega contra a normalidade, deve prová-lo. Aquilo que é normal, o outro que prove contra. Aquele que tem o alcance do fato, eticamente, também tem o dever de prová-lo”, concluiu o palestrante.