413 - Família: ataque semântico
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito
O termo “família tradicional” é hoje usado em contextos políticos onde se debate a aprovação de diversas formas de união, particularmente a união homossexual. Na verdade, trata-se de um pleonasmo, pois, segundo a antropologia mais autorizada, a instituição familiar, baseada no matrimônio monogâmico e heterossexual, sempre existiu em todas as civilizações.
Ainda que os modelos familiares apresentem uma real diversidade, há um núcleo imutável. Como numa equação matemática, o numerador é amplíssimo, mas o denominador é comum: união estável e amorosa de um homem e uma mulher, com abertura à descendência. O termo, logo, é unívoco, já que reenvia a uma instituição natural atestada universalmente, antes e fora de qualquer religião.
Atualmente, entende-se que a sobrevida desta instituição dependeria de um modelo ultrapassado, digno de exposição num museu de história natural, cuja curadoria certamente ficaria a cargo do Papa... Ou, talvez, um produto cultural destilado por vários séculos, pronto para ser superado por outra idéia, pois o formato caducou e se tornou uma velharia bolorenta: não haveria mais espaço para uma família numerosa, com avós debaixo do mesmo teto, relações lineares entre gerações e, para arrepio da patrulha feminista mais radical, uma maleável separação de papéis do homem e da mulher.
A lei perdeu o interesse pela família. A opção pelo enfraquecimento de suas funções é evidente, relegando-a ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. A família se tornou uma célula primária da “vida individual”, sem qualquer função socializante, onde o processo de “formação” foi substituído pelo de “informação”, como se isso bastasse para uma geração transmitir à seguinte os valores da autonomia, liberdade, responsabilidade, tolerância e solidariedade, tão caros à nossa sociedade.
A sociedade, por sua vez, fez-se individualista, pluralista, eticamente neutra, deixando para cada pessoa o foro decisório sobre o próprio “bem” e a própria “felicidade”. Num clima assim, mais urgente é a garantia de um lugar em que as relações humanas sejam marcadas pela generosidade, pela doação, pelo amor e por um compromisso que exija a totalidade do ser.
A partir do momento em que a fenomenologia expulsou a ontologia do núcleo do conceito de entidade familiar, isto é, a família não seria mais do que uma forma historicamente plasmada, não demorou muito para que seus frutos amargos surgissem: desordem completa dos papéis familiares, aumento do número de divórcios, incremento do número de casos de assédio sexual no trabalho, diminuição dos casamentos e expansão do número de pessoas solteiras e das uniões estáveis, mais bens e menos filhos no lar, decréscimo do nível de convívio familiar, violência juvenil exacerbada, inverno demográfico (na Europa), pretensões matrimoniais dos pares homossexuais entre outros.
Apesar das reviravoltas havidas, algumas muito saudáveis, como o fim da submissão da mulher em relação ao homem e o desenvolvimento de relações familiares direcionadas à recíproca responsabilidade do casal, os critérios da definição de família, apesar dos tempos, continuam peculiares: a) a família ainda é um ambiente vedado à inversão dos papéis sexuais (masculino e feminino) e geracionais (incesto, por exemplo); b) a família ainda exerce a intransferível tarefa, confiada pela sociedade, de personalização da pessoa, por meio de processos concretos de socialização, essenciais para a maturação da criança, do jovem e do adulto também, porque “formar uma família” implica em reciprocidade solidária completa.
Dentro deste ambiente desfavorável, a família deve reocupar o espaço que lhe é próprio por natureza. Não se trata de uma batalha de Termópilas, uma batalha de retaguarda, a ser conduzida pelas armas da nostalgia. Mas um horizonte a ser conquistado para bem da pessoa e da sociedade. Em suma, uma tarefa e um desafio.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br)