419 - A proposta de “atualização” do Código de Defesa do Consumidor: quem ganha com isso?
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
O Brasil foi colonizado, a população catequizada e, fruto desse modo de imposição cultural, a legislação pátria, em larga medida, se inspirou nas normas jurídicas estrangeiras. O Código Civil (CC) de 1916 foi inspirado em leis da Europa do Século XIX e até a edição da Constituição Federal (CF) de 1967 nós nos intitulávamos “Estados Unidos do Brasil”: CF de 24-2-1891-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil; CF de 16-7-1934-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil; CF de 10-11-1937- Constituição dos Estados Unidos do Brasil; CF de 18-9-1946-Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Esse título que nós nos demos, certamente foi influenciado pelos Estados Unidos da América, grande equívoco de nossa parte, eis que eles realmente eram “Estados (as 13 Colônias)” que se uniram, enquanto nós éramos um Estado unitário que se dividiu. De todo modo, os exemplos mostram nossa experiência cultural de importação de leis e seus significados. (Os professores de direito civil sempre referiram o regime dotal do casamento previsto no CC/16 como um bom exemplo de importação sem conexão com nossa realidade).
Muito bem, porque estou começando o artigo com isso? Inicio por aqui para fazer, desde logo, um forte elogio à Lei 8078/90, o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Os autores do anteprojeto apresentado pelo então Deputado Geraldo Alckmin, que gerou o CDC, pensaram e trouxeram para o sistema legislativo brasileiro aquilo que existia e existe de mais moderno na proteção do consumidor. Esta lei é tão importante que fez com que nós, importadores de normas, conseguíssemos dessa feita agirmos como exportadores. Nosso CDC é tão bem elaborado que serviu e ainda serve de inspiração aos legisladores de vários países. Para ficar com alguns exemplos, cito as leis de proteção do consumidor da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai, inspiradas em nossa Lei.
Não resta dúvida, que o CDC representa um bom momento de maturidade de nossos legisladores. É verdade que, na elaboração do anteprojeto houve também influência de normas de proteção ao consumidor alienígenas, mas o modo como o texto do CDC foi escrito significou um salto de qualidade em relação às leis até então existentes e também em relação às demais normas do sistema jurídico nacional.
O CDC é o Código da cidadania brasileira. Na sociedade capitalista contemporânea o exercício da cidadania se confunde com os atos de aquisição e locação de produtos e serviços. Quem pensa que a proteção ao consumidor está apenas relacionada às pequenas questões de varejo está bastante enganado. A compra de móveis, de automóveis, de eletroeletrônicos e demais bens duráveis; a participação nas diversões públicas em espetáculos, cinemas, teatros, shows e a aquisição de outros bens culturais tais como livros, filmes em DVDs e CDs; os empréstimos e financiamentos obtidos em instituições financeiras; as viagens de negócios e de turismo nacionais e internacionais; a matrícula em escolas particulares em todos os níveis; a prestação dos vários serviços privados existentes; a entrega e recebimentos de serviços públicos essenciais como os de distribuição de água e esgoto, de energia elétrica e de gás; os serviços de telefonia; os transportes públicos; a aquisição da tão sonhada casa própria e um interminável etc; tudo isso é regulado pela lei 8078/90.
Por isso, dizemos que o CDC é o microssistema normativo mais importante editado após a CF de 1988 e que ajudou em muito a fortalecer o mercado de consumo nacional. Ele não é contra nenhuma empresa, nenhum empresário; ele apenas regra as relações jurídicas de consumo e, claro, protege o vulnerável que é o consumidor em qualquer lugar do planeta, em função do modo de produção estabelecido.
A lei 8078/90 funciona muito bem e não precisa de alterações ou atualizações. Necessita sim de apoio para ser mais ainda compreendida e bem aplicada. Ela é de ordem pública e de interesse social, norma geral e principiológica, o que significa dizer que é prevalente sobre todas as demais normas especiais ou gerais que com ela colidirem. Ela inaugurou no sistema jurídico nacional um outro modo de produção legislativa: ingressou de modo a não necessariamente revogar leis anteriores. O que ela faz é tangenciar as relações jurídicas envolvendo consumidores e fornecedores estabelecidas com base em outras normas que continuam em vigor, tornando-as nulas ou inválidas no todo ou na parte que desrespeite seus princípios e regras.
A rigor, como eu disse, o que o CDC precisa é de maior conhecimento, especialmente entre os operadores do direito, que ainda desconhecem parte de suas regras. Tenho dito que, um pedaço do problema reside numa questão de memória: grande parte dos operadores do direito leem o texto do CDC com base na sua formação privatista (larga e profundamente estudada a partir do CC/16 e também das demais normas, penais e processuais). Veja um exemplo disso na questão contratual: a memória privatista do operador faz com que ele, ao se deparar com um contrato, lembre do aforismo que diz pacta sunt servanda, posto que no direito civil essa é uma das características existentes, com fundamento na autonomia da vontade.
Sabe-se que, nas relações contratuais no direito civil, pressupõe-se que aqueles que querem contratar sentam-se à mesa em igualdade de condições e transmitem o elemento volitivo de dentro para fora, transformado em dado objetivo num texto. São proposições organizadas em forma de cláusulas que, impressas num pedaço de papel, fazem surgir o contrato escrito. É a tentativa de delineamento objetivo da vontade, portanto, elemento subjetivo, que o direito civil tradicional pretende resguardar e controlar.
Então, quando o operador jurídico se refere às relações contratuais privatistas, está fazendo uma interpretação objetiva de um pedaço de papel com palavras organizadas em proposições inteligíveis e que devem representar a vontade das partes que lá estavam, na época do ato da contratação, transmitindo o elemento subjetivo para aquele mesmo pedaço de papel. E, uma vez que tal foi feito, pacta sunt servanda, isto é, os pactos devem ser respeitados. Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não senta à mesa para negociar cláusulas contratuais.
Na verdade, o consumidor vai ao mercado e recebe produtos e serviços postos e ofertados segundo regramentos que o CDC pretende controlar, e de forma inteligente. O problema é que a aplicação da lei civil, assim como a memória dos operadores do direito, atrapalha a interpretação. Até a oferta, para ilustrarmos com mais um exemplo, é diferente nos dois regimes: no direito privado é um convite à oferta; no direito do consumidor, a oferta vincula o ofertante, que fica obrigado a cumpri-la.
Então, estas eram, foram e ainda são situações que acabaram afetando o entendimento da lei, que junto de outras questões especiais como o controle abstrato de cláusulas abusivas, a responsabilidade civil objetiva quase absoluta, a boa-fé objetiva etc, exigem maior conhecimento.
O que está estabelecido no CDC resolve com muita eficácia os problemas advindos das relações de consumo. Por isso, repito: ele não precisa de alteração ou atualização e sim de continua e incessante luta de implementação. Mas, eis que o Senado Federal criou uma comissão visando sua atualização.
A comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal é, sem dúvida, de alta qualidade e profundo conhecimento e experiência na área. Mas, isto certamente não impedirá que todos aqueles interessados em diminuir o poder de controle exercido no mercado pelo CDC (isto é, o grande grupo composto por agentes retrógados com poder econômico) trabalhem para retirar os sagrados direitos dos consumidores brasileiros já instituídos.
Segundo consta, dentre as pretensões da comissão estão o trato do superendividamento dos consumidores, a questão do comércio eletrônico e a busca de fortalecimento dos Procons. Começo pelo último: Os Procons já atuam muito bem e seu fortalecimento não necessita de modo algum de mudança no CDC: basta que os municípios e Estados-Membros (com o auxílio do Governo Federal caso assim este o deseje) aumentem o investimento no setor. Quanto ao comércio eletrônico, ainda que se possa pensar numa lei para cuidar do assunto, a experiência têm mostrado que o CDC se sai muito bem, pois regula as compras feitas à distância (art. 49), controla a oferta (art. 30 e seguintes), anula as cláusulas não escritas, não informadas e abusivas (art. 46 e seguintes), sendo que o Judiciário tem aplicado tais regras com eficiência.
E, a questão do superendividamento de um lado, tem a ver com a falta de políticas públicas capazes de educar o consumidor para a aquisição de produtos e serviços financiados ou não e, de outro, já encontra eco nos dispositivos do CDC, que contém regras que servem para a proteção dos consumidores endividados. O pior é que os consumeristas – dentre os quais eu me encontro – duvidam muito que um tema que possa afetar ainda mais as instituições financeiras possa ser introduzido no CDC, sem que se lhe retirem “pedaços”. Devo lembrar que o CDC não tem nada que impeça os bancos e demais agentes financeiros de ganharem muito dinheiro – como comprovam todos os números publicados – e ainda assim eles lutaram na Justiça contra o CDC por 16 anos seguidos em todas as instâncias, perdendo finalmente no Supremo Tribunal Federal com o julgamento da Adin dos bancos em 29-9-2006. Quem é que pode garantir que aberta a porta da “atualização” do CDC, não ingressarão por ela as normas atrasadas ou os cortes desejados por aqueles que lutam contra os direitos que estão assegurados?
O lobby do sistema financeiro é poderoso e organizado e se tiver chance, aproveitará a oportunidade para retirar direitos instituídos. Dou apenas um exemplo: a Medida Provisória (MP) 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36 de 23 de agosto de 2001, foi editada para cuidar dos recursos financeiros da União, autarquias e fundações públicas. É o que dispõe seu art. 1º: “Art. 1º. Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo”.
Mas, esse lobby conseguiu, assim, digamos de contrabando, introduzir na MP um assunto completamente diverso de seu objeto, dispondo sobre capitalização de juros. Veja: “Art. 5o Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”.[1]
É preciso também lembrar os bastidores da verdadeira batalha pela aprovação da Lei 8078/90: A sociedade civil, representada pelos órgãos de proteção ao consumidor, associações de defesa do consumidor, professores e juristas engajados na luta conseguiram sua aprovação contra poderosos interesses econômicos. O momento histórico também favoreceu a vitória, pois a CF havia sido promulgada em 5-10-1988 e determinava no art. 48 da ADCT que o CDC fosse editado: era uma prova de efetivo trabalho do Congresso àquela altura dos acontecimentos.
Venho, portanto, neste artigo também expressar minha opinião contra a anunciada “atualização”. Quero consignar que já se manifestaram publicamente contra a proposta o Professor Nelson Nery Junior, um dos autores do anteprojeto, Marilena Lazzarini do IDEC, Maria Inês Dolci da Proteste e outros.
Quero lembrar, como fez Maria Inês Dolci no artigo que publicou e para utilizar um jargão tão à moda dos brasileiros que, em time que está ganhando não se mexe. Não há mesmo nenhum motivo para se mexer no CDC.
Para finalizar quero colocar que, no dia 21 de março próximo passado, proferindo aula inaugural do curso de especialização em Direito do Consumidor da Escola Paulista da Magistratura (EPM), o professor português Mário Frota, um dos principais juristas empenhado na luta pelos direitos dos consumidores na Europa, disse: “Ninguém melhor que os brasileiros versaram de forma adequada sobre relações entre consumidores e fornecedores” e, depois ao final confirmou: “Com o Código de Defesa do Consumidor, o Brasil superou o que a Europa pode fazer em matéria de proteção ao consumidor”.
É isso!
Repito, junto dos demais consumeristas que já se pronunciaram e digo eu também: não mexam no Código de Defesa do Consumidor!
4/4/2011
[1] É verdade que essa inserção espúria é vedada pela Lei Complementar nº 95, de 26-2-1998, gerando vício de origem capaz de rechaçá-la do ordenamento jurídico. Referida Lei Complementar dispõe o seguinte em seu artigo 1º e parágrafo único, verbis: “Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar.
Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo”.
Esta mesma Lei Complementar disciplina em seu artigo 7º o seguinte: “Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva; IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa” (grifei).