431 - Tráfico de pessoas, tráfico ilegal de imigrantes e o artigo 231 do Código Penal brasileiro à luz do protocolo de Palermo (2000)

PAULO ERNANI BERGAMO DOS SANTOS [1] - Auditor fiscal de tributos


No mundo globalizado de hoje, em que a circulação dos meios de capital e a produção flexível se tornam “universais”, em que o aumento do poderio das empresas transnacionais se contrapõe à diminuição do poder dos Estados nacionais, verifica-se a transposição da atuação de organizações criminosas, antes localizadas no interior do Estado nacional, para uma ação quase invisível por todo o globo, de difícil controle pelas nações. Em razão da necessidade de colaboração entre os Estados nacionais no combate a essa nova forma de criminalidade – que dá ensejo a uma “nova” forma de escravidão -, a comunidade internacional não tem olvidado esforços para o estabelecimento de instrumentos internacionais que dêem forma à atuação conjunta das nações. Dois relevantes instrumentos são os Protocolos Adicionais de Palermo, sobre os quais faremos uma breve abordagem, para então, analisar o artigo 231 do Código Penal brasileiro à luz desses Protocolos.

Palavras Chave: Pessoas – Imigrantes – Tráfico – Palermo – Código Penal 


1. Protocolo de Palermo (2000)

A Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (“Protocolo de Palermo”), adotada pela Resolução 55/25 da Assembléia Geral da ONU ocorrida em Nova York, em 15 de novembro de 2000, vigorando internacionalmente em 29 de setembro de 2003, e seus dois Protocolos complementares (o “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças” e o “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea”, que entraram em vigor internacional na data de 29 de setembro de 2003) formam os principais instrumentos internacionais no combate à criminalidade transnacional – em especial, o tráfico de pessoas e o tráfico, ou contrabando, de imigrantes.

Com a globalização das últimas décadas, num contexto de maior mobilidade do fluxo financeiro e de acentuada flexibilidade na produção de bens e serviços, tem se assistido, paralelamente, o crescimento do fenômeno de transnacionalização da criminalidade, que se caracteriza, principalmente, pela elevada lucratividade e pela dificuldade de controle pelos Estados Nacionais. A base desse crescimento se funda justamente em aspectos gerados no seio do processo de globalização, como a elevação da pobreza em países periféricos (subdesenvolvidos ou “emergentes”), o aumento populacional e o incremento do fluxo migratório, o enfraquecimento do “Estado-nação”, resultando no que se denomina a “nova” escravidão do século XXI.

Como pontua o promotor argentino, Javier Ignacio Baños [2]:

“Más ineficaces aún – la actualidade de nuestros días lo demonstra – resultan las políticas meramente restrictivas que, a su vez, producen efectos todavía más negativos, con el peligro de aumentar las entradas ilegales e incluso favorecer la actividad de organizaciones criminales”. 

Essa “nova escravidão”, que se distingue fundamentalmente da “antiga” pelo fato de ocorrer à margem da lei, de ter um caráter essencialmente transnacional, e de originar uma relação “fática” e não “jurídica” entre explorador e explorado, tem sido confundida, muitas vezes, com o tráfico ilegal de imigrantes, cuja natureza delituosa se diferencia do tráfico de pessoas essencialmente pelo fato de não haver fraude ou coação sobre o imigrante que, por livre vontade, deseja emigrar ilegalmente para um país mais desenvolvido, com a finalidade de lá obter melhores oportunidades de trabalho, como se verá mais adiante.     

O “Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças” é o instrumento universal que trata com maior abrangência o delito de tráfico de pessoas (trafficking), abordando todos os aspectos desse tráfico. Já o “Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea” aborda o tráfico ilegal de imigrantes (smuggling).

Ressalte-se que ambos os Protocolos são complementares à Convenção, devendo ser interpretados em conjunto com os seus dispositivos - que a eles se aplicam mutatis mutandis, salvo se dispuserem em contrário (art. 1º, incisos 1 e 2).

No Brasil, a “Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional” foi promulgada pelo Decreto 5.015/04, o “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea” pelo Decreto 5.016/2004 e o “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças”, pelo Decreto 5.017/2004, de forma que tais instrumentos internacionais fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro, desde 2004. 

1.1 Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea

Nesse Protocolo Adicional, artigo 3º, ‘a’, o “tráfico ilícito de imigrantes” é definido como: a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado Parte do qual esta pessoa não seja nacional ou residente permanente com o fim de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício de ordem material”. Por entrada ilegal entende-se “a transposição de fronteiras sem o preenchimento das condições necessárias para a entrada legal no Estado receptor” (art. 3º, ‘b’).

As características principais do tráfico ou contrabando de imigrantes são, portanto: (i) a facilitação da entrada e/ou permanência no Estado Parte (artigo 6º, 1 - c, ‘a’) de pessoa que não seja nacional ou residente permanente desse Estado Parte; (ii) a finalidade de obtenção direta ou indireta de uma vantagem financeira ou material pelo “facilitador”; (iii) sua natureza transnacional.

O Protocolo incentiva os Estado Partes a tipificarem penalmente (art. 6º, 1 e 2): (i) a tentativa de cometer uma das figuras típicas do parágrafo anterior; (ii) a participação como cúmplice; e (iii) a organização ou a direção de outras pessoas para a prática de uma das figuras típicas do parágrafo anterior

O documento inclui ainda como circunstância agravante toda aquela que ponha em perigo a vida ou a segurança dos migrantes ou que dê lugar a um tratamento desumano ou degradante a essa pessoa (artigo 6º, 3). 

1.2 Protocolo Adicional para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças

Esse Protocolo Adicional traz a conceituação abrangente de tráfico de pessoas, nos termos do artigo 3º, ‘a’: a capturação, o transporte, o traslado, a acolhida ou a recepção de pessoas, recorrendo-se a ameaça ou ao uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao abuso de poder ou a uma situação de vulnerabilidade, ou a concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, com fins de exploração. Essa exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição alheia ou outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou as práticas análogas à escravidão, a servidão ou a retirada de órgãos”.

A ação tem natureza “geográfica”, de movimento de pessoas no iter do tráfico transnacional – de um lugar inicial ao lugar de destino (“a capturação, o transporte, o traslado, a acolhida ou a recepção de pessoas”) e a diferença para com o tráfico de imigrantes está em que o delito não se configura pela ilegalidade na entrada ou permanência, mas nos meios (ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao abuso de poder ou a uma situação de vulnerabilidade ou a concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra) e fins (de exploração – sexual, laboral, situação análoga a de escravo, servidão, retirada de órgãos) da conduta delitiva – não incidindo sanção no caso de ser voluntária (desde que não sob ameaça, violência etc).

No caso de crianças submetidas “a capturação, o transporte, o traslado, a acolhida ou a recepção”, não há necessidade da presença dos meios mencionados, presumindo-se para o menor de 18 anos o não consentimento

2. Código Penal Brasileiro – Artigo 231

O artigo 231 do Código Penal brasileiro, vinculado ao “tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual”, tem em seu “caput” a seguinte redação: “promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro (...)”.

Constata-se que dessa redação se extrai que a promoção ou facilitação da entrada ou saída do país para o exercício da prostituição é: i) tipo de tráfico de pessoa; e ii) é exploração sexual.

Tais pressupostos, porém, não se coadunam com as conceituações e definições expressas nos Protocolos Adicionais de Palermo.

A facilitação da entrada ilegal de uma mulher no Brasil, ou de sua saída para outro país, a fim de exercer a prostituição por sua própria escolha, com intenção, inclusive, de auferir ganhos econômicos com essa atividade aqui ou no outro país, não se configura tráfico de pessoa - enquanto não estiverem em situação de abuso e exploração.

Na verdade, se configura tráfico ilegal de imigrante, já que, nesse exemplo, a pessoa não está a sofrer qualquer ameaça de terceiros para a entrada no território nacional; a mulher optou por sua livre e espontânea vontade em vir ilegalmente para o país, a fim de exercer a prostituição. 

E mais, a ilação de que o exercício da prostituição, por si só, corresponderia à exploração sexual pode ser uma falácia, com origens históricas (tráfico de “brancas”, por exemplo).

Tanto que o mesmo artigo 231 do nosso Código Penal punia o tráfico de mulheres, “também impropriamente chamado de tráfico de brancas[3]

2.1 Tráfico de “brancas” 

O “tráfico transfronteiriço de mulheres” – ou “tráfico de brancas”, como ficou conhecido -, se confundia integralmente, a partir do final do século XIX, com “tráfico de pessoas”. Paulatinamente, as crianças vítimas daquele tráfico foram sendo incorporadas ao conceito de “tráfico de pessoas” e, somente após a 2ª Guerra Mundial, generalizou-se a expressão “tráfico de pessoas” – de forma a incluir outros elementos em sua conceituação. 

Em apartada síntese, no século XIX, a prostituição foi combatida sob o enfoque de “mal necessário”, que, contudo, deveria estar sob controle estatal, donde o controle pessoal sobre a mulher (a obrigatoriedade do uso de cartão de identidade específico), local (prostituição deveria ser exercidas em lugares pré-estabelecidos para Atal), sanitário (obrigatoriedade de realização de diversos exames relativos a doenças venéreas) e policial (controle policial permanente sobre os locais de exercício da prostituição e sobre essas mulheres). 

Numa segunda fase, sob o pretexto de que as prostitutas, “portadoras do mal”, deveriam ser “purificadas”, e com a finalidade “disfarçada” de contenção das relações sexuais fora do casamento, houve perseguição a bordéis e às prostitutas, deixando-as em situação de extrema vulnerabilidade. 

A “Convenção das Nações Unidas para a Repressão do Trafico de Pessoas e da Exploração da Prostituição” (1949) adota o fundamento dessa segunda fase, como se constata logo em seu Preâmbulo: “Considerando que a prostituição e o mal que a acompanha, o tráfico de pessoas para fins de prostituição, são incompatíveis com a dignidade e o valor da dignidade humana e põe em perigo a o bem estar do indivíduo, da família e da comunidade”. Já há aqui uma vinculação, nem sempre verdadeira, de que a prostituição é necessariamente acompanhada pelo tráfico de pessoas.  



Bibliografia 

BAÑOS, Javier Ignacio. La Conversión Del Derecho. Buenos Aires: Lajoune, 2008.

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, art. 231.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – III. 8ª Ed. Niterói: Impetus, 2011.

MIRABETTE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal II. 24ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006.ONU. “Convenção das Nações Unidas para a Repressão do Trafico de Pessoas e da Exploração da Prostituição”.

ONU. “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças”.

ONU. “Protocolo Adicional à Convenção Das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea”.


[2] La Conversión Del Derecho. Buenos Aires: Lajoune, 2008, p. 64.

[3] Ibidem


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