434 - A necessidade de se proteger a criança-consumidora


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador 


Nós, adultos, em matéria de consumo, estamos praticamente perdidos nesta sociedade capitalista que tudo produz – e qualquer coisa produz... – e que tudo vende, amparada, sustentada e auxiliada pelo marketing moderno com suas técnicas de ilusão e controle.  Para o adulto, o horizonte possível de liberdade desse enredo de terror que nos obriga a consumir, consumir e consumir é o da tomada de consciência do processo histórico, que se instituiu a partir das chamadas revoluções burguesa e industrial e que vem sendo oferecida como um projeto de liberdade.  Falsa liberdade, na medida em que quase todo seu exercício resume-se a adquirir produtos e serviços cuja escolha é limitada àquilo que é decidido unilateralmente pelos fornecedores. 

Vamos, pois, alguns de nós adultos, lutando contra o poder opressivo do mercado e outros nem se dando conta desse aprisionamento. Muito bem. Pergunto: é esse o futuro que desejamos para nossas crianças? É esse tipo de sociedade que queremos manter para que elas vivam quando crescerem? Uma sociedade em que os indivíduos medem-se pelo que possuem, pelo poder de compra, pelo que podem ter e não por aquilo que são?  

Claro que nem toda culpa é do mercado, mas com certeza o modelo que faz com que o cidadão aliene-se nas compras e acredite na publicidade, o atordoa de tal modo que ele, jogado à própria individualidade, não sabe como agir. Vendo tevê, por exemplo, assiste-se ao mundo perfeito dos anúncios publicitários: o de bancos mostrando seus gerentes sempre sorrindo e oferecendo vantagens a seus clientes, enquanto na realidade estes são enganados a torto e a direito, assinando contratos com cláusulas abusivas, recebendo cobranças de taxas absurdas, sendo obrigados a aderirem a operações casadas ilegais etc. Há, também, a propaganda de veículos maravilhosos, que nunca quebram; de telefones celulares mágicos; de serviços telefônicos excelentes etc; enfim, um longo desfile de produtos e serviços muito diferentes do real. Há, pois, dois mundos: o da publicidade e o dos fatos. 

É incumbência dos adultos conseguir fazer a leitura de tudo o que lhe é dirigido, para tentar desvendar as enganações e discernir sobre o que é válido e verdadeiro. Mas, refaço a pergunta: e nossas crianças, como estão posicionadas nesta sociedade capitalista? Como é que elas recebem o espetacular assédio do marketing e suas armas? 

Eu já tive oportunidade de comentar que tramita há muito tempo no Congresso Nacional projeto de lei que pretende proibir ou, ao menos, limitar a publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças e que recebeu substitutivos proibindo a publicidade e outras formas de comunicação mercadológica (até 12 anos incompletos), controlando e limitando àquelas dirigidas aos adolescentes (de 12 até 18 anos) ou alterando em parte as normas relativas sobre o assunto que estão no Código de Defesa do Consumidor (art. 37). 

Certamente, a limitação ou o até mesmo o fim da publicidade de produtos e serviços dirigida às crianças e adolescentes seria recebido como uma dádiva pelos milhões de mães e pais que lutam duramente para a mantença de suas famílias e sofrem com o assédio dessas ofertas. 

Vejo que alguns parlamentares têm gasto um bom tempo com projetos polêmicos e duvidosos, com o argumento de que eles beneficiariam as crianças[1]. Não seria, então, o caso de nossos representantes debruçarem-se sobre projetos sérios como o que acabei de referir? Seria um belo trunfo político, não? Mas, enquanto isso não vem (se é que virá), cabe aos pais o dever de vigilância.  

É verdade que muitos desses pais já foram absorvidos por todas as formas de consumo e, inclusive, utilizam-se do próprio mercado para controlarem seus filhos, o que é uma pena. Não que seja simples. Ainda que, por exemplo, os pais tenham o costume de limitar a exposição de seus filhos à tevê, basta um pouco para a percepção do ataque (uma verdadeira guerra de anúncios invade a sala ou o quarto em poucos minutos!). E, se o filho tem seu uso de internet limitado, é suficiente também apenas algum tempo de navegação para estar sujeito a uma explosão de ofertas.  

E, se não bastasse isso, há toda a sedução do merchandising feito em programas de tevê, filmes de cinema, vídeo e até teatro infantil nacional ou importado, o apelo dos colegas de escola, dos parentes, das lojas nos shopping-centers, pois, afinal, vive-se na cidade entre as demais pessoas, o contato é inevitável e não há mesmo nada de errado em frequentar shoppings, cinemas, teatros, viajar, assistir tevê etc. Isso tudo, digamos assim, no campo das ofertas lícitas. Mas, existe também uma enormidade de campanhas e anúncios enganosos e abusivos dirigidos diretamente às crianças. Veja. 

No excelente documentário dirigido por Estela Renner intitulado “Criança, a alma do negócio”, há vários flagrantes de enganosidade e abusividade. Num deles, acontece mais ou menos o seguinte: quatro meninas aparentando entre 5 e 8 anos vendem produtos indicando o que seria mais “descolado”, mais “bacana”. Elas usam a expressão “fashion”. A primeira, mostrando uma sandália e depois dançando, diz: “Fashion é se produzir”. Uma outra, mostrando uma bolsa, diz: ”Fashion é ter muitos amigos” e depois pega um celular e finge conversar. Uma terceira ensina: “Fashion é ouvir aquele som que a gente gosta” e coloca um fone de ouvido e passa a dançar. Bem, aparentemente nada grave até aí. Porém, a quarta menina, a mais nova, diz “Fashion é brincar”. Nesse instante as demais em tom de crítica olham para ela e gritam: O quê!!??”. Digo eu: o quê? Criança que quer brincar está errada?

O problema da publicidade em geral dirigida às crianças e também da publicidade enganosa e abusiva é que elas criam um jogo sujo colocando as crianças (isto é, os filhos) contra os pais. Estes, inseridos nesta sociedade capitalista – e também eles, como acima referi, sujeitos aos estímulos, malandragens e manipulações do marketing – entram nesse jogo sem perceber e muitas vezes por se sentirem culpados. Alguns pais trabalham o dia inteiro e tem pouco tempo livre para dedicarem aos filhos; outros procuram propiciar aos filhos o que nunca tiveram – o que não é raro, porque a maior parte dos produtos e serviços existentes atualmente não existiam na infância dos pais e com a produção em massa muitos deles tornaram-se acessíveis e não eram outrora. Pressionados pelos filhos, os pais compram e dão os produtos (no documentário de Estela Renner, vê-se como muitos pais endividam-se para comprar simples produtos descartáveis e/ou que são descartados pelos filhos depois de pouco uso). 

Desse modo, as crianças vão sendo inseridas no mundo capitalista dos produtos desnecessários muito prematuramente e também vão perdendo a infância antes da hora. Como observa a educadora Claudia Calmon, com toda razão: a relação de pais e filhos passa a ser intermediada por objetos – produtos adquiridos com sacrifício ou não. Se for com sacrifício, acresce-se à intermediação feita pelo objeto o sentimento de culpa. As crianças, de seu lado, aprendem a se relacionar pedindo coisas e os dois lados trocam muitas vezes a atenção e o carinho por produtos. 

E, há mais (muito mais). Certa vez, um anúncio de tevê de um boneco o colocava voando em cena. Em baixo, em letras minúsculas e rapidamente, aparecia: “Meramente ilustrativo”. Quer dizer, o boneco não voa de verdade. A criança vê o anúncio e com quatro, cinco anos, nada lê, evidentemente. O pai compra o brinquedo e a criança frustrada percebe que ele não voa. Daí culpa o pai. Diz que ele comprou o boneco errado. Ora, o que este pode fazer? Como é que ele explica as notas de rodapé do anúncio? Não consegue. E o conflito instaurado não tem solução. 

Repito: Não é mesmo fácil para os pais lutarem contra tudo isso. E, até que o legislador colabore, a difícil lição de casa precisa ser feita. 

Cabe aos pais e somente a eles decidir o que comprar para seus filhos. É preciso explicar aos menores a desnecessidade da aquisição da maior parte das bugigangas que são oferecidas; é salutar que se explique aos filhos o que realmente importa, o que de fato tem valor permanente. Tem-se que mostrar para as crianças, com os próprios exemplos vividos por elas, a inutilidade da maior parte de seus produtos. 

É comum que as crianças que recebam muitos brinquedos, logo se desinteressem da maior parte deles. Pode ser um bom precedente para mostrar a desimportância de ter muitas coisas ao mesmo tempo. E, evidentemente, cabe aos pais dizer não. A criança pode até se frustrar, mas será por algo válido, uma boa experiência que ela levará consigo, pois na vida adulta ela perceberá que a frustração é um elemento comum no jogo social. 

Os pais são, pois, os primeiros responsáveis por alertar seus filhos contra o assédio feito pelo marketing infantil hoje tão sofisticado e difundido.  Cabe a eles, desde logo, ensinar aos filhos como se deve decidir para comprar produtos e serviços. Qual deve ser a função do produto, seja ele um brinquedo ou uma roupa. Que se deve comprá-los sem exagero.  As crianças, se pudessem, agradeceriam as lições.  

Para terminar, quero indicar para quem tiver interesse o site de uma associação que faz um ótimo trabalho na defesa dos direitos das crianças consumidoras Chama-se Instituto Alana: www.alana.org.br. Visite que vale a pena. 

30/5/2011



[1] Falo da tentativa de aprovação da chamada lei da palmada, que pretende coibir que os pais recorram a recursos físicos mínimos na educação doméstica. Consigno, desde logo, que não há que se confundir contenção física a restrições disciplinares muitas vezes necessárias com surras e a violência física já regulada de há muito pela legislação penal pátria.


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP