435- Ética e consenso


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito


Neste mundo, já nos lembrava Shakespeare (em Macbeth), fazer o mal muitas vezes é bem visto e buscar o bem pode ser uma loucura perigosa. Numa sociedade pluralista, com divergências crescentes, inclusive naquilo que deveria corresponder a um fundo comum de valores, requer-se um esforço constante e comum de reflexão racional: do diálogo ao consenso e do consenso à convivência pacífica. 

O diálogo é melhor que o monólogo. Aliás, nesses assuntos, a sabedoria popular reflete a realidade, pois quem fala sozinho é visto como um alienado e duas cabeças pensam melhor que uma, ainda que, às vezes, participando de dinâmicas de grupo, tenha a impressão de que, de dez cabeças, nove agem antes de pensar e uma pensa antes de agir… 

A afirmação pode ser exagerada, mas esconde um questionamento: é possível se estabelecer uma conduta ética pelo critério da maioria somente? Existe um parâmetro objetivo e seguro para se aferir a moralidade da conduta eleita? 

Hoje, está em voga, por influência do relativismo reinante, uma espécie de ética à “la carte”, uma ética que rejeita o realismo que moldou a civilização ocidental e que se impõe ao sabor da opinião majoritária. Dito doutra forma, “é preciso não julgar”, porque, afinal, “tudo é relativo” e, logo, é “proibido proibir”. Se tudo é relativo, então, o próprio relativismo é relativo… 

Os defensores desta ética têm sempre suas razões, mas, sobretudo, sobram-lhes interesses. As éticas do diálogo são chamadas também de éticas procedimentais, porque defendem que o justo somente pode ser decidido quando se adota o consenso como procedimento. Habermas considera imperioso o consenso majoritário, já que as normas afetam a todos. 

De fato, ainda que não seja uma solução perfeita, o consenso é a melhor forma de conduzir a ética ao seio social. Por outro lado, é importante esclarecer que a ética não nasce como efeito automático de um dado consenso, porque, à semelhança do julgamento de Sócrates, há consensos que matam.  

MacIntyre, filósofo político inglês, propõe o seguinte problema: é legítimo, numa sociedade de doze pessoas em que há dez sádicos, um consenso que prescreva que os dois não sádicos devam ser torturados? Conferindo uma amplitude maior à questão, qual a validade de um consenso social baseado num acordo de vontades a respeito do assassinato em massa de judeus?  

Conclui-se que o consenso só é legítimo quando todos aceitam as normas básicas de conduta moral em âmbito social, normalmente prescritas pelo direito natural, que sempre nos lembra que, da natureza do homem, derivam uma série de exigências éticas, racionalmente cognoscíveis na prática.  

Concordar com as normas básicas de conduta moral quer dizer que o debate, que antecede o consenso, não é o último fundamento da ética, porque um fundamento discutível deixaria de ser fundamento: Aristóteles já disse que, quem discute a possibilidade de matar a própria mãe, não merece argumentos, mas um par de açoites…  

A ética só pode vir assentada sobre princípios não discutíveis, como não fazer ao outro o que não se deseja para si, refazer o dano causado, não alegar a própria torpeza em juízo, respeitar os contratos, defender os inocentes. Apesar disso, a interpretação dos valores como fundamento prévio do debate está sob suspeita nos dias atuais.  

A objeção mais comum estima que apelar para uma suposta evidência axiológica torna impossível um diálogo racional, porque a evidência moral é subjetiva, oposição esta que esquece o reconhecimento universal, por evidência objetiva, dos valores contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A invocação universal aos direitos humanos é uma prova cabal de que o homem, por um ângulo, sabe perfeitamente o que deve ser feito e, por outro, tem consciência de deter a liberdade suficiente para não fazê-lo. 

Para a ética à “la carte”, é preciso demonstrar a todo custo. As premissas são forjadas segundo as necessidades da causa: por exemplo, a sexualidade humana é reduzida a uma mera necessidade do ego e uma criança só tem o direito à existência fora do útero se consistir, por referência à mãe, num valor. Pouco importa se têm fundamento, desde que atirem poeira nos olhos e levem à conclusão desejada.  

Com cada um definindo o fundamento de um sistema ético, a racionalidade se transforma em loucura e a sociedade vira um hospício. E, se os princípios precedem o debate, os maus princípios, os piores debates. Salvo melhor juízo, é o que penso. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tjsp.jus.br)


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