436- Ética do diálogo e a justiça


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito 


A aceitação de um rol de princípios incondicionais como pressuposto a qualquer diálogo, no ámbito de uma ética procedimental, não é consequência de uma postura sem crítica e subjetiva. É, pelo contrário, sinal de uma reflexão imparcial sobre nossas intuições morais elementares que, em último caso, refletem uma busca pelo justo, nem que se tenha, nesse itinerário, que se fazer uma escala no injusto.  

Na famosa compilação de textos jurídicos romanos que o imperador bizantino Justiniano mandou fazer por volta do ano 530, o Corpus Iuris Civilis, existe uma clássica definição do saber jurídico. Atribuído a Ulpiano, o texto dizia que “a jurisprudência é a ciência do justo e do injusto”, o mesmo autor de outra célebre máxima do direito: “Os preceitos jurídicos são: dar a cada um o seu, viver honestamente e não lesar ninguém”. Ao que parece, como jurisconsulto, ele deve ter sido “o cara”… 

Na primeira fórmula lapidar, existe uma sugestiva e inquietante integração da injustiça. Longe de pretender decretar que o homem (ou um sistema ético) que queira ser justo deve ser primeiro injusto, a perspicaz intuição de Ulpiano indica um paradoxo da existência humana: quando a humanidade, por meio da razão ou da experiência, nota que uma dada situação ou matéria é injusta, a mesma humanidade não se limitou a desmascarar essa injustiça, mas, concomitantemente, aprendeu em que consiste a justiça. 

Podemos nos lembrar do diagnóstico marxista acerca das relações trabalhistas no bojo da revolução industrial; dos movimentos emancipatórios femininos do início do século XX; do holocausto judeu durante o último conflito mundial armado; da luta pelos direitos civis dos negros americanos na década de 60 e da marginalização econômica de vários povos no recente fenômeno da globalização.  

O superior talento prático dos romanos captou com precisão esta misteriosa pedagogia da injustiça, formulando-a teoricamente ao ensinar que é bom jurista aquele que conhece o justo, mas também o injusto. Afinal, quem descobre a razão da injustiça de algo, foi porque andou trilhando pelas sendas da justiça. Em suma, conhecer o injusto elimina qualquer risco de ingenuidade e confere profundo realismo ao conhecimento do justo. 

Procurar compreender este paradoxo, sem se deixar levar pela vertigem do ceticismo ou do pessimismo, significa perceber a miséria e a grandeza da realidade social do homem. A experiência mais elementar, desde a Grécia, ensina-nos que o homem sente com muito mais antecedência e intensidade o que os demais homens não devem fazer com ele do que aquilo que ele está obrigado a reconhecer e dar ao próximo. 

Se o mesmo homem, por amor à coerência, procede de acordo, ou seja, entende que ele também não deve fazer com o seu próximo aquilo que não deseja que façam com ele, o nosso homem terá captado corretamente a sugestão de Ulpiano: a experiência da injustiça é um caminho para a justiça. 

Em alguns momentos históricos, o embotamento da sensibilidade e a desorientação da razão, a par da evidência de flagrantes injustiças, convidam nossa esperança a uma rendição sem luta e sem horizonte. Nesse momento, nossas intuições morais elementares sempre nos alertam para a necessidade de um combate sem tréguas na busca do justo, aquilo que dá legitimidade à ética do consenso, servindo-lhe de apoio axiológico sólido, tal como Atlas, o titã da mitologia grega que sustentava o peso da abóbada celeste sobre os ombros. 

Convém lembrar-se nessas horas de que, quanto mais escura é a noite, mais próximo se está do crepúsculo da manhã. E que o reencontro com o justo é, com bastante frequência, o fruto de um sofrimento sem acomodação à injustiça. Com razão, já revelou o poeta que quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Salvo melhor juízo, é o que penso. 


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tjsp.jus.br)

 


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