437- Ética do diálogo e bovinidade
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito
Em Roma, nos idos de março de 44 a. C., Julio César é assassinado, porque os senadores entenderam que sua ambição desmedida o transformara num tirano. Mas Marco Antonio consegue, num inflamado discurso, reverter a situação junto à plebe que, consensualmente, acusa Brutus e os demais conspiradores de homicidas.
Na Al Qaeda, qualquer recruta muçulmano, quando está na iminência de explodir a si mesmo e levar metade do quarteirão junto, está muito convicto de estar praticando um ato de justiça. Em ambos os casos, o assassinato é justificado em prol de um bem maior, o amor à Roma e em nome de Alá..
Na ética do consenso, pede-se aos dialogantes que reflitam seriamente sobre a proposta em discussão. Alguns, como Rawls, mais otimistas, dão por suposto que todos os implicados atuarão com justiça na aplicação dos procedimentos Habermas, menos ingênuo e mais realista, é consciente de que os consensos podem ser injustos, de sorte que somente uma situação perfeita de comunicação poderia tornar equivalentes o consenso e a legitimidade de seu objeto. Mas somente uma educação e um comportamento excepcionais possibilitariam o alcance desta situação ideal, para não dizer quimérica. Realidade reservada somente ao mundo platônico das ideias…
Shakespeare, numa época em que não se fazia ideia da onipotência dos meios de comunicação (o que Goebbels soube explorar com maestria ideologicamente macabra), sabia que as maiorias poderiam ser massas amorfas (expressão tão cara a Adorno), sumamente manipuláveis como um rebanho bovino: a humanidade converte-se em “bovinidade”.
Em sua obra “Julio César”, depois de ouvir a justicativa de Brutus, todo o povo romano aprova o homicídio e celebra a “justa” ação do sobrinho do candidato à déspota. Em seguida, Marco Antonio toma a palavra e consegue que a opinião pública reverta o veredito anterior e acuse Brutus como assassino. Os discursos de ambos protagonistas são exemplos antológicos da alta retórica a serviço do manejo das massas. Da bovinidade.
O equívoco majoritário é uma das mais evidentes limitações do consenso. Certa vez, li que um senhor de escravos, tocado por nobres ideais, decidiu dar a carta de alforria para seus escravos. Mas muitos deles pensaram que a liberdade seria um jugo mais gravoso que o costumeiro cativeiro. Assim, a decisão do senhor foi submetida à votação e a proposta contrária à oferta de libertação foi vencedora por unanimidade.
Por esta ironia do procedimento, o amo converteu-se em escravagista por sufrágio universal. E a metáfora deixou o livro e tornou-se realidade: o culto povo alemão, ao fazer ascender Hitler ao poder pelas urnas, tornou-se escravo das conhecidas estripulias do bigodinho fardado, rivalizado no horror apenas pelas travessuras do bigodão…
O paradoxo desta situação mostra as restrições da ética do diálogo. Conhecemos consensos tão absolutos como injustos e que duraram séculos: as teorias do geocentrismo, do flogisto, do éter e da geração espontânea, disparates científicos de magnitude, que servem para demonstrar que o singelo acordo acerca de algo não assegura a validade do pactuado.
O erro, coisa muito nossa, afeta minorias e maiorias por igual e o consenso não é garantia da ética, porque não cria o real. O importante não é o consenso por si só, mas o consenso que respeite as dimensões objetivas de nossa realidade. O fato de um povo inteiro padecer da mesma patologia mental não faz destas pessoas indivíduos equilibrados. Dito de outra maneira, uma postura não se converte em boa por ser majoritária. Salvo melhor juízo, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tjsp.jus.br)