438- Ética do diálogo e realidade
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito
Os dilemas e problemas que a ética do diálogo suscitam não são de hoje. As perguntas fundamentais que testam os limites da democracia, essa apreciada conquista da humanidade, ainda continuam as mesmas. Tudo pode ser objeto de sufrágio popular? Existem limites objetivos para a vontade popular acerca da definição do certo e do errado, do bem e do mal, daquilo que merece amparo do Direito e daquilo que deve ser repudiado pela lei?
Sem dúvida, o regime democrático em que vivemos tem, entre suas fontes, o dogma rousseauniano da bondade humana e da infalibilidade da vontade geral. Aquilo que a maioria deseja é necessariamente bom e verdadeiro. Evidente que, dois séculos depois, nem os pensadores do direito mais otimistas acreditam na bondade absoluta do homem.
A propósito das democracias esvaziadas de valores, a antecâmara dos regimes totalitários, Hannah Arendt escreveu que se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do Mal (in Origens do Totalitarismo; São Paulo; Companhia das Artes; p.12).
Contudo, eles seguem acreditando ao menos na soberania absoluta da maioria. Os estóicos já descobriram que o homem – e, logo, a sociedade – tem um limite na dimensão existencial. E, se o povo é soberano, não o é de maneira absoluta, porque, embora o homem seja reitor de si mesmo, ele é, bem antes, um ser regido. Não é o homem, como queria o sofista Protágoras, a medida de todas as coisas: o homem é um ser livre, artífice de seu destino, mas sua liberdade está iluminada pelas exigências objetivas de seu próprio ser.
Não é o homem o critério supremo do bem e do mal, não é a soberania popular o parâmetro do justo ou do injusto. Tal critério é o direito natural, que sempre nos lembra que, da natureza do homem, derivam uma série de exigências éticas, racionalmente cognoscíveis na prática.
Cícero, orador e filósofo romano, escreveu, há mais de vinte séculos uma bela página a respeito da lei natural: “É absurdo pensar que seja justo tudo que for determinado pelos costumes e leis dos povos. Se os trinta tiranos de Atenas quisessem impor suas leis ou se todos os atenienses estivessem de acordo com as leis tirânicas, seriam justas tais leis? Creio que não seriam mais justas que aquela, segundo a qual o ditador poderia matar impunemente o cidadão que quisesse, sem necessidade de processo (...). Para distinguir a lei boa da má não temos outra lei que não a natural. Não somente o justo ou o injusto, mas também o honesto e o torpe se discernem pela natureza. A natureza nos deu assim um sentido comum, que foi esboçado em nosso espírito, para que identifiquemos o honesto como virtude e o torpe como vício. Pensar que isso depende da opinião de cada um, e não da natureza, é coisa de louco (De legibus, 1, 15-16)”.
Promover a ética social por consenso é o mais humano e democrático dos procedimentos. E, nesse sentido, as atuais éticas dialógicas, sobretudo quando positivadas pelo Direito, têm contribuído pouco. Em substituição, sugiro outra ética dialógica, fundada no real percebido, tão antiga como a humanidade e, como a humanidade, sempre atual: a ética representada pelos diálogos éticos de Platão, escritos e celebrados há mais de dois mil anos.
Trata-se de uma verdadeira antologia acerca dos grandes debates acerca do homem e da sociedade, moderados por Sócrates, nos quais muito se dialoga sobre a excelência individual e social com todos os matizes da natureza humana em suas mais nobres e reais dimensões. Felizmente, nossa tradição jurídica tem conduzido a barca social sob este prumo ético, apesar dos retrocessos recorrentes. Ignoramos o amanhã, mas estamos convictos do acerto da escolha ética de ontem. Hoje, salvo melhor juízo, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tjsp.jus.br)