444 - Os indícios de crime contra a ordem tributária e o prazo para homologação do lançamento pelo Fisco
PAULO ERNANI BERGAMO DOS SANTOS [1] – Auditor fiscal de tributos
Introdução
O tema que se apresenta assume enorme relevância na relação Fisco-contribuinte, a qual passa a ser permeada por algumas garantias em prol da justiça fiscal, tais como as elencadas na Lei Complementar Estadual - SP nº. 939/03, em especial, o dispositivo que garante: o "não encaminhamento ao Ministério Público, por parte da administração tributária, de representação para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária, enquanto não proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência do crédito tributário correspondente" (art. 5º, IX).
Em nível federal, a Lei nº 9.430/96, art. 83, “caput”, alterada pela Lei 12.350/2010, já dispunha que: "a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, (...) será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente".
A discussão sobre se esse dispositivo conflitaria com a competência constitucional do Ministério Público (MP) para a proposição da ação penal pública (art. 129, I, Constituição Federal), em caso de crime contra a ordem tributária – o que será objeto de sintética análise no decorrer desse trabalho –, não há que encobrir o aspecto “pragmático” da questão, qual seja, a melhor “concatenação” entre o que se decide na instância administrativo-tributária e a atuação do Ministério Público, em benefício das partes envolvidas.
Como coloca Edmar Oliveira Andrade Filho [2]: “o que pretendeu o art. 83 da Lei 9.430/96 foi ordenar, no tempo, a atuação de cada um dos órgãos interessados nas condutas que constituem crimes contra a ordem tributária (...)”.
A comunicação de “indícios de crime contra a ordem tributária” – a denominada, "representação fiscal para fins penais", que os Agentes do Fisco estão obrigados pela legislação a formalizar quando se depararem com situações que, em tese, configurem crimes definidos no art. 1º ou 2º da Lei nº 8.137/90 – traz reflexos na determinação do prazo para homologação do lançamento tributário e na do prazo decadencial aplicável pelo órgão julgador administrativo, em razão do prazo de homologação diferenciado que o Código Tributário Nacional (CTN) excepciona nos casos de “dolo, fraude ou simulação” (art. 150, § 4º, in fine, CTN).
Quais os limites da competência do órgão julgador administrativo ao ter de decidir, por exemplo, sobre a expiração ou não do prazo à homologação de lançamento que, impugnado, tenha pagamento parcial do imposto devido e que apresenta fortes indícios de ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”?
Se lhe cabe determinar o prazo de homologação a ser aplicado ao caso "concreto" e se, para a determinação desse prazo, a comprovação da ocorrência (ou não) de “dolo, fraude ou simulação” é fundamental, não estará esse órgão “decidindo”, em âmbito administrativo, sobre a configuração ou não de crime contra a ordem tributária, definido nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, nos casos em que não haja elementos que, independentemente da seara administrativa, permitam a atuação do Ministério Público?
E ainda, em caso positivo, não estará essa decisão conformada ao princípio da “intervenção mínima” do Direito Penal – a ultima ratio de proteção da sociedade em face da violação de seus valores e bens mais prezados?
I. O impacto da decisão administrativa definitiva sobre a exigibilidade do crédito tributário na propositura da ação penal pelo Ministério Público
A primeira questão que se assoma é a de a quem compete homologar o lançamento de tributo cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento. E essa questão está claramente respondida pelo "caput" do art. 150 do CTN: à “autoridade administrativa”. Não qualquer “autoridade administrativa”, mas aquela que tem o “poder-dever” de efetuar o lançamento e afirmar se o tributo é (ou não) devido, nos termos do art. 142, do CTN.
A essa altura, segue-se o posicionamento de que o lançamento tributário pode ser visto sob a ótica tanto de “procedimento administrativo” como de “ato administrativo”, entendimento este que é corroborado por ilustres tributaristas, dentre os quais, José Souto Maior Borges [3]: “O lançamento é tanto o ato como o procedimento que antecede a emanação desse ato.”
Considerado o lançamento sob a ótica de procedimento administrativo, anterior ao ato administrativo de lançamento, tudo se dá de forma a se verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível, conforme o artigo 142, "caput" do CTN [4].
Como esclarece Rubens Gomes de Souza [5], o procedimento administrativo tributário: "caracteriza-se por uma série ordenada de atos e termos, através dos quais se procura fixar, com precisão, se a matéria é tributável e, em caso positivo, quantum do tributo ou a penalidade cabível". Com a comunicação ao sujeito passivo (intimação, citação, notificação do sujeito passivo), esse procedimento realizado por agente público competente [6] se completa, culminando no ato administrativo de lançamento, que declara o crédito tributário. A obrigação tributária, a partir de então, torna-se exigível.
Mas o sujeito passivo poderá discordar do lançamento tributário assim formalizado, recorrendo tempestivamente à esfera administrativa, para obter uma decisão sobre o aspecto controverso, dando início ao processo que resultará numa decisão definitiva no âmbito administrativo (que poderá ser questionada pelo sujeito passivo junto ao Poder Judiciário, nos termos do artigo 5º, XXXV da Constituição de 1988). Em síntese, o procedimento de lançamento tributário tem por escopo preparar o ato de lançamento, enquanto o processo administrativo surge após a efetivação desse ato [7] – enquanto ainda não definitivo.
Ao impugnar o crédito tributário, a exigibilidade da obrigação tributária fica suspensa, nos termos do artigo 151, III, do CTN, podendo o lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo sofrer alterações no decorrer do processo (art. 145, CTN). Se houve erro na base de cálculo, na alíquota ou na penalidade aplicável, por exemplo, será dada às partes (sujeito ativo / sujeito passivo) a oportunidade de apresentarem seus argumentos e provas que corroborem suas alegações, com a garantia do contraditório e da ampla defesa, até a decisão que encerre a instância administrativa.
É nessa última fase, portanto, que serão também apreciadas as provas constantes dos autos, com o fim de se determinar o prazo de homologação do lançamento e da extinção do direito de a Fazenda Pública efetuar o lançamento de ofício das diferenças porventura apuradas. “Nesta última etapa, entretanto, é que se estabelece o convencimento do julgador acerca da ocorrência ou não (...) do ilícito tributário, pautado nas provas articuladas por ambas as partes” [8].
O ilícito tributário (infração tributária) se verifica quando há, por parte do sujeito passivo, o descumprimento das obrigações principais (infração tributária material) ou acessórias (infração tributária formal) previstas na legislação tributaria, ficando sob a sujeição de aplicação de penas pecuniárias, apreensões, perda de mercadorias ou sistema especial de fiscalização, a depender da natureza do tributo [9]. Há também uma penalização adicional, em âmbito exclusivamente tributário, no caso da ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”, tendo em vista que o prazo para homologação do lançamento se alarga nesse caso, pela aplicação combinada do artigo 150, §4º, in fine, e do artigo 149, VII, culminando no prazo decadencial previsto no art. 173, I, todos do CTN. E caberá ao órgão julgador administrativo (singular ou colegiado) decidir sobre a questão.
Os ilícitos penais (crimes tributários) são infrações que, segundo a política criminal do momento, violam de maneira mais grave o bem jurídico que se quer protegido: a arrecadação tributária [10]. E para estes, o legislador elegeu penas mais graves, visando predominantemente “coagir o contribuinte a satisfazer as necessidades públicas mediante o pagamento de tributo” [11]. Tanto assim é que a punibilidade pela prática de crime contra a ordem tributária poderá ser extinta a qualquer tempo, mesmo após a sentença penal condenatória, bastando que o sujeito passivo promova o pagamento do tributo e acessórios [12]; i.é, maior relevância para o pagamento do crédito devido do que, propriamente, à repressão penal à conduta contrária a ordem jurídica como um todo.
Nesse diapasão, há que se atentar para o fato de que arrecadação tributária não é sinônima de política tributária, mas parte desta. De acordo com Fernando de Holanda Barbosa e Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa[13], o sistema tributário moderno deve ter como principais objetivos: ser eficiente (“quando, para uma dada receita tributária, ele otimiza a alocação dos recursos na economia”), simples (quando “é relativamente barato, tanto no custo de arrecadação do fisco quanto no custo do contribuinte para o pagamento dos impostos”), flexível (quando responde “com facilidade às mudanças nas condições econômicas”), transparente (“quando ele traduz as preferências da sociedade e cada indivíduo sabe precisamente quanto está pagando de impostos”) e justo (modernamente, um sistema tributário justo seria “aquele que produzisse a receita tributária desejada e que ao mesmo tempo maximizasse o bem-estar da sociedade, levando-se em conta o grau de equidade que se pretende atingir na mesma”). Se a política criminal sobre infração tributária está calcada prioritariamente na proteção da arrecadação, talvez esteja em dissonância não só com o que se entende por sistema tributário moderno, mas principalmente com a posição reservada ao Direito Penal – último “bastião” de proteção da sociedade e de seus valores mais relevantes. Preferível, portanto, a posição de Hugo de Brito Machado [14], no sentido de que o bem jurídico protegido seria, na verdade, a “ordem tributária, o poder de tributar em sua conformação ampla e genérica”.
Voltando ao tema central em apreço, a “representação fiscal para fins penais”, que inclui os casos de constatação de indícios de crime contra a ordem tributária (mais especificamente, aqueles previstos nos artigos 1º e 2º, da Lei 8.137/90), terá ou não seu prosseguimento a depender da decisão do órgão administrativo de julgamento. A Portaria SRF nº. 326, de 15 de março de 2005 (art. 3º, § 5º), determina "o arquivamento dos autos da representação fiscal para fins penais, se cumulativamente, a exigência do crédito tributário houver sido julgada improcedente pelos órgãos singulares ou colegiados da jurisdição administrativa e não couber recurso administrativo para efeito de revisão do julgado", nas situações que, em tese, configurem crime definido no art. 1º ou 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990.
Cabe questionar então, se a decisão administrativa definitiva sobre a ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”, que, num primeiro momento, está adstrita ao campo tributário, terá efeitos sobre a proposição da ação penal pública pelo Ministério Público.
A ação penal relativa aos crimes contra a ordem tributária é pública incondicionada, não dependendo, portanto, de representação para a iniciativa do Ministério Público. É o que se impõe com a leitura combinada do artigo 15 da Lei 8.137/90 e do artigo 100, § 1º, do Código Penal. A "representação fiscal para fins penais" mais se coaduna, isto sim, com o que dispõe o artigo 16 da Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, i.é, a "faculdade" de qualquer pessoa provocar a iniciativa do Ministério Público, indicando por escrito os fatos e elementos de convicção acerca do cometimento de crime contra a ordem tributária, apesar de que, os Auditores Fiscais, enquanto membros do Fisco, têm suas condutas vinculadas às disposições legais que os obrigam à essa comunicação.
Ocorre que, de acordo com a jurisprudência de nossos Tribunais: “a existência de crédito tributário exigível, predefinido mediante conclusão de procedimento administrativo, é imprescindível para realizar o tipo do delito de sonegação" (Supremo Tribunal Federal - HC 86236 / PR - Relator: Min. Cezar Peluso. Julg. 02/06/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma - Publicação DJe-118 26-06-2009). Ou ainda: “Consoante orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual crime contra a ordem tributária depende, para sua caracterização, do lançamento definitivo do tributo devido pela autoridade administrativa.” (Superior Tribunal de Justiça – HC 102853/TO, 6ª Turma, rel. Min. Jane Silva, j. 07.08.2008, DJ, 25.08.2008).
No mesmo sentido, Edmar Oliveira Andrade Filho [15] argumenta que: "Por tais razões é livre de dúvidas que a consumação dos crimes contra a ordem tributária só pode ser afirmada depois de esgotadas todas as instâncias administrativas de que dispõe o sujeito passivo para discutir a exação. Isto porque o lançamento tributário, como vimos, pode perfeitamente ser desconstituído, hipótese em que desapareceria o núcleo central do tipo penal; a supressão ou redução do tributo".
A competência do Fisco, como órgão integrante da Administração, não se confunde com a do Ministério Público, órgão dela independente. Mas apesar da clara distinção entre as competências e funções desses órgãos, no caso específico da decisão administrativa definitiva sobre lançamento tributário, se vislumbra uma “zona de intersecção” entre os dois: “os tipos penais dos delitos tributários são autênticas normas penais em branco, que dependem de complementação normativa do Direito Tributário (...). O Direito Tributário contém, pois, elementos essenciais à adequação típica da conduta” [16]. Se ao órgão julgador administrativo cabe a decisão definitiva sobre o lançamento tributário impugnado e, como apontado anteriormente, sobre a ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”, poderá nem mesmo haver ação penal se não se detectar, ainda na área tributária, o “resultado de suprimir ou reduzir tributo” [17]; e ainda, como os crimes tributários são “dolosos”, também nesse ponto há influência daquela decisão sobre a propositura da ação penal. Como coloca Leandro Paulsen: "A norma do caput do art. 83 da Lei nº. 9430/96 condiciona o encaminhamento de representação Fiscal ao Ministério Público ao fim do processo administrativo tributário, no qual haja sido o contribuinte declarado devedor do tributo e no qual tenha sido apurada a existência de crime contra a ordem tributária" [18].
A considerar ainda que, caso o contribuinte promova uma interpretação errônea da legislação tributária, no que concerne aos créditos, alíquotas ou base de cálculo, por exemplo, nem por isso estar-se-á necessariamente diante da figura dolosa, tendo em vista a própria complexidade dessa mesma legislação e a boa-fé objetiva que deve permear a relação do Estado com seus contribuintes e vice-versa (STF – HC 7798/PR – DJ 14/06/1999, p. 227).
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 1571, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a regra do artigo 83, “caput”, da Lei 9.430/96, não se consubstancia em “condição de procedibilidade” da ação penal, mas sim de determinação do momento em que as autoridades fazendárias estão obrigadas a enviar ao MP a notitia criminis de crime contra a ordem tributária. Ou seja, tem-se que efetivamente está na competência do órgão julgador administrativo decidir definitivamente, em âmbito administrativo, sobre o prosseguimento ou não da “representação fiscal para fins penais”.
Da ADI mencionada se conclui que, da decisão administrativa definitiva sobre o lançamento tributário resulta a “condição objetiva de punibilidade” (o lançamento definitivo), condição sem a qual a pretensão punitiva do Estado não pode ser exercida, e não “condição de procedibilidade”, tal como acima comentado; o Ministério Público não depende de representação fiscal para propor a ação penal pública [19], mas sim da decisão administrativa – pois é ela que torna o lançamento tributário definitivo.
Como resultado de jurisprudência que se firmou na Alta Corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal aprovou, em 02/12/2009, a Súmula Vinculante nº 24, publicada no DOU de 11/12/2009: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90 antes do lançamento definitivo do tributo”.
Em suma, o lançamento tributário consolidado (e tornado exigível) pela decisão administrativa definitiva é “condição objetiva de punibilidade” de crime contra a ordem tributária, sendo a “representação fiscal para fins penais”, no caso de ter havido supressão ou redução dolosa, mediante as condutas descritas na Lei 8.137/90, uma “comunicação” ao Ministério Público autorizada por essa decisão.
II. A decisão administrativa definitiva sobre a exigibilidade do crédito tributário e os crimes do art. 1º e 2º da lei 8.137/90
Na acepção de que o “núcleo” do tipo penal do artigo 1º da Lei 8.137/90 está nas ações de “suprimir ou reduzir tributo” [20], e refletindo em sintonia com o pensamento de Hugo de Brito Machado, “tributo” cuida, efetivamente, da “relação jurídica obrigacional que se instaura com a concretização da hipótese de incidência tributária” [21]. Ou seja, “suprimir tributo” significa impedir que o nascimento dessa relação jurídica seja reconhecido pelo Fisco; “reduzir tributo”, obstaculizar que essa relação jurídica já nascida seja reconhecida em toda a sua extensão econômica. E essa ação-núcleo se “concretizará” por meio de alguma das condutas expressas nos incisos - a ação-meio que “como elemento do crime de supressão ou redução de tributo há de ser sempre enganosa e ter por objetivo produzir erro de fato” [22].
Outro ponto relevante repousa na necessidade de que, para que esteja tipificado crime tributário, as condutas sejam “dolosas”, o que deverá ser objeto de análise do órgão julgador administrativo quando de sua decisão definitiva. Como pontua Roberto dos Santos Ferreira [23]: “somente haverá crime tributário se o sujeito passivo, após a ocorrência do fato gerador, dolosamente praticar qualquer das condutas descritas nos vários tipos da Lei 8.137/90, com o fim de reduzir tributo ou, mesmo, eximir-se da obrigação tributária”.
Como disposto no Código Penal (CP), o crime é doloso "quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo" (art. 18, I). O parágrafo único do mesmo artigo do CP prevê que “ninguém será punido por fato previsto em crime, senão quando o pratica dolosamente, salvo os casos expressos em lei”. Por fim, o art. 12 do CP preceitua que "as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso".
Como a Lei 8.137/90 não trata o tema de maneira diversa, deduz-se que os crimes apontados nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 têm de ser cometidos dolosamente, para serem caracterizados como tal [24].
A pergunta sobre se há alguma ligação entre o significado de “dolo, fraude e simulação”, e a ação-núcleo ou as ações-meios, expressas nesses artigos, terá sua resposta exarada da definição de “dolo”, “fraude” e “simulação” e da verificação da correlação entre essa definição e as ações retro citadas.
E já no artigo 1º, inciso I, da Lei 8.137/90, encontra-se a conduta de “prestar declaração falsa”. Sobre a fraude ao Fisco, é “fundamental que a ação seja enganosa e tenha por objetivo produzir erro, ou seja, que com o propósito de produzi-lo, se usem artifícios para simular a existência de fatos que não existem, ou para ocultar a realidade de fatos existentes” [25].
Sem que se adentre na análise de cada ação descrita nos demais incisos, vê-se que a Lei 8.137/90 prevê a “fraude” e a “simulação”. Na simulação, a reação do Direito "concentra-se na busca do verdadeiro ato praticado, enquanto, na fraude, o objetivo é a desconstituição da realidade jurídica que se intentou criar" [26].
Quanto ao “dolo”, Maria Helena Diniz [27] leciona: “é o emprego de um artifício ou expediente astucioso para induzir alguém à prática de um ato que o prejudica e aproveita ao autor do dolo ou a terceiro (...) o dolo é, intencionalmente, provocado na vítima pelo autor do dolo ou por terceiro”. Ou ainda, como esclarece Francisco Amaral [28]: “é uma declaração enganosa da vontade, visando produzir efeito diverso do ostensivamente indicado”. Ou seja, também o “dolo” encontra-se dentre as diversas condutas destinadas a “suprimir ou reduzir tributo”.
Há, portanto, um liame entre a decisão administrativa definitiva que confirma a ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”, para efeitos de aplicação do prazo decadencial do artigo 173, I, do CTN, e a propositura da ação penal pelo Ministério Público. Com a existência da “condição objetiva de punibilidade” (o lançamento tributário definitivo), a ação penal estará apta a ser proposta, mas a configuração dessa condição objetiva estará embasada na decisão administrativa definitiva sobre o lançamento tributário – agora sim, transformado em crédito tributário exigível.
A competência da última instância administrativa de adentrar ao mérito da tipificação da conduta do agente em crime contra a ordem tributária e, por consequência, no arquivamento ou não da “representação fiscal para fins penais”, é uma segurança a mais para o agente do Fisco que terá sua percepção inicial de indícios analisada por um órgão paritário em mais profundidade, com provas robustecidas ao longo das diversas instâncias administrativas e como resultante do contraditório e da ampla defesa assegurada às partes, o que pode modificar sobremaneira aquela percepção inicial – corroborando-a ou retificando-a. Se corroborada, em caso de processo judicial, o Agente Fiscal que fez a comunicação prestará as informações solicitadas em juízo com muito mais fundamento; se retificada, o eximirá de qualquer constrangimento na via judicial, já que essa decisão definitiva vincula a Administração. "Entronizado este pensamento, a autoridade administrativa deve estar antenada com a prática delituosa, para efeito de representação (...). Evita-se de um lado medidas inexitosas repousando no excesso de exação; de outro, qualquer prevaricação, assumindo a responsabilidade para comunicação ao Ministério Público, também a autoridade policial, quando confirmado o tributo e caracterizado o ato ilícito praticado" [29]. (17)
Como o órgão julgador administrativo é órgão da Administração, também está inserido no poder-dever da Administração Pública de controlar seus próprios atos, visando à sua eficiência e legalidade. Isto é, "sempre será possível que a Administração Pública promova a revisão de seus próprios atos, enquanto não tiver ocorrido a decadência" [30].
III. Decisão administrativa definitiva sobre a exigibilidade do crédito tributário e o princípio da “intervenção mínima” do Direito Penal
Na concepção de que o Direito Penal é o “último” instrumento de proteção da sociedade contra violações de relevo para a manutenção da vida social, preconiza-se o Direito Penal “mínimo”, isto é, o acionamento do Direito Penal somente em caso de “os demais ramos do Direito comprovadamente, não foram capazes de proteger aqueles bens considerados de maior importância” [31], donde o caráter “subsidiário” do Direito Penal, em relação aos demais ramos do Direito (direito administrativo, direito civil, etc).
Sobre o princípio da intervenção mínima, Jesus Maria Silva Sanchez [32] assevera que: “[...] Este princípio, admitido unánimemente por la doctrina, expresa la idea – que venimos comentando – que el derecho penal ha de reducir su intervención a aquello que sea estrictamente necesario em términos de utilidad social general”.
Nesse contexto, também se insere o Direito Administrativo e sua vertente tributária, o qual deve estar munido de arcabouço jurídico suficiente a prevenir e punir as condutas que configurem ilícitos administrativo-tributários, aplicando-se o Direito Penal somente nos casos em que se afigure como última solução possível.
Cabe mencionar a lição de Cezar Roberto Bittencourt [33] sobre esse tópico: “Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio (...)”.
A formação ou não da “condição objetiva de punibilidade” por meio da decisão administrativa definitiva sobre o lançamento tributário, se insere justamente nesse âmbito de busca de uma solução administrativa à violação da ordem jurídica, deixando ao Direito Penal casos reputados mais relevantes socialmente.
Conclusão
De todo o exposto, depreende-se que o órgão julgador administrativo tem competência para analisar as provas contidas nos autos que comprovem a ocorrência de “dolo, fraude ou simulação”, para fins de determinação do prazo de homologação do lançamento tributário, e, por isso mesmo, e em decorrência dessa competência, para adentrar na análise dos elementos que possam vir a configurar crime contra a ordem tributária – inclusive autorizando ou não o envio da “representação fiscal para fins penais” ao MP –, nas situações em que o Ministério Público não tenha outros elementos que balizem o início da ação penal.
[1] Bacharel em Direito e Engenharia (POLI – USP), especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura, especialista em Direito Tributário pela EDESP GV,especialista em Direito Financeiro pela EAESP GV, auditor fiscal tributário, Vice-Presidente da 3ª Câmara Julgadora do Conselho Municipal de Tributos SP (biênio 2008 – 2010).
[2] In Direito Penal Tributário. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 121.
[3] In Lançamento Tributário. 2ª ed. São Paulo, Malheiros, p. 377.
[4] SANTOS, Paulo Ernani Bergamo dos. Conselho Municipal de Tributos e o Processo Administrativo Fiscal no Município de São Paulo. São Paulo: CENOFISCO, 2011, p. 57.
[5] In Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo, Resenha Tributária, edição póstuma, p.107.
[6] DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. 2ª ed. São Paulo, Max Limonad, p. 162 -163.
[7] TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo, Noeses, 2005, p.270.
[8] TOMÉ, Fabiana Del Padre. Op cit, p. 81/82, 144.
[9] NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 203.
[10] SALOMÃO, Heloisa Estellita. A Tutela Penal e as Obrigações Tributárias na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2010, p. 190.
[11] SOARES, Antônio Carlos Martins Soares. A Extinção da Punibilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 59.
[12] MACHADO, Hugo de Brito. Op cit, p. 373.
[13] “O Sistema Tributário No Brasil: Reformas e Mudanças”. In BIDERMAN, Ciro & ARVATE, Paulo (orgs.), Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 295.
[14] Op cit, p. 363.
[15] In Crimes Contra a Ordem Tributária e Contra a Previdência Social. 6ª ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2009, p.119/120.
[16] FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes Contra a Ordem Tributária. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39-40.
[17] JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito Penal Tributário. Campinas: Millenium, 2007, p. 208.
[18] PAULSEN, Leandro et al. Direito Processual Tributário. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2008, p. 41/42.
[19] “Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (...)” (trecho de ementa - HC 81.611 – DF – Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
[20] O aperfeiçoamento do tipo penal, no caso das condutas do artigo 2º da Lei 8137/90, ocorrerá se essas condutas forem capazes de produzir o resultado de “suprimir ou reduzir tributo”.
[21] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. Rio de Janeiro: Atlas, 2008, p. 334.
[22] MACHADO, Hugo de Brito. Op cit, p. 337.
[23] FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes Contra a Ordem Tributária. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 60.
[24] FERREIRA, Roberto dos Santos. Op cit, p. 46.
[25] VILLEGAS, Hector apud MACHADO, Hugo de Brito. Op cit, p. 337.
[26] HUCK, Hermes Macedo apud LOVATTO, Alecio Adão. Crimes Tributários. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.155.
[27] In Curso de Direito Civil Brasileiro - Vol. I. 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 457.
[28] In Direito Civil: Introdução. 6ª ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 522-523.
[29] ABRÃO, Carlos Henrique. Crime Tributário: Um estudo da norma penal tributária. 2ª ed. São Paulo: IOB, 2009, p. 26/27
[30] FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 271.
[31] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, Vol. I. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2005, p. 13.
[32] In Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. Barcelona: Jose Maria Bosch Editor, 1992, p. 346/247.
[33] Apud GRECO, Rogério. Op cit, p. 46.