445 - Overbooking, atrasos, mau atendimento etc.: os péssimos serviços prestados pelas companhias aéreas e suas técnicas lucrativas

LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador 


Nunca se voou tanto. Nunca os consumidores deixaram tantos milhões de reais, dólares, euros ou o que o valha nos cofres das companhias aéreas. Conclusão: as empresas estão faturando alto. Mais dinheiro em caixa, mais lucro, mais dividendos distribuídos para os acionistas, maiores bônus entregues aos executivos do alto escalão e mais benefícios aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados... Opa! É melhor parar por aqui porque na frase anterior nem tudo é verdadeiro, isto é, o último trecho é falso.

Com tanto dinheiro ganho seria de esperar mais benefícios distribuídos aos consumidores e melhor qualidade dos serviços prestados. Infelizmente, por incrível que pareça, está acontecendo o oposto: quanto mais ganham as cias aéreas piores ficam os seus serviços. É o novo sistema do século XXI: o capitalismo de ponta cabeça. Pois vejam o que aconteceu recentemente com meu amigo Walter Ego. 

Ele foi convidado a visitar um núcleo de pesquisa sobre publicidade em Cambridge, Estados Unidos da América. Feliz da vida, ele me disse: "Rizzatto, vou quarta-feira e volto domingo. Poderemos almoçar já na segunda-feira e eu te conto as novidades. É pouco tempo, mas terei dois dias inteiros para aproveitar". 

"Big esforço", pensei, mas nada disse. E ele se foi – bem, quando se trata do W. Ego tudo pode acontecer.  

Na quarta-feira à noite, ele dirigiu-se ao balcão da United Airlines e, assim que chegou no primeiro atendimento, disseram-lhe que o avião previsto para decolar às 22:00 horas iria atrasar duas horas. Ele perguntou porque e lhe responderam não saber. A moça que o atendeu apenas completou que a aeronave que deveria ter partido da origem pela manhã, estava voando naquele momento para chegar ao aeroporto de Cumbica. Daí o atraso. "Se vocês sabiam disso desde hoje cedo, porque não avisaram aos passageiros para que todos viessem ao aeroporto mais tarde", perguntou indignado. Recebeu o silêncio como resposta. 

W. Ego não se deu por satisfeito e no segundo atendimento, insistiu com o outro atendente. Este disse que o atraso fora ocasionado por problemas mecânicos e, por isso, a aeronave só teria saído pela manhã e chegaria às 23:00 horas. Assim, a previsão de saída era 0:30 horas. Meu amigo recuou, pois deveria chegar em Washington a tempo de pegar sua conexão para Boston, seu destino final, mas com esse atraso já não daria. (Até porque ele sabia que se falaram 0:30 horas, seria ao menos meia hora a mais). 

Ele perguntou sobre a conexão e, depois de alguma pesquisa, foi-lhe garantido que ele seria colocado no voo seguinte, o das 12:28 horas saindo de Washington para Boston. "Lá se foi um terço de um dia dos dois que eu tinha. Mas, tudo bem. Ainda tenho um dia e dois terços", pensou meu azarado amigo. Antes de fazer o check-in ele ainda insistiu e perguntou se estaria mesmo no voo das 12:28 horas. Ele explicou que somente ficaria em Boston e Cambridge por praticamente dois dias. Se perdesse um, não valeria a pena ir. Garantiram-lhe que não havia com o que se preocupar. Ele topou e recebeu um novo ticket com a anotação do voo para Boston, às 12:28 horas.  

Mais tarde, na área de embarque, às 23:20 horas sentou a seu lado um rapaz que apontou para a aeronave estacionada ao lado da porta de embarque e disse que nele chegara vindo do Rio de Janeiro, umas três horas antes. "Aquele mesmo", perguntou, curioso, meu amigo. "É. Ele mesmo. Um sete sete sete". "Mas, ele não estava voando e somente chegaria às vinte e três horas?", perguntou para si mesmo e depois indagou o rapaz: "Tem certeza que é o mesmo avião". "Acho que sim, pois estou aqui há muito tempo e não o vi se mover do lugar". Mistério. 

E, nada se podia fazer. Os passageiros esperaram e o avião partiu para seu destino quase à uma hora da madrugada com muitos assentos vazios, o que chamou a atenção de W. Ego – sempre desconfiado. 

A essa altura, deveria estar com sono, mas não. Ficou aguardando receber alguns mimos dos comissários de bordo, mas à exceção do fone de ouvido nada lhe foi entregue. Esperou o sono chegar e lembrou-se dos velhos tempos, época em que mesmo estando na classe econômica, o passageiro recebia lenço umidificado, meias "postiças", escovinhas de dentes, etc. "Acabaram os mimos na exata proporção em que aumentaram os lucros", pensou e não conseguiu dormir.  

Quando retornou ao Brasil, ele me disse: "Quer saber mais? Veio a comida – uma porcaria, mas eu não esperava muito. Pedi um vinho tinto, pois me ajudaria a dormir. A comissária me entregou uma pequena garrafa de um vinho americano e falou 'Seu cartão' . Eu, na hora, não entendi, mas vi que ela estava parada esperando. Daí, ela repetiu 'Seu cartão'. Só nesse instante percebi que ela estava me cobrando. Tive de pagar sete dólares pelo vinho. É mole?”. (E, durante uma pequena turbulência, acabou derrubando o vinho na sua camisa branca...). Depois, filosofou: "Será que um dia nos cobrarão para irmos ao banheiro do avião? Ouvi que já há companhias aéreas cobrando pela comida. Acho que é isso. É fatal. Um dia pagaremos pelo banheiro e para assistir aos vídeos. É. Vão colocar filmes à disposição, como fazem os hotéis. Nós passaremos o cartão de crédito no assento do banco e assistiremos ao filme escolhido. Além, de passarmos o cartão na porta do banheiro..." 

Eu intervi: "Não quero te desanimar, mas em alguns voos da Continental Airlines (que hoje é do mesmo grupo da American) para assistir aos filmes oferecidos é preciso pagar. Com cartão de crédito, claro. E, a Pluna (empresa uruguaia) já cobra pela comida oferecida e, embora escolhendo, nem sempre há a opção oferecida, porque as porções acabam". Ele disse, desanimado: "Bem, então, logo chegaremos à cobrança pelo uso do banheiro." 

*** 

Volto à viagem, porque há mais. Walter Ego chegou em Washington às 9:00 horas e ficou perambulando pelo limpo aeroporto até às 11:00, quando se dirigiu ao local de embarque. Mais uma surpresa: deu overbooking para ele e outros quatro passageiros. Pior que o rapaz do balcão nada dizia. Apenas falava para ele aguardar o chamado de seu nome. Ele e os demais passageiros confirmados não tinham lugar garantido no voo. Nervoso, ele só pensava em duas coisas: na mala despachada para Boston logo após a imigração e no tempo que iria lhe restar se ele perdesse esse outro voo. "Será que ficarei viajando dois dias de avião e voltarei para casa, alimentado por comidinhas com gosto de papelão e vinho ruim sem sequer ter colocado os pés em Boston?". Voltou ao balcão, mas ouviu do atendente, agora ríspido: "Eu disse para o senhor ficar aguardando que chamaremos seu nome". Ele deu um passo atrás, bem irritado, porque só queria ter alguma notícia, receber alguma esperança. Seu estômago doía, por tudo e pelo nervoso. 

Foi nesse momento que ele notou algo curioso. Num painel eletrônico ao alto, aparecia o nome das pessoas que estavam no overbooking. Acima dos nomes um pedido para que elas aguardassem a chamada. O nome dele aparecia em terceiro lugar. Tudo muito organizado, isto é, o overbooking era parte da rotina. Já havia um painel adredemente preparado para colocar o nome dos azarados consumidores que, certamente, todo dia, eram rejeitados no voo no qual, de direito, deveriam embarcar. Viu ele, desesperado, que fazia parte da rotina. Não era um incidente incomum ou inesperado. Fazia parte de um sistema tão impessoal como regular. 

Olhando no painel, ele percebeu que o mesmo intercalava o aviso com o nome dos consumidores que estavam sem assento no voo com um outro aviso que oferecia algumas benesses para quem quisesse desistir do mesmo, abrindo lugar para os que estavam em overbooking. (Como se sabe, essa tática é utilizada no mundo todo para conseguir abrir espaço para os que ficaram de fora ilegalmente. Normalmente, são oferecidos passagens, créditos em passagens e até pagamentos em dinheiro, além de hotel, alimentação, transporte. etc.). A novidade era o painel bem integrado ao sistema de atendimento. "Tudo muito limpinho. Uma violação e uma operação bem higiênicas", pensou meu amigo. 

O embarque continuou a ser feito e apenas uma pessoa, das que estavam a sua frente, havia sido chamada. Foi uma hora e quinze minutos de angústia e espera. Quase todos os passageiros já haviam embarcado, quando W. Ego foi chamado. Mas, ele acabou embarcando! 

Quando chegou ao aeroporto de Boston e as malas não chegaram e todos os passageiros se perguntavam onde estavam, ele nem se aborreceu, pois mesmo sem a bagagem, ele ainda tinha um dia e dois terços pela frente. (Momentos depois, um dos passageiros descobriu que a bagagem de todos estava num dos cantos do aeroporto e não havia indicação alguma sobre isso). 

*** 

Saiba você leitor, que, tirando uma ou duas passagens, o W. Ego me contou tudo de forma bem calma. Até riu algumas vezes. Ele estava se comportando como o fazem muitos consumidores, que se conformam com a violação sofrida se, afinal, deu tudo mais ou menos certo. Eles até ficam agradecidos e esquecem dos direitos violados e do sofrimento experimentado. Eu disse isso à ele, que apenas torceu o nariz e ficou quieto. Mas, insistiu comigo que eu tratasse do assunto, o que estou fazendo e agora prossigo. 

*** 

O sistema capitalista mundial (quero dizer, ocidental) até fins dos anos oitenta do século passado se orgulhava do primor com que tratava seus clientes. As companhias aéreas davam bons exemplos, assim como operadoras de cartões de crédito e bancos e várias outras grandes empresas dos setores massificados. Havia competição séria e luta severa por fatias do mercado consumidor. Por isso, parte do lucro – às vezes grande parte – era investido na busca da satisfação dos clientes não só para o atingimento da fidelização como para a conquista dos novos. Os consumidores eram bem tratados e até mesmo bajulados. 

Com o surgimento das junções de empresas, fusões, aquisições, etc. criou-se oligopólios e enormes grupos que atuam em conjunto dominando todo ou quase todo o mercado de sua área de atuação. Além disso, com a administração dessas gigantescas corporações cada vez mais "financeira" que produtiva, a preocupação com a qualidade se esvaiu. O capitalismo mudou: o consumidor se tornou apenas um número (ou um nome num painel, num banco de dados ou algo semelhante) que pode gerar uma certa receita monetária, mas cujos direitos, interesses e necessidades não têm mais importância. 

Os consumidores são tratados como marionetes, que hipnotizados, devem obedecer ao comando do marketing e da publicidade. É feito de tudo para que eles acreditem nas fantasias veiculadas. Anúncios publicitários mentem, gerentes de bancos mentem, recepcionistas de empresas de planos de saúde mentem, atendentes em aeroportos mentem, etc. (uma longa lista). É verdade que as mentiras, às vezes, fazem parte do sistema engendrado pelos chefes e patrões, mas nem por isso deixam de ser mentiras e muita conversa pra boi dormir. Todo o episódio que narrei envolvendo o meu amigo W. Ego comprova isso e, claro, os que me leem conhecem muitos outros parecidos. 

O overbooking e todos os benefícios excluídos do atual serviço prestado pelas companhias aéreas são uma clara demonstração desse novo modelo capitalista, que despreza o consumidor e que só pensa no ganho financeiro. Os atuais administradores não estão preocupados com seus clientes, especialmente nos setores de baixa competitividade e naqueles em que o consumidor não tem escolha (ou seja, em muitos setores). A qualidade cai, mas gera alguma economia financeira que na escala, representa maior faturamento e com isso surge o desprezo ao consumidor. 

Mas, ainda temos leis e estas precisam ser cumpridas. O overbooking, por exemplo, é quase um estelionato, pois é a venda do mesmo assento para mais de uma pessoa (tente fazer o mesmo, vendendo seu automóvel ou seu imóvel para duas pessoas diferentes ao mesmo tempo...). Ademais, as cias aéreas descobriram uma fórmula para continuar a burla: quando acontece o problema (basta ir aos aeroportos para verificar sua constância), elas saem distribuindo alguns trocados para receberem de volta o assento vendido. São verdadeiras migalhas (sem ofensa, claro, a este poderoso rotativo!) em troca de direitos. Eu não tenho dúvida em afirmar que o overkooking é uma prática ilegal e grosseira que precisa ser punida. 

P.S.: Eu já tinha escrito este artigo, quando vi a notícia de que o Ministério Público Federal em Guarulhos havia entrado com uma ação judicial para que as empresas aéreas sejam condenadas ao pagamento de multa pelo overbooking. Não conheço o teor da ação, mas pela matéria que li, penso que esse é mesmo o caminho. Aliás, aproveito a oportunidade para anexar acórdão de minha Câmara na qual uma companhia aérea foi condenada a pagar indenização por danos morais em função dessa prática. O julgamento ocorreu em junho deste ano (Apelação 0184323-88.2010.8.26.0100, 23ª. Câmara de Direito Privado do TJ/SP, j. 8-6-2011, m.v. Eu sou o relator).  

Confira o acórdão (clique aqui). 

15/8/2011


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