446 - Mandado de segurança: uma criação genuinamente brasileira?


EDMILSON DA COSTA LIMA – Juiz de Direito


Resumo:
É possível apontar duas origens da inédita ação de mandado de segurança brasileiro: uma próxima e outra remota. Os interditos romanos, em especial o interdictum de homine libero exhibendo, pode ser tido como origem mais remota. Para além deste, influenciaram o Constituinte de 1934, o mandamus inglês, os writ of mandamus e writ of injunction anglo-americanos, as seguranças reais portuguesas e o juicio de amparo mexicano. A (re) conhecida doutrina brasileira do habeas corpus, capitaneada por Ruy Barbosa, foi fundamental para a criação de um remédio processual, de índole constitucional, apto a garantir direito líquido e certo individual violado (ou ameaçado de) pelo Poder Público. 

Palavras-chave: Mandado. Segurança. Origem. Habeas. Corpus.

I. Introdução 

Pretende-se com o corrente trabalho retomar um debate sobre a origem do mandado de segurança no ordenamento jurídico alienígena e brasileiro, para destacar sua importância no processo civil brasileiro.

A tarefa nos foi honrada na primeira etapa do Curso de Mestrado, pela Professora e Historiadora do Direito Administrativo português, Dr.ª Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, que acompanhando posição do saudoso jurista, também português, Dr. Marcelo Caetano, reivindica para aquele ordenamento a gênese do nosso mandado de segurança.

A ação de mandado de segurança é instituto jurídico dos mais discutidos e elogiados pela doutrina não só brasileira, além de ser bastante aplicado no meio forense, por ser eficaz garantidor de direito demonstrável de plano pelo interessado.

Bem recentemente foi o instituto realinhado para coadunar-se às exigências da processualística moderna, com a edição da Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009 (Nova Lei do Mandado de Segurança), que a rigor não veio modificá-lo substancialmente, mas sim atualizá-lo frente ao entendimento jurisprudencial consolidado e posicionamento doutrinário convergente, de modo a melhor atender à agora expressa exigência constitucional de celeridade processual.

Passemos, então, de logo, à ligeira abordagem de uma retrospecção histórica da ação. 

II. Mandado de segurança: uma criação genuinamente brasileira? 

O mandado de segurança não nasceu no ordenamento jurídico brasileiro como Minerva da cabeça de Júpiter. Decorre, em especial, da imperiosa necessidade de se encontrar uma garantia constitucional, apta a combater agressão (ou ameaça de agressão) a direito individual fundamental violado pelo Estado-administrador, ou seja, um remédio processual não prontamente atendível pelo consagrado habeas corpus.

Um estudo acurado da doutrina sobre essa inovadora e elogiada ação, consagrada na segunda Constituição republicana, de 1934, revela-nos que diferentes foram as influências para sua criação no Brasil.

Importa agora realizarmos um ligeiro retrospecto histórico de soluções obtidas em algumas ordens jurídicas no mundo ocidental e Américas que teriam refletido no Legislador Constituinte de 1934, pois certamente a criação de um instituto jurídico não advém de esforços, ainda que exaustíveis, de um único homem.

Pois bem, a doutrina atribui, como antepassados próximos do nosso mandado de segurança, isolada ou conjuntamente – e que, segundo nós, podem ser elencados nessa ordem cronológica: a) os interditos romanos (concebidos posteriormente mais como interditos possessórios); b) o mandamus inglês e os writ of mandamus e writ of injunction anglo-americanos; c) as seguranças reais portuguesas; e d) o juicio de amparo mexicano.

Os juristas dividem-se nomeadamente entre esses institutos, no decidir quais (ou qual) deles teriam efetivamente germinado o mandado de segurança.

Para mais precisamente discernirmos sobre que institutos alienígenas contribuíram historicamente, em maior parcela, para o surgimento do remédio constitucional canarinho, será abordada, ainda que perfunctoriamente, cada um dos instrumentos acima mencionados.

Os interditos remontam ao período clássico romano (27a.c. - 284d.c). Eram de espécies inúmeras e não se limitavam à tutela de posse, mas a todo tipo de proteção material. Num período histórico posterior só foram recordados, pelo direito justinianeu, os interditos possessórios.

Destaca-se, para nosso estudo, o antigo interdictum de homine libero exhibendo, voltado a tutelar a liberdade pessoal, entre outros interditos de mesma feição. Por esse instrumento poderia o cidadão romano reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente.

Aliás, o interdito homine libero exhibendo é apontado como precursor do habeas corpus, espécie de writ inglês, uma vez que para uma segunda corrente a Magna Carta de 1215 e, para uma terceira, a Petition of Rights lançada no Reinado de Carlos II (1628), é que teria desencadeado tão importante remédio processual.

Os writs tiveram primeiro assentamento na Inglaterra, no direito anglo-saxônico, portanto. Deles são espécies, além de outros, o habeas corpus, o mandamus e o injunction.

No direito norte-americano, como apregoado por balizada doutrina, limita-se o writ of mandamus a compelir o funcionário a praticar ato de seu ofício, excluídos o Presidente da República e os Secretários de Estado, ao passo que o writ of injunction é utilizado para proibir ou ordenar ato, cuja prática ou omissão possa acarretar dano irreparável ao direito do autor.

O especial remédio do habeas corpus remonta ao ano de 1215, na Inglaterra. A Magna Charta Libertatum, de João Sem Terra, veio tentar pôr freios à prisão por mera ordem do Rei sem que tenha havido anterior condenação, a qual deveria fundamentar-se na lei. Posteriormente, temos a Petition of Rights, de 1628, a exigir observância das regras estabelecidas naquela Magna Carta.

Concernentemente às seguranças reais, parte, pelo menos, da doutrina portuguesa reivindica-as para o Direito Português como origem mais próxima do elogiado instrumento processual do mandado de segurança, pois o seu ancestral no direito brasileiro, o habeas corpus, mais se assemelharia à carta de seguro lusitana – destinada originariamente a combater a “vindicta” privada e depois expandida para eximir os réus da prisão. Tratava-se das seguranças reais (cartas de seguro para o ameaçado e cartas de segurança para o ameaçador), previstas de forma mais rudimentar nas Ordenações Afonsinas de 1443 (Livro III, Título XLIV) e cuja origem mais remota teria sido o séc. XII, isto é, com o surgimento do próprio Reino de Portugal. Sobre o assunto voltaremos a abordar adiante.

O juicio de amparo mexicano é um instrumento híbrido, inspirado no habeas corpus e na judicial review (revisão judicial da constitucionalidade das leis) norte-americana, bem assim na legislação hispânica de tradição continental européia (direito castelhano aplicável nas colônias espanholas da América e nos processos forais aragoneses).

Sob influência americana, por obra do francês Alexis de Tocqueville, no livro La democracia em la América del Norte, traduzida para o castelhano em 1836, foi o recurso de amparo previsto inicialmente na Constituição do Estado de Yucatán (maio de 1841), na Acta de Reformas (em 1847, dirigidas à Constituição Federal de 1824) e na Constituição Federal de 5 de fevereiro de 1857, quando se consagrou de maneira definitiva, tendo sido repetido na Constituição de 1917, ainda hoje vigente. É projetado especificamente para os direitos individuais estabelecidos na Constituição e volta-se contra as ações de todas as autoridades, independentemente da categoria, ao violarem tais direitos.

Vencida essa brevíssima referência histórica quanto aos institutos afins do mandado de segurança, cabe nesse passo outra retrospectiva, com olhos mais para as garantias individuais do homem, a considerar o Estado de Polícia.

O Antigo Regime ficou registrado na história mais pelo absolutismo real que predominou na Europa Ocidental, onde, apesar de se reconhecer em alguns países, como a Inglaterra, direitos fundamentais da liberdade e da propriedade, o Estado não previu instrumentos adequados a garanti-los efetivamente – e nem era desejoso disso. É dizer, era reconhecido o direito, mas não havia instrumentos aptos a assegurá-los quer perante ação de um particular contra outro particular, quer, mormente, para fazer face à violação estatal dos direitos dos súbitos.

Fundamentais, portanto, seriam os movimentos revolucionários que ocorreriam no final do séc. XVIII – cujas referências maiores são as revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) – para romper com o poder absoluto, concentrado nas mãos do Rei, cuja maior expressão foi Luís XIV, que no auge do poder verberou: L'État C'est Moi!.

A partir daí proliferaram nos Estados Modernos, mediante a adoção da teoria da separação dos poderes proposta pelo Barão de Montesquieu, o Estado de Direito, ou seja, a desconcentração do poder único estatal em três funções (executiva, legislativa e judiciária), com reforço de garantias para os particulares contra investidas ilegais e abusivas pelo Estado-Administração.

Nesse sentido, indubitável é a melhor conformação do já consagrado e antigo habeas corpus, originário da Inglaterra, mas que encontra aplicação em várias ordens jurídicas do mundo ocidental e do Novo Mundo (Américas), muito embora não seja coincidente seu âmbito em cada um dos países onde é adotado. Para citar um só exemplo, os Estados Unidos, país historicamente defensor de uma ampla liberdade do seu povo, face ao pragmatismo que caracteriza sua ordem jurídica, é que servirá de paradigma para outras ordens jurídicas, inclusive aquelas da própria Europa Ocidental, em que nasceu.

A doutrina, nesse ponto, aliás, relata muito bem que se na Europa pretendia-se romper com um regime absolutista que tolhia o exercício de direitos fundamentais, no Novo Mundo, cujo modelo mais emblemático é a nação norte-americana, o contexto histórico é outro, porque a realidade aqui é uma crescente de aquisições de direitos (com exaltação da liberdade e da propriedade, p.ex.), mediante inúmeros movimentos de independência das colônias, a considerar a segunda metade do séc. XVIII, até a primeira metade do século XIX.

O Brasil, aliás, acompanha essa evolução de conquistas sócio-políticas e jurídicas, pois se liberta da Monarquia Portuguesa no ano de 1822, simbolizado no consagrado 7 de Setembro.

As Constituições dos Estados liberais passam a consagrar não mais apenas direitos fundamentais dos indivíduos. Paralelamente, no mesmo texto constitucional, são estipuladas garantias aos particulares quanto ao exercício de tais direitos, densificadas pela legislação infraconstitucional.

O habeas corpus, entre outros instrumentos jurídicos importantes (como os interditos possessórios), é o que melhor define este novo estado de espírito pós-revolucionário no Brasil, sendo que em 1830 é previsto e melhor delineado no Código Criminal; dois anos depois, no Código de Processo Criminal (1832) é novamente retratado, ganhando status constitucional em 1891, com a nossa primeira Constituição da República, segunda da história brasileira (a primeira era de 1824).

Para nós, sem prejuízo do fato de o mandado de segurança ser obra, mais precisamente, da conjunção de diversos fatores, inclusive de conquistas histórico-jurídicas e sociais dos direitos fundamentais individuais por todo o mundo, nasce mais proximamente do heróico remédio do habeas corpus.

Em verdade, cremos ser possível distinguir duas origens: uma mediata (remota) e outra imediata (próxima). A origem imediata, não temos dúvidas, é o habeas corpus. A origem remota, conquanto nisso já não se pode ser extreme de incertezas, apontamos para o interdito romano, no período clássico alhures.

É que, conquanto ainda não tenhamos, na Roma Antiga, uma organização social sofisticada, como nos moldes atuais, o que só irá começar a formar, em especial, com o surgimento, mais definido, das idéias de Estado (status), por obra especialmente do italiano Niccolò Machiavelli (1469-1527), e de soberania, cuja maior expressão foi o francês Jean Bodin (1530-1596), não se pode abandonar a cronologia dos fatos.

Se no Direito Romano, ainda que numa concepção mais privatística, havia instrumentos destinados a proteger a liberdade do cidadão contra o arbítrio de outro (interdictum de homine libero exhibendo), exercendo o pretor, em dado momento, o poder de imperium para solução do conflito, é já nessa época que se tem mostras de uma rudimentar tutela de direitos fundamentais.

No decurso da Baixa Idade Média (séc. XI ao XV), a Magna Charta Libertatum de 1215, na Inglaterra, constituiu importante documento jurídico em favor da liberdade física, ou seja, como aludido, voltou-se contra o arbítrio e o abuso de poder, em favor de uma parcela da camada social, conquanto não se tenha precisado instrumento jurídico adequado para satisfação do reconhecido direito fundamental, o que só foi reforçado em 1679, com o  Habeas Corpus Act.

Por outro lado, não parece prosperar a reivindicação portuguesa das seguranças reais como origem remota do nosso mandado.

Em que pese aos alentados argumentos do renomado jurista Marcelo Caetano, sobre o mandado de segurança ter se originado das Ordenações, mais especificamente das Ordenações Filipinas (Livro V, Tít. CXXVIII, Das Seguranças Reais; e Livro III, Tít. LXVIII, § 5º), a nós não parece que os fatos assim tenham exatamente sucedido.

Realmente, se pela leitura dos textos das Ordenações referidos pelo autor lusitano obtém-se expressões como mandado e segurança, o só fato disso ocorrer não é suficiente para assimilarmos como sendo a figura indicativa do mandado de segurança, batizado pelo Constituinte brasileiro de 1934.

Ora, as seguranças reais do direito português, que deveriam surtir seus efeitos no Brasil-Colônia, se bem dito, não passaram do exercício régio de autoridade sobre os súditos em situações de conflito, ou seja, do conhecido habeas corpus adaptado à realidade sócio-jurídica portuguesa (e de suas colônias), pois era o Estado intervindo para assegurar o exercício da liberdade pelo que se lhe apresentava ameaçado, com ordem dirigida ao ameaçador para que não concretizasse seu intento (carta de seguro); e uma ordem aos oficiais a serviço da Corte, para que não restringissem a liberdade do ameaçador até que os fatos fossem devidamente esclarecidos, quando solicitado o pedido por este (carta de segurança, ou salvo conduto, numa concepção mais moderna).

Ainda aqui, o que se discute é tão-somente o direito de ir, vir e ficar. Nada mais que isso. Oficializa-se a existência de um fato, dando-lhe conhecimento à autoridade régia, que adota as medidas que prudentemente julgar convenientes à sua solução.

Portanto, parece-nos mais um jogo de palavras concluir, como fez a doutrina portuguesa, que as expressões equivaleriam, em termos de conteúdo, ao posterior mandado de segurança. Definitivamente, não há que assim se entender, sob risco de admitirmos que o habeas corpus “à portuguesa” (olvidada a gênese anglo-saxônica deste instituto) é que teria, diretamente, motivado o Legislador Constituinte de 1934 a denominar um instrumento jurídico a servir de garantia de direitos fundamentais agredidos (ou ameaçados de agressão) pelo Poder Público, não amparáveis pelo habeas corpus.

Há muitos outros argumentos a afastar a pretensão lusitana. Limitar-nos-emos a mais alguns. A doutrina (ou teoria) brasileira do habeas corpus, orquestrada, pioneiramente, por Ruy Barbosa, como será estudado mais demoradamente a seguir, realizou um profundo debate sobre tal writ, tendo por norte o texto constitucional de 1891, alargador da definição do instituto ao incluir as expressões ilegalidade e abuso de poder.

Conquanto tenham as Ordenações Filipinas vigorado de 1603 até 1917, quando entrou em vigor o Código Beviláqua (Direito Civil), é discutível se no ordenamento jurídico brasileiro, nomeadamente no cotidiano envolvendo atos da Administração (Corôa Portuguesa antes da independência brasileira, e autoridade imperial após isso), as Ordenações eram rigorosamente observadas nas inúmeras províncias do continental Brasil. Ou seja, eram tidas como legítimo corpo de leis a reger a vida do Brasil-Colônia e, especialmente, do Brasil-Império.

Aliás, nesse ponto, oportuno é mencionar passagem do Professor e Constituinte de 1946, Ataliba NOGUEIRA, em trabalho extremamente crítico, quando assinalou que "efectivamente, mesmo quando conhecidas, as Ordenações do reino, não tendo como destinatários os habitantes do Brasil, não poderiam reger-lhes as relações sociais, máxime no que respeitava ao direito público".

No que concerne ao juicio de amparo mexicano, certamente que serviu de paradigma para o Constituinte de 1934. Entretanto, mais certo que isso, foi tal remédio processual um elemento de influência de menor intensidade até mesmo que os interditos possessórios, comparativamente. É que aquele remédio – o juicio de amparo – é muito mais abrangente, pois como assinala a doutrina, controla a constitucionalidade de lei no caso concreto e tutela os direitos individuais ameaçados ou violados pelo Poder Público. Pelo fato de servir também como mecanismo de fiscalização da constitucionalidade das leis e até da legalidade (o que foi acrescentado na Constituição de 1917), mais se aproximaria do controle difuso de constitucionalidade dos atos normativos existente no Brasil.

Após tudo isso, há mesmo de prevalecer a (crono)lógica idéia de que os antecedentes do mandado de segurança foram os antigos interditos romanos, na concepção não reducionista de que eram meros mecanismos de proteção possessória.

Retornemos, então, à análise da origem imediata do mandado de segurança.

Para o estudo da origem de um instituto jurídico introduzido pelo Legislador, assaz relevante é expor o perfil do próprio criador da norma, ainda que, reitere-se, não ser a lei obra de um homem apenas, mas imposição de uma realidade social a que o representante do povo no Legislativo não pode alhear-se.

No caso do mandado de segurança, o assim pai do nomen juris, João Mangabeira, era discípulo de Ruy Barbosa (de Oliveira), e por isso aclamava suas idéias. Mesmo após a morte deste incomparável Advogado, Mangabeira continuou a propalá-las. Se é verdade que assim seja, então devemos mais aos esforços do incansável Ruy Barbosa, e às suas teses, a criação constitucional e a densificação legal da garantia de direitos fundamentais não atinentes à liberdade pessoal, que ao próprio político Mangabeira.

Ruy Barbosa defendia não só a ampliação conceitual do habeas corpus, como outrossim a aplicação dos interditos (possessórios) para o mesmo fim, isto é, tutela dos direitos essenciais do indivíduo violados pela Administração Pública. Portanto, não procede atribuir às seguranças reais, ainda que remotamente, a origem do mandado de segurança.

O que ocorreu particularmente no ordenamento jurídico brasileiro foi uma crescente evolução do habeas corpus, que era mais dignamente voltado à proteção da liberdade física (corporal). Ou seja, ao longo do período imperial e, mais verdadeiramente, com a Constituição Republicana de 1891, surgiram árduos defensores das garantias dos particulares, da subjetivação dos direitos fundamentais dos indivíduos face às ilegalidades ou abusividades cometidas pela Administração Pública, de modo a pretender-se abarcar no elenco da liberdade física não só o ir, o vir ou o ficar, mas outros direitos indireta ou reflexamente dela emergentes.

Nota-se na realidade sócio-jurídica brasileira pós 1891 um verdadeiro movimento jurídico, que ficou (re)conhecido no mundo como doutrina brasileira do Habeas Corpus, como já dito acima, cujas maiores expressões simbólicas foram Ruy Barbosa e Pedro Lessa, a propugnarem pelo maior alcance desse remédio constitucional para abranger situações que não retratariam exatamente a liberdade física, o que, conforme interpretação da Constituição vigente, seria autorizado pelo acréscimo das expressões ilegalidade e abuso de poder na disciplina do habeas corpus.

Em verdade, tratava-se da aplicação do brocardo jurídico ubi jus, ubi remedium não só pela doutrina, como pela jurisprudência.

A amplitude que se deu ao habeas corpus, sem prejuízo da concomitante luta travada no Poder Judiciário sobre a possibilidade de alcance dos interditos possessórios não só para a proteção de direitos reais, como também dos direitos pessoais – aqui novamente com destaque para a atuação do advogado Ruy Barbosa – nada mais era que a imperiosa necessidade de se proteger direitos fundamentais dos particulares, face à ausência de legislação própria para isso, pois um borrão feito apressadamente pelo parlamentar Rodrigo Otávio, a mando do então Presidente da República, Marechal Floriano Peixoto, notabilizado como o “Marechal de Ferro”, e que resultou, quanto à jurisdição no âmbito federal, na Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894 (“ação sumária especial”), não encontrou agasalho na realidade prática.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF titubeou em interpretar pela validade desse amplo alcance da garantia constitucional, quer quanto ao habeas corpus, quer sobre os interditos possessórios.

Ruy Barbosa, sem sombra de dúvidas, como aludido, foi mesmo o desbravador da ampliação do habeas corpus. Aliás, primeiramente, no final do séc. XIX, atuou como advogado em polêmico caso a envolver a prisão de alguns políticos, tendo ardorosamente defendido suas liberdades, face ao ato tido como abusivo praticado pelo Poder Público. Nessa primeira investida saiu derrotado, mas o voto vencido do Ministro do STF, o paulista Pisa e Almeida, seria, poucos anos depois a tese vencedora para um caso idêntico.

É partir daí que Ruy Barbosa, como advogado, passa a defender o uso da ação do habeas corpus para alcançar outros direitos e não só o da liberdade de locomoção.

Essa doutrina brasileira do habeas corpus – que encontrou acolhida aqui e ali na jurisprudência, a qual igualmente é merecedora de considerável importância – desempenhou fundamental papel para a história do surgimento do mandado de segurança, na medida em que contribuiu para a fecundação, ainda que imprópria, do seu conteúdo, a fazer germinar um esboço do que seria o nosso mandado, o que é confirmado, aliás, com tímidas provocações para que galgasse status constitucional no tocante aos juristas da época, e que apesar de ainda não receber uma definição exata como ocorreria no futuro, possuiu, na essência, um conteúdo similar. Estamos a retratar o muito mencionado no Projeto de Revisão Constitucional do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Alberto Torres (1914), ao denominar o que seria o novo instrumento: o “mandado de garantia”.

Toda a discussão em torno do habeas corpus, claramente, não ocorreu à deriva de outros importantes remédios, inclusive de índoles constitucionais, que existiam pelo mundo ocidental e nas Américas, com particular renome para o exaltado e citado juicio de amparo mexicano, apontado como originário do direito aragonês (Espanha) e difundido pela América Espanhola. Nesse aspecto, a menção desse instrumento pelo Deputado Muniz Barreto em parecer, no Congresso Jurídico de dia 25 de outubro de 1922, apesar de não ressoar imediatamente no Poder Legislativo, que preparava os trabalhos de elaboração de um instrumento adequado à realidade brasileira, certamente deverá ser considerado como mais uma experiência positiva para a criação do mandado de segurança.

Não parece haver dúvidas que a reforma constitucional em 1926, vindo a realocar o habeas corpus no seu devido lugar de instrumento de proteção apenas da liberdade de locomoção, como sempre o fora ontologicamente, irá apressar os esforços das mentes da época para concentrar os trabalhos legislativos na busca de um remédio eficiente à tutela dos direitos fundamentais não amparáveis pelo habeas corpus.

Tanto isso é verdade que já no mesmo ano de 1926 é apresentado, em 11 de agosto, o Projeto de Lei nº 148, pelo Deputado Gudesteu Pires, que ganhou foros de amplas e calorosas discussões no Congresso Nacional, foi objeto de inúmeras emendas e substitutivo, tendo finalmente feito germinar o nosso mandado de segurança, nome que foi batizado por João Mangabeira, já mencionado, encarregado, nessa parte, de relatar o anteprojeto constitucional que resultará na Constituição de 1934.

Em 1936 a Lei nº 191, de 16 de janeiro, viria, primeiramente, regulamentar o mandado de segurança constitucional, estabelecendo um rito próprio, distinto do referido na Constituição de 1934, a qual tinha a redação seguinte:

Art. 113, § 33. Dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado de segurança não prejudica as ações petitórias competentes.

À exceção da Constituição de 1937, quando se inicia um regime ditatorial no país, em todas as demais foi prevista a garantia do mandado de segurança.

A lei que definitivamente vai disciplinar a ação de mandado de segurança é a de nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, que vigorou por mais de meio século, até ser revogada muito recentemente, pela Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009.

A Constituição Federal de 1988 consagra o mandado de segurança individual e inova ao criar a figura do mandado de segurança coletivo, o qual se diferencia daquele apenas pela legitimidade ativa, sendo que a novel lei passou a tratar das duas modalidades.

III. Síntese conclusiva 

O legislador constituinte brasileiro de 1934 foi influenciado imediata e mediatamente pelo habeas corpus e pelos interditos romanos, respectivamente.

João Mangabeira, idealizador do nome da ação mandamental, foi profundamente influenciado por Ruy Barbosa, que como Advogado inaugurou as discussões sobre o tema, com a (re)conhecida “doutrina brasileira do habeas corpus”, sendo que outros importantes personagens contribuíram para o êxito legislativo, nomeadamente Pedro Lessa, Alberto Torres ("mandado de garantia") e Edmundo Muniz Barreto (alusão pública, como parlamentar, ao juicio de amparo mexicano).

A Constituição Republicana de 1891 ampliou o âmbito de aplicação do habeas corpus ao incluir no seu texto as expressões ilegalidade e abuso de poder.

O primeiro embrião legislativo infraconstitucional do mandado de segurança foi a lei da ação sumária especial (Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894). 

O habeas corpus apresenta seus primeiros traços nos interditos homine libero exhibendo (Roma Antiga), conquanto a doutrina não seja pacífica nesse assunto.

Os institutos afins ao mandado de segurança, além dos já citados, são: os writs ingleses (americanizados), os interditos possessórios, as seguranças reais portuguesas e o juicio de amparo mexicano.

O juicio de amparo mexicano, outra garantia constitucional elogiável e paradigma para as ordens jurídicas carentes de um remédio processual célere e eficaz, é de aplicação mais abrangente que o nosso mandado de segurança, pois destina-se a proteger o particular contra atos inconstitucionais ou ilegais do Executivo e do Legislativo, entre outros.

As seguranças reais portuguesas assemelham-se ao habeas corpus de origem romana e inglesa e não influenciaram, proximamente, o Constituinte de 1934, mediante as Ordenações Filipinas.

O mandado de segurança surge da necessidade não mais adiável de garantir-se direitos fundamentais individuais violados (ou ameaçados de violação) pelo Poder Público, não amparáveis pelo habeas corpus, vocacionado apenas a proteger o direito de locomoção (liberdade corporal de ir, vir e ficar).

A reforma constitucional de 1926 pôs fim, ao menos em termos constitucionais, à controvérsia sobre o âmbito estendido de aplicação do habeas corpus para agasalhar direitos pessoais.

Gudesteu Pires, com o Projeto de Lei de 1926, foi quem provocou os primeiros debates legislativos, que se prolongaram ardorosamente, até a formação desejável do mandado de segurança.

A Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936 foi a primeira a regulamentar o mandado de segurança constitucional, sendo que até recentemente era a ação regulada pela Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, até ser reformulada pela Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009.

À exceção da Constituição Polaca (de 1937), todas as sucessivas Constituições brasileiras mantiveram, expressamente, o mandado de segurança, inclusive a última, de 1988, que criou a figura do mandado de segurança coletivo, o qual se diferencia do individual apenas pela legitimidade ativa.

Enfim, o mandado de segurança é exclusividade do ordenamento jurídico brasileiro. 


Edmilson da Costa Lima
é Juiz de Direito do Poder Judiciário do Estado do Maranhão desde 2006; graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, em 1999; pós-graduado lato sensu em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura, em 2005; mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal, em 2011; e professor temporário da Universidade Estadual do Piauí – UESPI, no ano de 2007, nas disciplinas: Prática de Processo Penal e Direito Processual Civil.  


IV. Bibliografia consultada e/ou referida
 

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28.    TORRES, Alberto de Seixas Martins. A Organização Nacional. Disponível no sítio http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/torresc.html. Acesso em 28.04.09.

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