452 - O STF e o princípio constitucional da solidariedade: o caso das células-tronco embrionárias (ADI 3.510/DF)
TARLEI LEMOS PEREIRA - Advogado
“(...) o vislumbre da maternidade como realização de um projeto de vida é o ponto mais estratégico de toda a trajetória humana. É ele que verdadeiramente assegura a consciente busca da perpetuação da espécie. Por isso que nesse preciso lapso temporal a gestante ama a sua criatura com as forças todas do seu extático ser. Ama na totalidade do seu coração e da sua mente, dos seus órgãos e vísceras, instintos e sensações. Monumentaliza por tal forma esse amor que se torna a encarnação dele. O amor a tomar o lugar dela, gestante, arrebatando-a de si mesma no curso de um processo em que já não há senão o amor a comandar objetivamente as coisas e a fluir por conta própria. Sem divisão. Sem ninguém no comando. Livre de qualquer vontade em sentido psicológico, assim como acontece com a circulação do sangue em nossas veias e a corrente dos rios em direção da sua sempre receptiva embocadura (o rio se entrega ao mar por inteiro e a cada instante, e ainda agradecido por viver assim de se entregar).
São dois fenômenos concomitantes ou compresentes, mas de caráter distinto. Um é a gestação em si, como elemento ou objetivo dado da natureza. Investimento que a natureza faz em um novo exemplar do mais refinado espécime do mundo animal, que é o ser humano. Outro é a maternidade consentida, como subjetivo dado do mais profundo benquerer. Investimento que uma criatura humana faz em outra, planejada ou assumidamente, e que o Direito sobrevalora como expressão da paternidade responsável (§ 7º do art. 226 da Constituição, relembre-se). Ali, um criativo investimento de ordem física. Aqui, um criativo investimento de ordem ao mesmo tempo física, psicológica e afetiva. Anímica, verdadeiramente.
Passa por este ponto de inflexão hermenêutica, certamente, uma das razões pelas quais o sempre lúcido ministro Celso de Mello assentou que a presente ADIN é a causa mais importante da história deste Supremo Tribunal Federal (ao que se sabe, é a primeira vez que um Tribunal Constitucional enfrenta a questão do uso científico-terapêutico de células-tronco embrionárias). Causa cujo desfecho é de interesse de toda a humanidade. Causa ou processo que torna, mais que todos os outros, esta nossa Corte Constitucional uma casa de fazer destino.” (Trecho do voto do Ministro Relator CARLOS AYRES BRITTO na ADI nº 3.510/DF do STF – acórdão datado de 29.05.2008, pp. 39-41 – os grifos constam no original)
Resumo: No presente artigo, o autor faz uma análise da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que julgou improcedente, por maioria de votos, a ADI nº 3.510/DF, ajuizada pelo então Procurador-Geral da República, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do artigo 5º e respectivos parágrafos, da Lei nº 11.105/2005, mais conhecida como “Lei de Biossegurança”.
A abordagem foi feita tomando-se por parâmetro, notadamente, os termos da petição inicial, da petição de ingresso da MOVITAE na qualidade de amicus curiae, bem como do voto do Exmo. Sr. Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, do STF.
Palavras-chave: ação direta de inconstitucionalidade; células-tronco embrionárias; princípio da solidariedade; supremo tribunal federal.
Abstract: In this article, the author presents an analysis of a recent decision rendered by the Federal Supreme Court (“STF”), which, by majority vote, dismissed Suit for Declaration of Unconstitutionality (“ADI”) No. 3,510/DF, brought by then Attorney-General of the Republic, seeking to declare the unconstitutionality of Article 5 and respective paragraphs of Law 11,105/2005, otherwise known as the “Biosafety Act”.
To address the mentioned analysis, the following parameters were adopted: the terms of the complaint, the terms of the petition brought by MOVITAE in the capacity of amicus curiae, as well as the vote cast by the Reporting Justice on the case, Mr. Carlos Ayres Britto, of the STF.
Keywords: suit for declaration of unconstitutionality; embryonic stem cells; solidarity principle; federal supreme court.
Dizem que o mineiro só é solidário no câncer[1]. Não é bem assim. Recentemente, o STF provou algo diverso: provou que os brasileiros também se solidarizam em casos de outras doenças graves, tais como as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose lateral amiotrófica, a esclerose múltipla, as neuropatias e as doenças de neurônio motor, a diabetes, o mal de Parkinson, além de síndromes diversas (como as mucopolisacaridoses ou outros erros inatos do metabolismo etc.).
A Excelsa Corte, composta à época do julgamento da ADI 3.510/DF por dois ministros mineiros (Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia), dois paulistas (Cezar Peluso e Celso de Mello), três cariocas (Marco Aurélio, Ellen Gracie e Ricardo Lewandowski), um sergipano (Ayres Britto), um matogrossense (Gilmar Mendes), um paraense (Menezes Direito[2]) e um gaúcho (Eros Grau), provou também que, além de guardiã da Constituição, preocupa-se sobremaneira com as questões atuais que afligem a sociedade, haja vista que as doenças graves acima mencionadas causam intenso sofrimento a seus portadores.
É bem verdade que, via de regra, o que os olhos não vêem o coração não sente, mas no caso em apreço o Exmo. Sr. Ministro Relator Ayres Britto teve a sensibilidade e a cautela de determinar a realização de audiência pública – a primeira realizada em toda a história do Supremo – a fim de ouvir profissionais especialistas em ginecologia, bioética, biofísica, sexualidade humana, logoterapia e genética, bem como representantes das diversas religiões cuja fé se professa no país. Além disso, inúmeros “cadeirantes”[3] se posicionaram favoravelmente à permissão de continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, o que certamente deu maior visibilidade ao problema, nunca antes discutido com tamanha profundidade.
Líderes religiosos se posicionaram: uns a favor, outros contra, mas a questão envolvendo as células-tronco embrionárias, dado o caráter eminentemente científico, não poderia – nem deveria – se cingir a dogmas acerca das permissões ou proibições divinas. Pesquisa científica não é pecado e nem poderia ser. Acertou o Supremo ao deixar de analisar a quaestio juris por esse viés, de todo inapropriado, convenha-se.
A CNBB[4], mais uma vez, perdeu a sagrada oportunidade de reverter a situação a seu favor. Preferiu se posicionar contra. Contra o quê? Contra tudo[5]. Talvez contra todos (todos aqueles que padecem de males gravíssimos, alguns deles já desperançosos de encontrar a cura em espaço razoável de tempo). Mas a vida é assim mesmo. Paciência! Parafraseando o eminente Ministro Marco Aurélio, “é o preço que se paga por vivermos em uma democracia”.
Contudo, o mais estranho é que a mesma igreja católica que jamais – repita-se: jamais! – se pronunciou acerca da abolição da escravatura no Brasil, vem, agora, dizer-se contrária às pesquisas com células-tronco embrionárias, ao argumento de que “não se pode eliminar uma vida para salvar outra” (ou seja, não se poderia eliminar um embrião inviável para salvar alguém que, tristemente, padece de doença grave e, até o atual estado da técnica da medicina, incurável).
A face nada solidária do catolicismo se revelou de forma ainda mais patente quando afirmado em nota pública, divulgada pela imprensa, que a CNBB pretendia participar ativamente do debate envolvendo as células-tronco, porém de forma dissociada da questão religiosa. Ora, o que levaria um organismo sabidamente religioso a se empenhar com tanta veemência em uma questão dita não religiosa? Por outras palavras: ou a questão é positivamente religiosa, justificando-se a participação de representantes de todas as religiões do país (não apenas dos membros da igreja católica) ou a intromissão não se justifica de forma alguma.
No caso da ADI 3.510/DF prevaleceu o bom senso, pois os eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal houveram por bem ouvir, ad cautelam, diversos representantes das mais variadas religiões e credos do Brasil, antes de proferirem o julgamento de mérito, tudo no intuito de melhor se informarem sobre as vantagens – ou eventuais desvantagens – da realização de pesquisas com células-tronco embrionárias ou adultas. Porém, do ponto de vista religioso, não se chegou a nenhum consenso, pois não é possível determinar e provar, empiricamente, que um embrião tenha ou não alma[6].
Logo, é razoável concluir que simplesmente não existe resposta para a pergunta:
“Quando tem início a vida humana?”
Não obstante, a CNBB se apressou em contratar famoso advogado de São Paulo (membro da Opus Dei e militar), para tentar provar perante o STF, por A + B, que a eliminação de embriões – ou melhor, sua utilização em pesquisas com células-tronco embrionárias – ceifaria, em última análise, vidas humanas.
A tese, porém, foi totalmente rechaçada pelos ínclitos ministros julgadores que, a despeito de terem proclamado resultado por maioria de votos (6 a 5), negaram-se, categoricamente, a declarar inconstitucional o artigo 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005[7], mais conhecida como “Lei de Biossegurança”.
Com efeito, é preciso deixar claro que nenhum dos onze ministros do STF declarou inconstitucional o dispositivo de lei objeto da ADI 3.510/DF, embora a minoria deles tenha, mercê do que se denomina “interpretação conforme a Constituição”[8], feito algumas ressalvas quanto à possibilidade de se continuar e aperfeiçoar as pesquisas com células-tronco embrionárias (a título de ilustração, os Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes disseram que a lei é constitucional, mas pretendiam que o STF declarasse a necessidade de que as pesquisas fossem rigorosamente fiscalizadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), ao passo que os Ministros Menezes Direito, Ricardo Lewandowski e Eros Grau afirmaram que as pesquisas poderiam ser realizadas, mas somente se os embriões ainda viáveis não fossem destruídos para a retirada das células-tronco).
Por excesso de zelo ou talvez por pressão da sociedade, em julgamento que levou o Ministro Celso de Mello a dizer que “este é o caso mais importante da história do Supremo Tribunal Federal”, fato é que as exigências consignadas pelos cultos ministros acima referidos já constavam, com outra roupagem, no corpo da própria Lei de Biossegurança[9] que, dentre outras passagens, proíbe a clonagem humana (inclusive criminalizando-a expressamente no artigo 26 e cominando-lhe pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa)[10], além de prever, no artigo 10, parágrafo único, que “A CTNBio[11] deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana...”. Ademais, resta claro na Lei nº 11.105/2005 – não declarada inconstitucional – que “É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: sejam embriões inviáveis” (artigo 5º, I), ou “sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento” (artigo 5º, II).
De todo modo, enfatiza a Lei nº 11.105/2005, no § 1º do artigo 5º, que será “necessário o consentimento dos genitores”, para que a utilização de células-tronco embrionárias seja levada a cabo em pesquisas e terapias, bem assim as “instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa” (artigo 5º, § 2º).
Feitas essas considerações preliminares, passaremos, a seguir, ao relato propriamente dito do caso envolvendo as pesquisas com células-tronco embrionárias e seu julgamento pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 29.05.2008, para, adiante, o analisarmos à luz do princípio da solidariedade, insculpido no artigo 3º, inciso I, da Carta Magna.
Porém, não sem antes tecermos loas ao magnífico trabalho desenvolvido pelo culto professor Luís Roberto Barroso que, novamente, demonstrou que merece uma vaga no Supremo, justamente em virtude de sua suprema sensibilidade no trato das questões sociais e humanitárias. Aliás, quando o Ministro Celso de Mello, como referido linhas atrás, afirmou que a causa das células-tronco embrionárias era a mais importante da história do STF, certamente o fez ao considerar que o assunto envolve interesses de toda a humanidade, o que é curial.
O histórico judicial do caso teve início com a protocolização, em 30.05.2005[12], da petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), no Supremo Tribunal Federal, subscrita pelo eminente então Procurador-Geral da República, Dr. Claudio Fonteles.
O preceito normativo à época impugnado, conforme consta na proemial, era o artigo 5º e respectivos parágrafos da Lei nº 11.105/2005[13], cujos dizeres são os seguintes:
“Art. 5º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º - Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º - Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º - É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.”
O artigo 3º da referida lei, a seu turno, define “células-tronco embrionárias”, no inciso XI, como sendo “células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo”, sendo “organismo” definido, no inciso I, como “toda entidade biológica capaz de reproduzir ou transferir material genético, inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas”.
Quanto aos dispositivos constitucionais malferidos pelo preceito retro transcrito (artigo 5º e respectivos parágrafos da Lei nº 11.105/2005), fez menção o eminente Procurador-Geral da República aos artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, ambos da Constituição Federal, verbis:
“Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.”
“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (o grifo consta no original)
Dessa forma, cravadas as premissas legais, tem-se que a tese central da exordial afirma que a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação[14].
Colacionou-se abalizada doutrina, nacional e estrangeira, a fim de se demonstrar o entendimento de especialistas da área médica, de biologia celular, de bioética e de sexualidade humana, no sentido de que haveriam, supostamente, avanços muito mais promissores de pesquisas científicas com células-tronco adultas, sendo que as embrionárias não trariam, na ótica do autor da ADI, os resultados científicos esperados.
Outrossim, pretendeu-se mostrar que “o embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida”, além do que “a vida começa na fecundação” e “não se trata de um simples amontoado de células, pois o embrião é vida humana”.
Ocorre que não cabe ao Poder Judiciário responder indagações de alto cunho filosófico, religioso ou estritamente científico. A propósito, é de conhecimento meridiano que na vida existem perguntas para as quais ninguém tem resposta[15]. Não há consenso. Ao menos não por ora, neste atual estágio da civilização.
Por isso, assim como o fez o Pleno do STF, também nós não nos atreveremos a tentar desvendar quando exatamente a vida humana tem início. Haveria vida em um embrião fertilizado in vitro, fora do ventre materno? Talvez, mas se para efeitos jurídicos – e só para esses efeitos – o Supremo disse que não, então é não. Ponto final.
Aliás, vis-à-vis da enormidade de pessoas que vêm sofrendo, muitas vezes em silêncio, por serem portadoras de doenças graves, de difícil ou improvável cura, seria até mesmo inútil tentar perquirir quando a vida tem início se, em sentido oposto, é a morte, por assim dizer, que se avizinha. “Waste of time”, como diriam os norte-americanos.
Nesse passo, não havia mesmo como prosperar a ADI 3.510/DF, a qual foi julgada totalmente improcedente, por maioria de votos. Aliás, do voto do Ministro Relator Ayres Britto colhem-se várias lições interessantíssimas (lições de vida, diríamos), mas uma frase é mister reproduzir aqui desde logo, quando obtemperou:
“Não existe pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana.”
Antes da decisão final de mérito, atendendo o requerimento formulado pelo então Procurador-Geral da República, foi designada audiência pública[16], objetivando a oitiva de autoridades do meio científico e religioso, oportunidade na qual os ministros do STF tiveram oportunidade ímpar de esclarecer suas dúvidas sobre a matéria de fato. E é curioso como o assunto envolvendo as células-tronco embrionárias é permeado de religiosidade, mesmo sendo o Brasil um Estado laico[17] (mas, certamente, não agnóstico)[18].
Contudo, o que nos parece mais relevante frisar é, justamente, as razões que levaram todos os 11 (onze) ministros do STF a declarar constitucional a Lei de Biossegurança (ou, mais propriamente, de não declará-la inconstitucional, como era o intuito da ADI 3.510/DF).
Em 30.09.2005, o Movimento em Prol da Vida – MOVITAE, representado por seu advogado (Dr. Luís Roberto Barroso), ingressa no STF com pedido de participação no feito, na qualidade de amicus curiae, estribado no artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99[19].
A aludida petição, magistralmente elaborada, pugnava pela constitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 11.105/2005, em defesa da continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Os tópicos abordados incluíram: (i) o histórico da Lei de Biossegurança; (ii) a questão do ponto de vista técnico e doutrinário, além do ponto de vista (iii) ético, (iv) jurídico e (iv) institucional, mas aqui, por razões de espaço e delimitação do trabalho, cingiremo-nos apenas à visão jurídica.
Mal não fará, entretanto, esclarecermos, ab initio, que a fertilização in vitro é um método de reprodução assistida, destinado em geral a superar a infertilidade conjugal, utilizado com sucesso desde 1978[20]. Ela permite que os espermatozóides fecundem os óvulos em laboratório, fora do corpo da mulher, quando este processo não possa ser realizado no seu lugar natural, que é a trompa de falópio.
Porém, muitos dos embriões obtidos se revelam inviáveis. Quando, todavia, se realiza com êxito a fase de fecundação e desenvolvimento inicial, o embrião é transferido para o útero (nidação), onde deverá continuar seu ciclo de formação, até adquirir capacidade de implantação no endométrio, que é a camada interna do útero da mulher. As possibilidades de êxito na obtenção da gravidez aumentam em função do número de embriões transferidos. No entanto, para limitar os riscos da gravidez múltipla, a recomendação é a de transferência de dois embriões, sendo comum que se chegue a três. Os embriões excedentes são congelados[21].
Ressaltando a fundamental importância das pesquisas com células-tronco embrionárias, Barroso escreve que:
“As características que singularizam as células-tronco em relação às demais células são (a) a capacidade de se diferenciarem, i.e., de se converterem em distintos tecidos no organismo e (b) a propriedade de autoreplicação, isto é, a capacidade que têm de produzirem cópias idênticas de si mesmas. Todavia, tais características não se manifestam com a mesma intensidade em todas as células-tronco. Estas podem ser classificadas em: (a) totipotentes, as quais possuem a capacidade de se diferenciar em qualquer dos 216 tecidos que compõem o corpo humano; (b) pluripotentes ou multipotentes, que podem se diferenciar em quase todos os tecidos, menos na placenta e nos anexos embrionários; (c) oligopotentes, que são capazes de se diferenciar em poucos tecidos; ou (d) unipotentes, que só conseguem se diferenciar em um único tecido.
As totipotentes e as pluripotentes somente são encontradas nos embriões (por isso são chamadas de embrionárias). Tais células podem ser extraídas até três semanas após a fecundação (aproximadamente 14 dias)[22]. É essa capacidade de se diferenciar em todas as células do organismo humano que faz com que as células-tronco embrionárias se tornem necessárias para a pesquisa médica[23]. Como as células-tronco adultas são apenas oligopotentes ou unipotentes, o seu potencial para a pesquisa é significativamente menor, embora também sejam dotadas de importância.
Dentre as patologias cuja cura pode resultar das pesquisas com células embrionárias, podem ser citadas, por exemplo, as atrofias espinhais progressivas, as distrofias musculares, as ataxias, a esclerose lateral amiotrófica, a esclerose múltipla, as neuropatias e as doenças de neurônio motor, a diabetes, o mal de Parkinson, síndromes diversas (como as mucopolisacaridoses ou outros erros inatos do metabolismo etc.). Todas elas constituem doenças graves, que causam grande sofrimento a seus portadores.
(...) O debate de idéias nessa matéria pode se travar em diferentes níveis de abstração e complexidade, indo da fé à filosofia metafísica. Mas não pode desconsiderar o sofrimento real e concreto das pessoas portadoras dessas e de outras doenças, que precisam de solidariedade e empenho por parte do Estado, da sociedade e da comunidade científica.[24]” (g.n.)
Enfrentado o debate sobre o início da vida, do ponto de vista ético, poderíamos apresentar algumas posições que vêm sendo defendidas no plano teórico, aduz Barroso, segundo as quais a vida humana se inicia: (i) com a fecundação; (ii) com a nidação; (iii) quando o feto passa a ter capacidade de existir sem a mãe (entre a 24ª e a 26ª semanas de gestação); e (iv) quando da formação do sistema nervoso central.
No entanto, deixando registradas en passant as principais posições sobre o prisma ético, melhor analisarmos a questão do ponto de vista jurídico, conforme nos propusemos inicialmente e dentro do escopo do presente trabalho. Nesse passo, mais uma vez nos valemos das preciosas lições do culto professor Luís Roberto Barroso, até porque o entendimento por ele esposado foi integralmente acolhido no voto proferido pelo eminente Ministro Relator Ayres Britto, no julgamento da ADI 3.510/DF, do Supremo Tribunal Federal.
Sendo assim, passa-se a tecer alguns comentários sobre a inexistência de violação do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, tudo para analisarmos, na sequência, a aplicabilidade do princípio constitucional da solidariedade ao caso sub examine.
O que restou suficientemente demonstrado pelo professor Barroso durante a tramitação do processo no STF é que, ao contrário do argumento defendido pelo ilustre Procurador-Geral da República, a utilização de células-tronco em pesquisas e tratamentos médicos é alimentada, no mais das vezes, por um sentimento religioso, fundando-se ele no falso pressuposto de que a vida teria início com a fecundação, equiparando-se, portanto, embrião e pessoa humana.
Esta, no nosso sentir, é uma premissa equivocada, que leva à não menos equivocada conclusão de que a destruição do embrião, para a realização de pesquisas e para o tratamento de outras pessoas, representaria uma violação da vida. Barroso, com muita propriedade, diz que “não se deve desmerecer a crença sincera de qualquer pessoa ou doutrina, mas no espaço público de um Estado laico, hão de prevalecer as razões do Direito e da Ciência”[25].
Faz sentido. A Constituição Federal, no artigo 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida; o Código Civil de 2002, a seu turno, reproduzindo normas do Código de 1916, dispõe:
“Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Portanto, ainda seguindo a brilhante linha de raciocínio de Luís Roberto Barroso, “é a partir do nascimento com vida que surge a pessoa humana, com aptidão para tornar-se sujeito de direitos e deveres. Nada obstante, a lei resguarda, desde a concepção, os direitos do nascituro. Semanticamente, nascituro é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato certo[26]. Os civilistas chamam a atenção, no entanto, para o fato de que este ser deverá estar em desenvolvimento no útero da mãe[27]. Note-se que o novo Código Civil, embora tenha sido promulgado em 2002, resultou de projeto de lei que foi discutido em um período no qual não era possível separar o embrião do corpo da mulher. Esta possibilidade só surgiu quando do advento da técnica da fertilização in vitro. (...) Como consequência das premissas assentadas acima, o embrião resultante da fertilização in vitro, conservado em laboratório: a) não é uma pessoa, haja vista não ter nascido; b) não é tampouco um nascituro, em razão de não haver sido transferido para o útero materno. As normas e categorias tradicionais do direito civil não se aplicam à fecundação extracorporal. (...) Em suma: embrião resultante de fertilização in vitro, sem haver sido transferido para o útero materno, não é nem pessoa nem nascituro.[28]” (g.n.)
O que é preciso deixar claro – até mesmo como esclarecimento à opinião pública – é que a extração das células-tronco ocorre (i) antes do início da formação do sistema nervoso, quando o embrião é apenas um conjunto de células não diferenciadas; (ii) antes da nidação, i.e., da fixação do embrião no útero; e (iii) antes de qualquer viabilidade de vida extra-uterina e, até mesmo, antes que se possa considerá-lo um ser individualizado.
Não sendo o embrião uma pessoa, não há que se falar, a rigor, em dignidade humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal). Contudo, não se deve desprezar o fato de se tratar de um ser humano em potencial. Mas, o tratamento dado à matéria pela Lei nº 11.105/2005 (Lei de Biossegurança) supera esta objeção, haja vista que somente permite a utilização de embriões fecundados in vitro para fins reprodutivos e que não tenham a possibilidade de se tornarem seres humanos, porque inviáveis ou não utilizados no processo de fertilização.
De acordo com o inciso I do artigo 5º da referida lei, podem ser utilizadas as células oriundas de “embriões inviáveis”, ou seja, de embriões que não poderiam ser implantados no útero por não apresentarem as condições internas necessárias ao seu desenvolvimento posterior.
Já de acordo com o inciso II, poderão ainda ser usados embriões com três anos ou mais de congelamento. Observe-se que os embriões congelados são aqueles que não foram implantados no útero materno[29]. São embriões que não puderam ser utilizados no tratamento reprodutivo; que foram congelados para garantir que, tendo o tratamento anterior falhado, pudessem vir a ser implantados; e que foram doados para a pesquisa por seus genitores. Não possuem, portanto, as condições externas: são embriões que nunca serão implantados, que não chegarão à nidação e ao desenvolvimento posterior[30].
Lobriga-se, portanto, que inicialmente a finalidade perseguida era a reprodução, mas se a implantação não ocorreu, não há razões plausíveis para que as células não sejam utilizadas para promover a vida e a saúde de pessoas que sofrem de graves patologias. Admitir o contrário, seria puro egoísmo, além de não ser demonstração de solidariedade!
Frise-se, por derradeiro, que de acordo com o § 1º do artigo 5º da Lei de Biossegurança, para que o embrião possa ser utilizado, é ainda necessário o consentimento dos genitores, ou seja, se os genitores, por razões de consciência, consideram que o embrião que produziram não deva fornecer células para a realização de pesquisas, podem não autorizar o seu uso. A Lei lhes garante essa possibilidade, demonstrando respeito e consideração pelo credo religioso ou filosófico por eles professado.
Logo, ao exigir o prévio consentimento dos genitores para a realização de pesquisas com células-tronco, a lei assegurou o direito de cada um agir de acordo com sua ética pessoal (razões de foro íntimo), o que, em última análise, configura uma inequívoca e legítima expressão de democracia.
Pelas razões acima delineadas, o ilustre professor Luís Roberto Barroso conclui pela constitucionalidade do artigo 5º da Lei nº 11.105/2005[31], entendimento este, repita-se, integralmente acolhido pelos 11 (onze) ministros do STF.
Vejamos, agora, algumas passagens interessantes do brilhante voto do Ministro Relator Ayres Britto que, em tudo e por tudo, confirmam na ADI 3.510/DF, o entendimento do abalizado Luís Roberto Barroso.
Apresentado o relatório do v. acórdão, o eminente Relator assenta, de partida, a legitimidade do DD. Procurador-Geral da República para a propositura de ações diretas de constitucionalidade, mercê do disposto no artigo 103, inciso VI, da Constituição Federal[32]. No mérito, reafirma que a ação direta de inconstitucionalidade é manejada para se contrapor a todos os dispositivos do artigo 5º da Lei Federal nº 11.105, de 24 de março de 2005[33], popularizada como “Lei de Biossegurança”.
Aduz, outrossim, que “o que temos sob exame de validade constitucional é todo um necessário, adequado e proporcional conjunto de normas sobre a realização de pesquisas no campo da medicina celular ou regenerativa, em paralelo àquelas que se vêm desenvolvendo com outras fontes de células-tronco humanas (porém adultas), de que servem de amostra as situadas no cordão umbilical, no líquido amniótico, na medula óssea, no sangue da menstruação, em células de gordura e até mesmo na pele ou epiderme (a mais nova das descobertas, com potencialidades que se anunciam como próximas daquelas que são inerentes às células-tronco embrionárias ...). Por conseguinte, linhas de pesquisa que não invalidam outras, porque a essas outras vêm se somar em prol do mesmo objetivo de enfrentamento e cura de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional (ilustrativamente, atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, a esclerose múltipla e a lateral amiotrófica, as reuropatias e as doenças do neurônio motor, além das precedentemente indicadas). Contingente em torno de 5 milhões, somente para contabilizar os ‘brasileiros que sofrem de algumas doenças genéticas graves’, segundo dados levantados pela Revista Época, edição de 29 de abril de 2007, pp. 13-17. E quanto aos portadores de diabetes, em nosso país, a projeção do seu número varia de 10 a 15 milhões ...”[34] (o grifo consta no original)
Como se vê, o assunto versado na ADI 3.510/DF é de enorme repercussão social, o que foi reconhecido expressamente pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, que não deixou de enfrentar a vexata quaestio focado, também, no princípio constitucional da solidariedade (CF/88, artigo 3º, inciso I)[35].
A propósito, o Ministro Britto foi particularmente feliz ao assim se expressar:
“(...) a presente ADIN consubstancia expressa reação até mesmo à abertura da Lei de Biossegurança para a idéia de que células-tronco embrionárias constituem tipologia celular que acena com melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais, em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos, adquiridos, ou em consequência de acidentes.”[36]
E prossegue mais adiante em seu raciocínio, verbis:
“(...) a escolha feita pela Lei de Biossegurança não significou um desprezo ou desapreço pelo embrião in vitro, menos ainda um frio assassinato, porém u’a mais firme disposição para encurtar caminhos que possam levar à superação do infortúnio alheio. Um olhar mais atento para os explícitos dizeres de um ordenamento constitucional que desde o seu preâmbulo qualifica ‘a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça’ como valores supremos de uma sociedade mais que tudo ‘fraterna’. O que já significa incorporar às imperecíveis conquistas do constitucionalismo liberal e social o advento do constitucionalismo fraternal, tendo por finalidade específica ou valor fundante a integração comunitária. Que é vida em comunidade (de comum unidade), a traduzir verdadeira comunhão de vida ou vida social em clima de transbordante SOLIDARIEDADE. Trajetória do Constitucionalismo que bem se retrata no inciso I do art. 3º da nossa Constituição, verbis: ‘Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e SOLIDÁRIA’.”[37] (os grifos constam no original; maiúsculas nossas)
José Afonso da Silva, em seu “Comentário contextual à Constituição”[38], ensina que:
“‘Construir’, aí, tem sentido contextual preciso. Reconhece que a sociedade existente no momento da elaboração constitucional não era livre, nem justa, nem solidária. Portanto, é signo linguístico que impõe ao Estado a tarefa de construir não a sociedade – porque esta já existia –, mas a liberdade, a justiça e a solidariedade a ela referidas. Ou seja: o que a Constituição quer, com esse objetivo fundamental, é que a República Federativa do Brasil construa uma ordem de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos solidifique a idéia de comunidade fundada no bem comum.” (g.n.)
Mas, a par de o Supremo Tribunal Federal ter norteado sua decisão na ADI 3.510/DF, baseando-se no princípio constitucional da solidariedade – o que é de todo louvável –, mister esclarecermos qual foi o caminho trilhado pelo eminente Ministro Relator Ayres Britto até a prolação de seu venerando voto, que culminou na decisão final de total improcedência da ação.
Ao apreciar o mérito da causa, naquilo que precisamente chamou de o ‘fiat lux’ da controvérsia, o Ministro Britto pontuou que a nossa Constituição:
“... sobre o início da vida humana é de um silêncio de morte” (o ministro informa que permitiu a si mesmo o trocadilho; o grifo consta no original)
Aplauso merece a postura assumida pelo ministro, pois conforme melhor esclarece “a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida.”[39]
Sob esse bem ajustado prisma, desenvolve todo o seu raciocínio, para asseverar, em apertada síntese, que:
a) A nossa Magna Carta não diz quando começa a vida humana, não dispondo sobre nenhuma das formas de vida humana pré-natal;
b) “Embrião”, “feto” e “pessoa humana” são três realidades que não se confundem. A pessoa humana não se antecipa à metamorfose dos outros dois organismos. É o produto final dessa metamorfose (tal como se dá entre a planta e a semente, a chuva e a nuvem, a borboleta e a crisálida, a crisálida e a lagarta; mas ninguém afirma que a semente já seja a planta, a nuvem, a chuva, a lagarta, a crisálida, a crisálida, a borboleta);
c) Os embriões a que a Lei de Biossegurança se refere são aqueles derivados de uma fertilização que se obtém sem o conúbio ou acasalamento humano. Fora da relação sexual. Do lado externo do corpo da mulher, então, e do lado de dentro de provetas ou tubos de ensaio. “Fertilização in vitro”, tanto na expressão vocabular do diploma legal quanto das ciências médicas e biológicas, no curso de procedimentos de procriação humana assistida. Numa frase, concepção artificial ou em laboratório, ainda numa quadra em que deixam de coincidir os fenômenos da fecundação de um determinado óvulo e a respectiva gravidez humana. A primeira, já existente (a fecundação), mas não a segunda (a gravidez). Donde a proposição de que, se toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, nem todo embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana;
d) O emprego de tais células-tronco embrionárias para os fins da Lei de Biossegurança tem entre os seus requisitos a expressa autorização do casal produtor do espermatozóide e do óvulo afinal fecundado. Fecundado em laboratório ou por um modo artificial, mas sem que os respectivos doadores se disponham a assumi-los como experimento de procriação própria ou alheia;
e) Não se trata de interromper uma producente trajetória extra-uterina do material constituído e acondicionado em tubo de ensaio, simplesmente porque esse modo de irromper em laboratório e permanecer confinado in vitro é, para o embrião, insuscetível de progressão reprodutiva. Impossível de um reprodutivo “desenvolvimento contínuo”, ao contrário, data venia, da afirmação textualmente feita na petição inicial da presente ação;
f) O embrião viável (viável para reprodução humana, lógico), desde que obtido por manipulação humana e depois aprisionado in vitro, empaca nos primeiros degraus do que seria sua evolução genética. Isto por se achar impossibilitado de experimentar as metamorfoses de hominização que adviriam de sua eventual nidação. Nidação, como sabido, que já é a fase de implantação do zigoto no endométrio ou parede do útero, na perspectiva de sua mutação em feto. Dando-se que, no materno e criativo aconchego do útero, o processo reprodutivo é da espécie evolutiva ou de progressivo fazimento de uma nova pessoa humana; ao passo que, lá, na gélida solidão do confinamento in vitro, o que se tem é um quadro geneticamente contido do embrião, ou, pior ainda, um processo que tende a ser estacionário-degenerativo, se considerada uma das possibilidades biológicas com que a própria lei trabalhou: o risco da gradativa perda da capacidade reprodutiva e quiçá da potipotência do embrião que ultrapassa certo período de congelamento (congelamento que se faz entre três e cinco dias da fecundação);
g) A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não é isso. O que autoriza a lei é um procedimento externa-corporis: pinçar de embrião ou embriões humanos, obtidos artificialmente e acondicionados in vitro, células que, presumivelmente dotadas de potência máxima para se diferenciar em outras células e até produzir cópias idênticas a si mesmas (fenômeno da ‘auto-replicação’), poderiam experimentar com o tempo o risco de uma mutação redutora dessa capacidade ímpar. Com o que transitariam do não-aproveitamento reprodutivo para a sua relativa descaracterização como tecido potipotente e daí para o descarte puro e simples como dejeto clínico ou hospitalar. Dejeto tanto mais numericamente incontrolável quanto inexistentes os bancos de dados sobre as atividades de reprodução humana assistida e seus produtos finais (de se registrar que a ação direta não impugna o descarte puro e simples de embriões não aproveitados ‘no respectivo procedimento’; a impugnação é quanto ao emprego de células em pesquisa científica e terapia humana);
h) A fertilização in vitro é peculiarizado meio ou recurso científico a serviço da ampliação da família como entidade digna da ‘especial proteção do Estado’ (base que é de toda a sociedade); não importa, para o Direito, o processo pelo qual se viabilize a fertilização do óvulo feminino (se natural o processo, se artificial). O que importa é possibilitar ao casal superar os percalços de sua concreta infertilidade, e, assim, contribuir para a perpetuação da espécie humana;
i) Não se pode compelir nenhum casal ao pleno aproveitamento de todos os embriões sobejantes (‘excedentários’) dos respectivos propósitos reprodutivos. Até porque tal aproveitamento, à revelia do casal, seria extremamente perigoso para a vida da mulher que passasse pela desdita de uma compulsiva nidação de grande número de embriões (a gestante a ter que aceitar verdadeira ninhada de filhos de uma só vez). Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante;
j) Se todo casal tem o direito de procriar; se esse direito pode passar por sucessivos testes de fecundação in vitro; se é da contingência do cultivo ou testes in vitro a produção de embriões em número superior à disposição do casal para aproveitá-los procriativamente; se não existe, enfim, o dever legal do casal quanto a esse cabal aproveitamento genético, então as alternativas que restavam à Lei de Biossegurança eram somente estas: a primeira, condenar os embriões à perpetuidade da pena de prisão em congelados tubos de ensaio; a segunda, deixar que os estabelecimentos médicos de procriação assistida prosseguissem em sua faina de jogar no lixo tudo quanto fosse embrião não-requestado para o fim de procriação humana; a terceira opção estaria, exatamente, na autorização que fez o art. 5º da Lei. Mas uma autorização que se fez debaixo de judiciosos parâmetros, sem cujo atendimento o embrião in vitro passa a gozar de inviolabilidade ontológica até então não explicitamente assegurada por nenhum diploma legal;
k) O embrião, nas estritas hipóteses previstas no artigo 5º, incisos I e II, da Lei de Biossegurança, não é jamais uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova. Faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem em formação. Pessoa humana, por consequência, não existe nem mesmo como potencialidade; e, last but not least,
l) O ordenamento jurídico não deve deixar de se colocar do lado dos que sofrem para se postar do lado do sofrimento.
Só mesmo um homem (poeta) de tamanha sensibilidade, como o eminente Ministro Carlos Ayres Britto, poderia veicular palavras tão significativas, tão esperançosas, e tão dignas de toda a nossa admiração e respeito. Não é à toa que se costuma dizer que “as palavras têm poder”.
Mas, o mais importante de tudo isso, é que numa única palavra, podemos definir a atitude do Ministro Britto e dos demais ministros do STF, além é claro do professor Luís Roberto Barroso: todos eles foram inegavelmente S O L I D Á R I O S !
E o que se deve entender por “solidariedade” nos dias de hoje? Aliás, “fraternidade” e “solidariedade” teriam exatamente o mesmo significado? Pensamos que não. Socorrendo-nos do conhecido dicionário Aurélio, encontramos nele os seguintes verbetes:
“Fraternidade: amor ao próximo; harmonia; paz; comungar nas mesmas idéias.
Solidariedade: relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s).”[40]
Com base nesses dois conceitos, fica mais fácil entender o motivo pelo qual a CNBB lançou, anos atrás, a “Campanha da Fraternidade” (e não da “Solidariedade”), eis que, definitivamente, os seus interesses não são comuns aos interesses dos milhares de enfermos que, graças à decisão do STF, voltaram a ter esperança quanto à possível cura de doenças graves e respectiva melhora na qualidade de vida. Que Deus tenha compaixão e possa, quem sabe um dia, perdoar a “Conferência Nacional dos Bispos do Brasil” (não é “Confederação”), por ter tido uma participação absolutamente oposta ao curso natural da história[41], no caso das células-tronco embrionárias[42].
Inquestionavelmente, conforme remarcado por Pedro Buck Avelino, “o valor solidariedade apresenta-se diametralmente oposto aos defendidos pela teoria individualista”[43]. A solidariedade, ao contrário do individualismo, considera o semelhante como elemento essencial na solução dos problemas sociais[44].
Aliás, não podemos nos esquecer, a vida em sociedade sempre foi uma necessidade humana elementar. De uma forma ou de outra, todos nós necessitamos uns dos outros em determinados momentos da vida, para não dizer diariamente.
Mas, por que então em determinadas situações o ser humano é solidário e em outras não? O que leva alguém, efetivamente, a ser solidário em relação ao próximo? Seria decorrência da influência da mídia ou uma antevisão de, eventualmente, vir a sofrer do mesmo mal que aflige o seu semelhante? Essas certamente são questões intrincadas, que comportariam múltiplas respostas e novas indagações, contudo arriscamos, de pronto, uma opinião: o homem se sensibiliza notadamente com aquilo que os seus olhos vêem. Porém não é só isso. O sentimento de comoção toma conta do homem quando ele acredita que o infortúnio alheio é real e que o desespero demonstrado pelas pessoas é sincero. Aí, quase sempre, ele se torna solidário. Ilustrando, poderíamos mencionar, dentre outros, os diversos desastres da natureza ocorridos em todo o mundo, além do problema da fome em vários países do continente africano, situações estas que ensejaram a expressiva entrega de uma série enorme de donativos.
O “monstro da indiferença”[45] se instala no homem quando: (i) ele não enxerga o problema; (ii) ele enxerga o problema, mas acredita sinceramente que este jamais lhe acometerá; (iii) ele acredita que o infortúnio alheio tenha sido causado, predominantemente, pela própria forma de agir da vítima, que teria, deliberadamente e sem maior cautela, se colocado em situação de exposição a risco; ou (iv) ele crê que a vítima é vadia, preguiçosa ou de má índole, merecendo passar pela “provação” de dificuldades, mormente financeiras.
E por que toda essa reflexão digressiva? Apenas para dizer que, no que pertine às pesquisas com células-tronco embrionárias, o STF optou por ser solidário, em atendimento ao preceito constitucional (CF/88, artigo 3º, inciso I), porquanto: (i) enxergou a realidade em que vivem os milhares de doentes graves brasileiros, cuja fé e esperança de cura futura são os únicos sentimentos que os fazem prosseguir na luta diária pela vida[46]; (ii) reconheceu que o destino das células-tronco embrionárias, caso não implantadas no útero de uma mulher, nas condições previstas na Lei, seria inevitavelmente o descarte (na lata de lixo, é claro)[47]; e, (iii) preferiu autorizar a continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, justamente por vislumbrar um expressivo avanço científico no Brasil.
Os verbos “enxergar”, “reconhecer” e “preferir”, acima utilizados, trazem em si uma abertura para o novo, para o que é moderno e vanguardista, em suma para o que está acontecendo atualmente nos países ditos de primeiro mundo. Com a decisão do Supremo, o Brasil se alinha àqueles que investem em pesquisas científicas no campo da medicina, genética e biotecnologia. Para nós do (Bio)direito[48], também significa um extraordinário avanço, pois “nunca antes na história desse país” (permitimo-nos aqui parafrasear o Presidente Lula), a literatura jurídica havia se debruçado sobre tema tão delicado e de interesse de toda a humanidade.
Não desconhecemos, contudo, que principalmente a comunidade científica reclamou, sob certo aspecto – e talvez com razão –, em virtude da demora (justificada, dada a complexidade da causa) quanto ao julgamento da ADI 3.510/DF[49], o que teria ocasionado a suspensão dos incentivos financeiros de diversos órgãos, para a continuidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Certamente, a paralisação momentânea das pesquisas acarretou algum atraso e prejuízo, já que ninguém desejaria, presume-se, investir em uma pesquisa cuja Lei de Biossegurança, ao menos em tese, poderia vir a ser declarada inconstitucional pela Excelsa Corte.
Isto por certo não retira o brilhantismo da v. decisão do STF. Pensemos, pois, para o futuro. Lembremos das palavras da notável Ministra Cármen Lúcia, que ao proferir o seu grandioso voto, mostrou que a mais alta Corte do nosso país julga livre de influências externas ou pressões deste ou daquele seguimento da sociedade. Disse ela, verbis:
“(...) a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião. Juiz, no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de Miranda, assim é porque o Direito assim quer e determina. O Estado é laico, a sociedade é plural, a ciência é neutra e o Direito imparcial. Por isso, como todo juiz, tenho de me ater ao que é o núcleo da indagação constitucional posta neste caso: a liberdade, que se há de ter por válida, ou não, e que foi garantida pela lei questionada, de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias, nos termos do art. 5º da Lei 11.105/2005.”[50]
Atitudes desse jaez mostram que, embora, de um lado, certo inconformismo da sociedade se justifique no tocante à “demora do Judiciário”, de outro lado, a seriedade e a profundidade de suas decisões suplanta – e muito – as expectativas do jurisdicionado brasileiro. Entre celeridade e segurança jurídica, fiquemos preferencialmente com ambos; na impossibilidade, porém, abracemos sempre a segurança, sob pena de ruir o Estado Democrático de Direito.
Mas, nesse vai-e-vem de raciocínio – o presente artigo não segue rigorosamente uma ordem cronológica, nem uma sequência pré-definida dos tópicos versados –, o mais importante é frisar que o valor solidariedade ao ser transposto da sociologia para o Direito, passou a ostentar a qualidade de uma norma constitucional. Portanto, é inegável que o disposto no artigo 3º, inciso I, da Carta Magna, expressa um comando dirigido para toda a nação brasileira no sentido de que devemos basear as nossas ações atentando para a construção de uma sociedade livre, justa e “solidária”.
Melhor ainda, deixemos, por último, registrada aqui a nossa sugestão, muito mais simples: imitemos os gansos! Conta-se que os gansos vivem em formação e lutam pela sobrevivência juntos. Quando um ganso fica doente ou é ferido por um tiro de um caçador desalmado e cai, dois gansos saem em formação e o acompanham para ajudá-lo e protegê-lo. Ficam com ele até que consiga voar novamente ou morrer. Que belo exemplo de solidariedade temos dos gansos e eles não são animais racionais como nós, seres humanos.[51]
Tarlei Lemos Pereira é especialista em Direito de Família e das Sucessões. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Membro fundador da Academia de Pesquisas e Estudos Jurídicos – APEJUR. Advogado em São Paulo.
Referências bibliográficas
AVELINO, Pedro Buck. Princípio da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na Constituição de 1988, Revista de Direito Constitucional e Internacional, nº 53, out./dez., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Ética, Direito e Reprodução Humana Assistida, in O Direito Civil no Século XXI, Coord.: Maria Helena Diniz e Roberto Senise Lisboa, São Paulo: Saraiva, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, São Paulo: Saraiva, 1996.
CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas, Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
COAN, Emerson Ike. Biomedicina e Biodireito. Desafios bioéticos. Traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida, in Biodireito: ciência da vida, os novos desafios, Org.: Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, São Paulo: Saraiva, 2001.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado, 12ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição, 6ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009.
Sites Internet
http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php
http://www.cnbb.org.br/site/
http://www.osanjos.net/
[1]. A frase é atribuída originalmente ao escritor mineiro Otto Lara Resende.
[2]. O eminente Ministro Menezes Direito faleceu no dia 01.09.2009.
[3]. Não concordamos com a frequente utilização da expressão “cadeirantes”, designando aqueles que, em razão de deficiência física, fazem uso de cadeiras de rodas. Tal expressão soa deveras pejorativo. Nas precisas palavras de Patricia Oliveira Lima Pessanha, “(...) urge questionar sobre sua adequação, eis que, neste caso, de forma ainda mais evidente, a pessoa parece mesmo ser definida em função de um objeto, qual seja, a cadeira de rodas que lhe permite fazer uso da mobilidade que sofre limitações. Mas a mobilidade, relembre-se, é apenas uma das qualidades físicas do homem, razão pela qual parece um tanto inadequado o ‘rótulo’ em questão. Ora, para se fazer uma comparação singela, mas nem por isso menos pertinente, o uso de óculos para problemas visuais, a exemplo da miopia, é fato comum na sociedade, e nem por isso todas estas pessoas são ‘rotuladas’ em função deste objeto”.
(Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:WMeZhMqnSQUJ:www.ambito-juridico.com.br/site/index.php%3Fn_link%3Drevista_artigos_leitura%26artigo_id%3D7718+cadeirante+%C3%A9+express%C3%A3o+pejorativa&cd=6&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br; acesso em 09.07.2010)
[4]. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: diz ser “instituição permanente que congrega os Bispos da Igreja católica no País, na qual, a exemplo dos Apóstolos, conjuntamente e nos limites do direito, exercem algumas funções pastorais em favor de seus fiéis e procuram dinamizar a própria missão evangelizadora, para melhor promover a vida eclesial, responder mais eficazmente aos desafios contemporâneos, por formas de apostolado adequadas às circunstâncias, e realizar evangelicamente seu serviço de amor, na edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, a caminho do Reino definitivo”. Disponível em <http://www.cnbb.org.br/site/cnbb/quem-somos>; acesso em 07.07.2010.
A CNBB promove cursos de formação pastoral em bioética, obviamente à luz daquilo que acredita e reputa correto, e em sentido radicalmente oposto aos interesses da população enferma e à v. decisão do STF sobre o tema (ADI 3.510/DF).
[5]. “A Igreja Católica firmou nitidamente seu entendimento no IV Congresso Internacional de Médicos Católicos, realizado em Roma, em 29 de setembro de 1949, quando o Papa Pio XII, em seu discurso, reprovou a fecundação artificial fora do casamento, bem como a ocorrida com elemento ativo de terceiro. Somente os cônjuges, disse ele, têm o direito recíproco sobre seus corpos, a possibilitar uma nova vida. Esse direito é exclusivo e inalienável.” (Álvaro Villaça Azevedo, Ética, Direito e Reprodução Humana Assistida, in O Direito Civil no Século XXI, Coord.: Maria Helena Diniz e Roberto Senise Lisboa, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 70)
[6]. Ilustrando, para os que seguem a doutrina espírita, a resposta à pergunta nº 344 do Livro dos Espíritos, de Allan Kardec (Em que momento a alma se une ao corpo?) é a seguinte: “A união começa na concepção, mas só se completa no instante do nascimento. No momento da concepção, o Espírito designado para habitar determinado corpo se liga a ele por um laço fluídico e vai aumentando essa ligação cada vez mais, até o instante do nascimento da criança. O grito que sai da criança anuncia que ela se encontra entre os vivos e servidores de Deus”. (Aut. e ob. cit., São Paulo: FEESP, 1998, p. 147)
[7]. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16 da Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências.
[8]. Princípio da interpretação conforme a Constituição: “Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatíveis com a Constituição. Note-se que o texto legal permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo Tribunal.” (Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 175, apud de Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990, pp. 284 e ss., e Controle de constitucionalidade na Alemanha, RDA 193:13, 1993)
[9]. O artigo 6º da Lei de Biossegurança proíbe, expressamente, verbis: “I – implementação de projeto relativo a OGM (organismos geneticamente modificados) sem a manutenção de registro de seu acompanhamento individual; II – engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta Lei; III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano; IV – clonagem humana; V – destruição ou descarte no meio ambiente de OGM e seus derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização, referidos no art. 16 desta Lei, e as constantes desta Lei e de sua regulamentação; VI – liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma desta Lei e de sua regulamentação; VII – a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso. Parágrafo único – Para os efeitos desta Lei, entende-se por tecnologias genéticas de restrição do uso qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos.”
[10]. Lei nº 11.105/2005, artigo 26 – “Realizar clonagem humana: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”
No entanto, registre-se que, nos Estados Unidos da América do Norte, um grupo de cientistas da Universidade George Washington anunciou, em outubro de 1993, a primeira clonagem de um ser humano (notícia de Nova Iorque, no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 02.11.93, p. A-13).
[11]. Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.
[12]. Aproximadamente 2 (dois) meses após a publicação da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005.
[13]. Da leitura da petição inicial, subentende-se que os dois incisos do artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 também eram objeto da ADI, embora quanto a eles o ilustre Procurador-Geral da República não tenha feito menção expressa, nem mesmo no pedido. Daí termos afirmado que “o preceito normativo à época impugnado, conforme consta na proemial, era o artigo 5º e respectivos parágrafos da Lei nº 11.105/2005”. (g.n.)
[14]. É importante realçar essa alegação desde logo, porquanto, mais a frente, será demonstrada a antítese, ou seja, que a vida humana somente acontece com a nidação (e não com a fecundação).
[15]. Ilustrando, seria o mesmo que tentarmos responder “quem somos”, “de onde viemos” ou “para onde vamos”, assim como o fez o ator norte-americano Harrison Ford no filme de ficção científica “Blade Runner” (O caçador de andróides), de 1982.
[16]. A audiência pública foi requerida e determinada a sua realização com fundamento na parte final do § 1º, do artigo 9º, da Lei nº 9.868/99.
[17]. Também denominado ‘leigo’ ou ‘não-confessional’.
[18]. Se pararmos para analisar a questão, o Brasil é um dos poucos países do mundo nos quais “religião” não é motivo de guerra. Aqui, salvo raríssimos casos de intolerância, todas as religiões convivem em harmonia, o que certamente é motivo de orgulho para todos nós. Podemos dizer, sem receios, que somos, por exemplo, católicos, mas também somos espíritas; interessamo-nos pelo candomblé, embora não necessariamente professemos essa fé; visitamos esporadicamente templos budistas – e somos sempre bem recebidos –, apesar de não compreendermos a língua japonesa etc.
“Religio est, quae superioris cuiusdam naturae (quam divinam vocant) curam caeremoniamque affert”. Tradução livre: “Religião é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por certa natureza de ordem superior que chamamos divina”. (Cícero, De Inventione Rhetorica, II, p. 147)
[19]. Lei nº 9.868/99, art. 7º, § 2º - “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”
[20]. “O primeiro “bebê de proveta” do mundo, nascido em 05.07.1978, na cidade de Oldham, na Inglaterra, foi Louise Joy Brown, que concretizou a possibilidade da concepção de um ser humano in vitro.” (Heloisa Helena Barboza, Proteção jurídica do embrião humano, Coord. Carlos Maria Romeo Casabona e Juliane Fernandes Queiroz, Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas, 2005, p. 248)
[21]. Raquel de Lima Leite Soares Alvarenga, Considerações sobre o congelamento de embriões, ibidem, pp. 232 e seguintes.
[22]. “Com a fecundação, tem origem um zigoto, formado por uma única célula. Esta se divide em duas, que se dividem em quatro, e assim ocorre sucessivamente até que se forme o feto. As células totipotentes são as que têm lugar nas primeiras fases desse processo contínuo de divisão celular (até o momento em que 16 células se dividem em 32), enquanto as pluripotentes somente surgem na fase de blastocisto (que se inicia quando as 32 células se dividem em 64). No blastocisto, as células internas são pluripotentes, enquanto as externas se destinam a produzir a placenta e as membranas embrionárias.” (consta na petição de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, p. 9 – pedido de ingresso como amicus curiae formulado por MOVITAE – Movimento em Prol da Vida na ADI 3.510/DF - STF)
[23]. “As outras duas características das células-tronco embrionárias que as tornam especialmente importantes para a pesquisa são a maior facilidade para isolá-las e a maior possibilidade de induzir o processo de diferenciação celular em laboratório.” (petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, p. 9)
[24]. Petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, pp. 9 e 10.
[25]. Petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, pp. 15 e 16.
[26]. Dicionário Houaiss, 2001: “diz-se de ou o ser humano já concebido, cujo nascimento é dado como certo”. Novo dicionário Aurélio, 1986: “o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo”.
[27]. Nesse sentido: “Nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno.” (Silvio Rodrigues, Direito Civil, vol. 1, 2001, p. 36)
[28]. Petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, pp. 16 e 17.
[29]. Esclareça-se que a técnica de fertilização in vitro produz um número de embriões maior do que o que pode ser efetivamente implantado no útero materno. Feita a fecundação, o médico seleciona, então, os embriões que possuem as características necessárias ao posterior desenvolvimento do feto. Os embriões não implantados são então congelados em condições criogênicas para o caso de a tentativa anterior de implantação não prosperar.
[30]. Petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, p. 20.
[31]. Na parte conclusiva de sua petição (pp. 26 e 27), o professor Luís Roberto Barroso ainda reforça que: “a) A pesquisa com células-tronco embrionárias representa uma perspectiva de tratamento eficaz para inúmeras doenças que causam sofrimento e morte de milhões de pessoas. A legislação impugnada trata da matéria com moderação e prudência, somente permitindo a utilização de embriões remanescentes dos procedimentos de fertilização in vitro; b) As células-tronco embrionárias somente podem ser extraídas até o 14º dia após a fertilização, antes do início da formação do sistema nervoso central ou da existência de qualquer atividade cerebral. De acordo com a maior parte das concepções existentes, ainda não existe vida humana nesse momento. A Lei nº 11.105/2005, ademais, veda expressamente a clonagem humana, a engenharia genética e a comercialização de embriões; c) Não há violação do direito à vida, nem tampouco da dignidade humana, porque embrião não se equipara a pessoa e, antes de ser transferido para o útero materno, não é sequer nascituro. A Lei nº 11.105/2005 protege, todavia, a dignidade do embrião, impedindo sua instrumentalização, ao determinar que só possam ser utilizados em pesquisas embriões inviáveis ou não utilizados no procedimento de fertilização; e, d) A questão acerca das pesquisas com células-tronco tem sido debatida em todo o mundo, ensejando visões contrapostas. No Brasil, o Poder Legislativo, por votação expressiva, tomou posição na matéria, produzindo disciplina que se harmoniza com o tratamento dado na maior parte dos países ocidentais. O tema não se situa no espectro dos consensos mínimos protegidos pela Constituição, devendo prevalecer a deliberação realizada no âmbito do processo político majoritário.” (Aut. e pp. cit., petição de 30.09.2005 – pedido de ingresso como amicus curiae formulado por MOVITAE – Movimento em Prol da Vida na ADI 3.510/DF – STF)
[32]. Constituição Federal, artigo 103 – “Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: VI – o Procurador-Geral da República.”
[33]. Daí termos afirmado linhas atrás que “da leitura da petição inicial, subentende-se que os dois incisos do artigo 5º da Lei nº 11.105/2005 também eram objeto da ADI, embora quanto a eles o ilustre Procurador-Geral da República não tenha feito menção expressa, nem mesmo no pedido”, o que reafirmamos aqui.
[34]. Trecho do voto do Ministro Relator Carlos Ayres Britto na ADI nº 3.510/DF do STF – acórdão datado de 29.05.2008, pp. 7 e 8.
[35]. Constituição Federal de 1988, artigo 3º - “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.” (g.n.)
[36]. Trecho do voto cit. do Ministro Relator Carlos Ayres Britto, p. 9.
[37]. Ibidem, pp. 47 e 48.
[38]. Aut. e ob. cit., 6ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 46.
[39]. Trecho do voto cit. do Ministro Relator Carlos Ayres Britto, pp. 13 e 14.
[40]. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 940 e 1879.
[41]. “As pesquisas com células-tronco são admitidas em grande número de países. Nos Estados Unidos, permite-se a produção de novas linhagens – i.e., a replicação em outras células – a partir de uma célula-tronco embrionária. Já a possibilidade de clonagem terapêutica varia entre os Estados. No Reino Unido, permite-se a produção de novas linhagens, assim como a clonagem terapêutica. Permite-se, ainda, a própria fecundação in vitro com o propósito direto de utilizar os embriões em pesquisas. Na União Européia, permite-se a produção de novas linhagens a partir de embriões remanescentes de FIV, nos países em que a prática for legal.
Na Suécia, na China e em Israel, permite-se a produção de novas linhagens, assim como a clonagem terapêutica. Em Cingapura, permite-se a produção de novas linhagens, assim como a clonagem terapêutica, desde que os embriões sejam destruídos em até 14 dias. Na Austrália, permite-se a produção de novas linhagens, sob certas condições, mas a clonagem terapêutica é proibida. Na Espanha, permite-se a pesquisa. Contudo, a produção de embriões especificamente com essa finalidade não é permitida. Como se vê, a legislação brasileira se harmoniza com a tendência legislativa internacional, exibindo, inclusive, em relação a ela, um viés mais moderado.” (informação extraída da petição cit. de Luís Roberto Barroso, datada de 30.09.2005, p. 23)
[42]. No nosso sentir, não há imperativo de consciência razoável que autorize quem quer que seja, pessoa natural ou jurídica, a professar sua fé desejando e lutando pela manutenção do infortúnio alheio. Óbvio que todas as religiões são igualmente respeitáveis, desde que conduzam ao bem. (destacamos e sublinhamos)
[43]. Aut. cit., Princípio da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na Constituição de 1988, Revista de Direito Constitucional e Internacional, nº 53, out./dez., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 245.
[44]. “Trata-se de nova perspectiva de igualdade, sedimentada na solidariedade dos povos, na dignidade da pessoa humana e na justiça social.” (Pedro Lenza, Direito constitucional esquematizado, São Paulo: Saraiva, 12ª edição, 2008, p. 8)
[45]. A expressão é do escritor mineiro Otto Lara Resende e foi utilizada no voto do Ministro Relator Ayres Britto (ADI 3.510/DF).
[46]. Por ocasião do julgamento da ADI 3.510/DF, vários “cadeirantes” e demais interessados compareceram ao STF, para acompanhar de perto a sessão.
[47]. Nesse sentido, o voto proferido pela eminente Ministra Cármen Lúcia na ADI 3.510/DF, p. 26.
[48]. “O Biodireito – envolvendo direitos e deveres decorrentes dos suportes fáticos e referenciais axiológicos observados e exigidos em face dos avanços técnico-científicos das disciplinas da vida e da saúde – é um novo ramo da Ciência Jurídica, sobretudo principiológico, que considera a responsabilidade ético-profissional de seus operadores em torno das situações envolvendo o homem.
De tal sorte que se deve considerar o homem não um simples produto da natureza, ou seja, só um ser biológico, mas um ser social capaz de atuar conscientemente sobre aquela, modificando-a, pela sua liberdade racional e responsável, o que implica sempre limites éticos. Isto embasa o princípio da dignidade humana.” (Emerson Ike Coan, Biomedicina e Biodireito. Desafios bioéticos. Traços semióticos para uma hermenêutica constitucional fundamentada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade do direito à vida, in Biodireito: ciência da vida, os novos desafios, Org.: Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 260 e 261)
[49]. À guisa de esclarecimento, a petição inicial da ADI 3.510/DF foi protocolizada no STF precisamente no dia 30.05.2005, às 14h50m, datando o respectivo acórdão de 29.05.2008. Portanto, 3 (três) anos se passaram até o julgamento pelo Pleno.
[50]. Trecho do voto cit. da Ministra Cármen Lúcia na ADI 3.510/DF, p. 2.
[51]. Antonio Casteleiro, Solidariedade humana, maio/2008.
Disponível em <http://osanjos.net/index.php?option=com_content&view=article&id=60:solidariedade-humana-&catid=41:pensamentos&Itemid=65>; acesso em 09.07.2010.