456 - Interpretações jurisprudenciais e os oito anos de vigência do art. 2.035 do Código Civil Brasileiro
ANDRÉ MATTOS SOARES – Juiz de Direito
Com a edição do Código Civil de 2002, controvérsias doutrinárias surgiram em torno de uma suposta inconstitucionalidade do art. 2.035, que dispõe, in verbis:
“Art. 2.035 - A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no artigo 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”
No entender de Antonio Jeová Santos, é flagrantemente inconstitucional o caput do dispositivo em foco, de modo que os contratos celebrados na vigência do Código de 1916, mesmo que de trato sucessivo, excetuados os abrigados pela legislação consumerista, teriam aplicação consoante a lei anterior e não segundo o Código de 2002.
Fundamenta o respeitável autor no sentido de que a “posição unânime e clara do Supremo Tribunal Federal e o siderúrgico entendimento de que é retroativa lei nova que pretende alcançar efeitos futuros de negócios jurídicos conduzem o intérprete a não recear na asserção de que o art. 2.035 do CC/2002 padece do vício da inconstitucionalidade”.[1]
A redação do aludido dispositivo, a nosso ver, é confusa no ponto em que preceitua a aplicabilidade do novo Código aos efeitos posteriores, sem diferenciar claramente as conseqüências contratuais das legais de negócios e atos jurídicos anteriormente celebrados.
Daí porque não é mesmo despropositado sugerir a inconstitucionalidade dessa norma jurídica, acaso se entenda por sua incidência sobre os efeitos contratuais a serem produzidos ulteriormente à entrada em vigor do Código que a instituiu.
Todavia, uma leitura conforme os regramentos e construções doutrinárias de direito intertemporal pode salvar a redação do referido enunciado legal.
Isto porque, apesar de preceituar a aplicabilidade do novel diploma às consequências produzidas após a sua vigência, a ressalva constante no art. 2035 (“salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”) evidencia que sobre os efeitos novos somente incidirá o Código de 2002 em se tratando de efeitos legais que não interfiram na formação do contrato.
A matéria, pois, objeto de subsunção aos ditames do novel Diploma, refere-se ao estatuto legal, a exemplo dos juros legais previstos no art. 406 do mesmo Código (estatuto legal dos créditos), que apanham imediatamente as situações em curso, a partir de sua entrada em vigor.[2]
Com efeito, diferencia a doutrina, a implicar conseqüências no âmbito do direito intertemporal, entre estatuto legal (situação jurídica primária) e contrato (situação jurídica secundária), sendo que no primeiro caso aplica-se a lei atual.[3]
Não se viola, deste modo, o conhecido princípio da ultra-atividade ou sobrevivência da lei velha.
À guisa de remate, vale transcrever as palavras de Maria Helena Diniz a respeito:
“(...) o art. 2.035, caput, não atinge, portanto, os efeitos contratuais e substanciais do ato jurídico perfeito já consumados ou a serem realizados; alcançará tão-somente o modo de realização das conseqüências legais que, ainda, não advirem, desde que os contratantes não tenham determinado em cláusula contratual ou forma para sua execução”.[4]
Por fim, quanto ao parágrafo único do artigo em questão, não se há mesmo de cogitar de qualquer inconstitucionalidade, pois os princípios da função social do contrato e da propriedade são anteriores ao Código Civil de 2002.[5]
Posta a premissa relativa à constitucionalidade da redação do caput do art. 2.035, constata-se que, passados oito anos e alguns meses de vigência do novo Código Civil, a jurisprudência vem-lhe de um modo geral conferindo escorreita aplicação no trato das questões de direito intertemporal, a exemplo do art. 835 que franqueia ao fiador a possibilidade de exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança durante sessenta dias após a notificação respectiva.
Assim é que no âmbito do C. Superior Tribunal de Justiça já se decidiu corretamente que “apenas com o advento do novo Código Civil passou-se a admitir a possibilidade de a notificação realizada pelo fiador poder exonerá-lo da fiança”[6] ou, a contrario sensu, a “simples notificação extrajudicial realizada pelo fiador, na vigência do art. 1.500 do Código Civil de 1916, não o exonera da fiança prestada, uma vez que a exoneração somente poderia se dar por avença ou por sentença judicial”[7] [8].
Consentimos, inclusive, com a interpretação extensiva (não retroativa) conferida ao art. 835 pelo C. Superior Tribunal de Justiça, que permitiu ao fiador a possibilidade de exonerar-se da fiança sessenta dias após a realização da citação, concretizada na vigência do novo Código, em ação de exoneração anteriormente proposta.
Tal entendimento externou-se em caso no qual, ajuizada uma ação de exoneração de fiança ainda sob a égide do Diploma de 1916, a citação aperfeiçoou-se sob o império do novo Código e, por isso, produziu o efeito (a citação) de considerar a fiadora exonerada da fiança após o decurso do prazo de sessenta dias. Entendeu-se, pois, que o ato citatório fez as vezes da notificação prevista no art. 835 do novel Código[9], o que afiguramos correto, pois representa um plus em relação à notificação. De fato, não teria o menor sentido fazer incidir a velha disposição do Código Civil de 1916 que determinava exonerado o fiador somente a partir da sentença[10], quando uma simples notificação posterior estaria apta a produzir idêntico efeito.
Já em outro julgado recente, o C. Superior Tribunal de Justiça, com o devido respeito, equivocadamente considerou válida a fiança prestada pelo marido sem o consentimento da mulher, casados em regime de separação absoluta de bens, em contrato de locação celebrado anteriormente à vigência do novo Código Civil, quando, mercê do disposto no art. 235, III, do Diploma de 1916, referida fiança seria nula[11].
Fundamentou o C. Tribunal Superior nestes termos: “A exigência da prestação não adimplida pelo afiançado feita ao fiador refere-se ao efeito da fiança e, assim sendo, subordina-se aos preceitos do Código em vigor, conforme reza seu art. 2.035, como visto. Tem-se, por isso, que o pacto em questão não é nulo (...)”.[12] Baralharam-se conceitos jurídicos, validade e efeitos, conferindo-se indevidamente validade a algo que nulo nasceu.
De fato, fiança nula não perde a nulidade por força de modificação legislativa, não sendo outra a razão pela qual, em doutrina de direito intertemporal, entende-se que o “suprimento de outorga uxória ou marital, as autorizações e presunções de autorizações são disciplinados pela lei em vigor no momento da realização dos respectivos negócios jurídicos”[13] ou, ainda, que a “validade dos atos ou negócios jurídicos da mulher casada em regra depende da lei vigorante na época em que foram concluídos: por exemplo, fiança ou caução em prol do marido ou de terceiro”.[14]
Por outro lado, merece aplausos o C. Superior Tribunal de Justiça que vem decidindo pela incidência do art. 1639, § 2º, aos casamentos celebrados antes de sua entrada em vigor.[15]
Preceitua o referido dispositivo:
“É admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”
Este enunciado legal, que criou nova possibilidade jurídica do pedido e é de natureza puramente substancial – segundo Galeno Lacerda, a “possibilidade jurídica e a legitimação para a causa se situam na lei material” [16] - merece pronta aplicação, como decidiu a Instância Superior.
Concluindo, à exceção de um ou outro caso específico, os Tribunais têm formulado, a propósito do art. 2.035 do vigente Código Civil, interpretações de conformidade com as autorizadas construções de direito intertemporal, evitando a propagação de instabilidade e surpresas nas relações jurídicas.
André Mattos Soares é mestre em Direito das Relações Sociais e doutorando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
[1] Direito Intertemporal e o novo Código Civil : aplicações da Lei 10.406/2002, 2ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004, p. 84.
[2] Aliás, a respeito do art. 1º-F da Lei 9.494/97, alterado pela Lei 11.960/2009, que preceituou que os juros moratórios, nas condenações impostas à Fazenda Pública, são os aplicados à caderneta de poupança, o C. Supremo Tribunal Federal decidiu por sua pronta aplicação aos feitos em curso (AI 791.897 AgR / RS, Ag. Reg. no Agravo de Instrumento, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 17.05.2011).
[3] Wilson de Souza Campos Batalha, Direito Intertemporal, Rio de Janeiro : Forense, 1980, p. 342-343.
[4] O impacto do art. 2.035 e parágrafo único nos contratos anteriores ao novo Código Civil, Novo Código Civil : questões controvertidas, Série Grandes temas de direito privado, vol. 4, São Paulo : Método, coords.: Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves, p. 474-475. Ver, ainda, os comentários da autora em outra obra: Código Civil Comentado, 6ª ed., ver. e atual., São Paulo : Saraiva, 2008, coord.: Regina Beatriz Tavares da Silva, p. 2.206-2.207.
[5] Maria Helena Diniz, O impacto do art. 2.035 e parágrafo único..., p. 478-480; Antonio Geová Santos, Direito Intertemporal..., p. 85-102.
[6] Recurso Especial 954.560-RS (2007/0117703-3), rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 17.12.2007, DJE 10.03.2008.
[7] Agravo Regimental no Recurso Especial 750643/MG (2005/0080466-0), rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 18.05.2010, DJE 07.06.2010.
[8] Lembrando que a “prorrogação é, na verdade, outro contrato que terá de se submeter ao regramento existente na época de sua celebração” (Antonio Jeová Santos, Direito..., p. 183).
[9] Recurso Especial 1.090.298-SP (2008/0218666-2), rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª Turma, j. 19.02.2009, DJE 16.03.2009.
[10] Código Civil de 1916, art. 1500 – “O fiador poderá exonerar-se da fiança, que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado por todos os efeitos da fiança, anteriores ao ato amigável, ou à sentença que o exonerar”.
[11] “Art. 235. O marido não pode, sem o consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens: (...) III- prestar fiança (arts. 178, § 9º, n. I, ‘b’, e 263, n. X)”. Discorria, à época, Washington de Barros Monteiro: “Se prescindir dessa anuência, contaminar-se-á de nulidade a garantia oferecida” (Curso de Direito Civil, 2º vol., São Paulo : Saraiva, 1997, p. 131).
[12] Recurso Especial 1.088.994-PR (2008/0202096-6), rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, j. 04.12.2008, DJE 02/02/2009. Não pretendemos adentrar na justiça ou injustiça da r.decisão, mas apenas mostrar a equivocada conclusão quanto à validade da fiança, ao menos no tocante ao fundamento consignado.
[13] Wilson de Souza Campos Batalha, Direito..., p. 259.
[14] Carlos Maximiliano, Direito..., p. 86.
[15] A exemplo do Recurso Especial 821807-PR (2006/0036029-5), rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 261.
[16] Teoria Geral do Processo, Rio de Janeiro : Forense, 2008, p. 158.