457 - Voto secreto e voto aberto: possibilidades e limitações


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador 


Prezados leitores, dia 7 de setembro p.p. foi o dia da independência comemorado em todo o Brasil que, como todos sabem, é uma República federativa e democrática. Aliás, como bem lembraram os jovens que saíram às ruas para protestar contra a corrupção. Na semana imediatamente anterior, o que chamou a atenção de todos os brasileiros foi um evento que envolveu  nossa democrática República: o da deputada Jaqueline Roriz, que segundo consta, somente foi absolvida porque a votação foi secreta. Aliás, a indignação  nacional foi enorme por causa do resultado e do modo de votação, o que certamente ajudou a fomentar as passeatas populares do dia da independência. 

Por isso tudo, resolvi desviar um pouco minha atenção da questão do consumidor para tratar do tema do voto secreto que, penso, fica numa espécie de degrau acima dos assuntos  consumeristas, eis que cuida dos direitos dos cidadãos; de uma  forma de exercício da cidadania, afetando, portanto, a base de nosso regime capitalista democrático.

Saio, pois, do plano específico do consumo para pensar com vocês esse  importante tema  de exercício da cidadania, o ser do voto – secreto ou não.

1. Voto Secreto

Princípios e Regras

1.1 Direito-Interesse e Direito-Função

Dispõe o art. 14, incisos e parágrafo 1º da Constituição Federal, “in verbis”:

“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I –   plebiscito;

II –  referendo;

III – iniciativa popular.

§ 1º – O alistamento eleitoral e o voto são:

I –  obrigatórios para os maiores de dezoito anos;

II – facultativos para:

a) -  os analfabetos;

b) -  os maiores de setenta anos;

c) -  os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.” 

Fixemo-nos, para nossa avaliação, apenas no inciso I do § 1º: é obrigatório o voto para os maiores de dezoito anos.

Como a Constituição prescreveu a obrigação de votar, o voto é, no Brasil, um direito do cidadão, mas também um dever.  É a junção do chamado direito-interesse e do direito-função numa só possibilidade de exercício.

O direito garantido tem característica de direito-interesse quando seu titular o exerce em benefício próprio. Por isso, é também conhecido como direito-poder ou direito-prerrogativa, exercido a partir da ação do titular, lastreada no seu juízo e na sua vontade.

O direito-função é aquele exercido por alguém em benefício de um terceiro. Por exemplo, o pátrio-poder é exercido pelos pais em função dos filhos. O titular do direito-base é o filho, mas quem tem capacidade para exercê-lo são  os pais.

O voto, de forma híbrida, é um direito misto interesse e função, pois ele é um direito do cidadão, exercido também em função do Estado.

Tornando-o obrigatório, o Estado quer se assegurar do aspecto “função”, que “lhe pertence”. Porém, o aspecto interesse também permanece e surge aquilo que importa: a Constituição Federal assegura amplo exercício desse direito do cidadão ao garantir o voto secreto.

É importante um parêntese aqui para apontar dois pontos: a) apesar de ser secreto e assim garantido, não há impedimento ao cidadão de que ele declare seu voto publicamente. O voto secreto é garantia e, portanto, prerrogativa  que o cidadão, se quiser, abandona, podendo declarar abertamente o voto que deu ou dará; b) seria mais lógico, como se defende, tornar o voto apenas um direito, pois sendo um dever e garantindo-se a liberdade de votar  em quem quiser, muitos votos — especialmente brancos e nulos — são apenas perda de tempo e dinheiro do cidadão e do Estado.

1.2   A garantia da liberdade

Por que se assegura o voto secreto?

Fundamentalmente para garantir que o mesmo seja “livre”.

O termo “livre” no caso significa o seguinte:

a) que o cidadão tem resguardado um espaço público inviolável (a urna indevassável) para exercer o direito-dever de votar;

b) que o cidadão tem resguardado um espaço “íntimo” (a consciência: juízo e vontade) para decidir o que fazer com seu voto;

c) que se pretende garantir ausência de oposição e/ou impedir tentativa de pressão por parte de terceiros junto ao cidadão, capaz de influenciar seu voto.

Em função dessas características, podemos afirmar que o cidadão tem no voto secreto a garantia de que só deve satisfações sobre o voto a si mesmo; à sua consciência. É essa a função do ser secreto do voto: garantir que o cidadão tenha seu juízo e vontade resguardados.

2. Voto Aberto

2.1 Prerrogativa do titular

Conforme já disse, a obrigatoriedade do voto tem relação com sua função: o cidadão deve exercer o voto para satisfazer o direito do Estado.

Vimos, também, contudo, que esse dever é apenas de forma e não de conteúdo, isto é, a obrigação atinge o ato de votar, porém não atinge o conteúdo do voto. Este é livre, podendo o titular fazer com o conteúdo o que bem entender: a) escolher o candidato; b) votar em branco; c) anular o voto.

Conclui-se, então, que a garantia da liberdade do conteúdo é assegurada pelo fato do voto ser secreto. Esse fato, portanto, é direito-interesse do titular. Mas, veja-se bem: não há qualquer relação no fato do voto ser secreto com a característica de direito-função. O voto secreto é direito apenas e tão somente do titular. Como ele é um direito-interesse, está claro que é uma prerrogativa sua. É, também, por isso, um direito subjetivo seu.

Dessa maneira, sendo um direito-interesse, direito-subjetivo ou prerrogativa, pode o titular, se quiser, abrir mão desse direito e declarar o voto abertamente. Ou, em outras palavras, pode o titular colocar publicamente o conteúdo de seu voto, porque esse conteúdo pertence apenas a ele. Sua declaração pública é uma mera decorrência do direito estritamente pessoal que lhe assiste.

2.2 O conteúdo do voto e a questão da verdade

Faço uma pergunta: como saber que o voto declarado publicamente  corresponde ao conteúdo do voto secreto, isto é, como saber se a declaração de voto é verdadeira?

Pensemos uma hipótese: João de Deus escolhe na urna eletrônica (ou na falta dela, preenche na cédula eleitoral)  o nome do candidato José da Silva.  O ato de  votar transcorre normalmente: secreto e livre.

João de Deus resolve declarar publicamente seu voto.

Como poderemos dizer que  a declaração pública do voto do João de Deus é verdadeira?

Sem querer aprofundar o estudo sobre a questão da verdade, posto que isso aqui é desnecessário, ninguém duvida que ela só aparecerá se João de Deus declarar que votou em José da Silva. Sua declaração somente será verdadeira, portanto, se sua declaração pública de voto for a mesma do conteúdo do voto inserido na urna. Se João de Deus declarar publicamente que votou em Frederico de Souza, estar-se-á diante de uma mentira. Mas, como saber se a declaração de voto é verdadeira ou falsa?

Não há como saber.

Como se está diante de duas prerrogativas:  a) a de votar em quem quer que seja livremente,  e mesmo anular o voto ao deixá-lo em branco; b) a de declarar publicamente o voto;  não existe forma de um terceiro saber se a declaração é verdadeira ou não. A própria condição de verdade converte-se em prerrogativa do titular, e assim, somente ele e mais ninguém saberá o que fez.

Não há como impedir, portanto, que alguém vote em José da Silva e declare que votou em outro candidato.

3. O Voto por representação

3.1 O que ocorre num mandato

O mandato é o ato jurídico através do qual alguém recebe de outrem — que lhe outorga — poderes para em seu nome agir.

É uma representação ou delegação convencional — ou legal — na qual o outorgado pratica atos em nome do outorgante, e que terão repercussão concreta no mundo jurídico.

Os atos que podem ser praticados pelo mandatário são aqueles geralmente estabelecidos no momento da outorga, sendo que esta pode ser  escrita ou verbal.

Dentre as características do mandato, a doutrina jurídica coloca a do “intuito personae”, isto é, aquela que diz respeito à idoneidade técnica e moral do mandatário, isto é, sua condição pessoal. Ou, em outras palavras, é característica do mandato haver confiança entre os contraentes, especialmente do mandante ao mandatário:  presume-se que, em função da outorga, o mandante confia na capacidade pessoal do mandatário para exercer  o mister para o qual foi nomeado. É por isso que se apresenta como exemplo de revogação do mandato a falta de confiança entre os contraentes.

Uma outra característica jurídica, tratada pela doutrina e também pela jurisprudência, é a de que o mandato tem relação com  representatividade. O mandatário é o representante do mandante e, quando age diante de terceiras pessoas, age em seu nome; representa-o. Por isso, a jurisprudência tem dito que os atos do representante só vincularão o representado se praticados em seu nome, dentro dos limites do instrumento, ou seja, dentro dos poderes conferidos no ato da outorga.[1]

Aliás, a propósito, o caráter de representação é típico nas entidades associativas e de classe, assim como das Assembléias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado Federal etc.

3.2 O voto secreto como ato decorrente de mandato ou representação

O voto como o exercício decorrente de um direito pode ser delegado se a lei não o proibir: o cidadão está impedido de nomear procurador para exercer o direito de votar nas eleições para os cargos públicos, como por exemplo, os de vereador, deputado e senador; esse é um direito que ele não tem. Como dito, se houver permissivo legal ou convencional — estatutário —, ou não houver proibição, o próprio voto, ele mesmo, pode ser objeto de delegação por mandato.

Neste ponto é de se colocar uma pergunta relacionada ao conteúdo do voto: está o mandante obrigado a definir o que fazer ou em quem o mandatário deve votar? A resposta é não. Como a própria delegação do voto é uma prerrogativa, seu conteúdo também o é. Logo, o mandante pode deixar a cargo do mandatário definir o que fazer com o voto, a critério dele.

Visto isso, a próxima indagação está relacionada ao ser secreto do voto: já que o mandante tem a prerrogativa de transferir o poder decisório do voto para o mandatário, pode ele outorgar poder para que o voto seja secreto? Ou, em outras palavras, pode ele abrir mão de conferir  o resultado real, prático e visível do exercício do mandato?

Sim, mas naturalmente, essa situação vale quando se está  tratando de direito individual, no qual a renúncia implica um ato de liberdade decorrente da prerrogativa pessoal do mandante. Porém, a questão muda de figura quando o direito que está em jogo é coletivo, como no caso do mandato exercido pelo parlamentar. Mesmo que  quisesse,  o cidadão não poderia abrir mão desse direito de checar a execução do mandato.

Com efeito, o mandatário do voto popular representa não só aqueles que nele votaram mas também toda a coletividade. O mandato, quer seja de vereador, deputado ou senador é exercido em prol da comunidade. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, o voto proferido pelo parlamentar não lhe pertence, ainda que uma pessoa física exerça o mister. É que, tratando-se de um papel social público de representação, como é o do membro do legislativo, a pessoa nele investida quando por ele atua age em nome da população.

Ora, todo e qualquer cidadão tem o direito que decorre do exercício da cidadania, de não só saber como atua seu representante como cobrar dele as ações que entende adequadas. Afinal ele é eleito para exercer o “munus” público essencial do cargo.

Se no exercício desse cargo público ele agir secretamente, via voto secreto, suprime-se o sagrado direito da população de controlar seus atos.

É verdade que se tem objetado que o voto secreto protege o parlamentar porque ele assim fica imune a pressões. Todavia, é preciso colocar que, em primeiro lugar, exercer cargo público tão relevante implica necessariamente a assunção do risco de se expor publicamente: é ônus do próprio cargo. E, depois, o que é mais importante: o mandatário da coletividade tem que estar sujeito à influência das pessoas, posto que isso é inerente ao pleno exercício de uma democracia. De pouco adianta nomear um representante se não se pode saber o que ele está fazendo com o mandato outorgado.

Do ponto de vista lógico da plenitude da democracia e mesmo da justiça essa parece ser a melhor posição. É impossível para a coletividade controlar os atos de seu representante se ele os pratica às escondidas. O elemento garantidor de liberdade que existe quando se trata do exercício de voto do cidadão nas eleições públicas  inverte-se, passando a ser exatamente o contrário no caso do eleito: uma garantia de voto secreto possibilita acordos escusos em detrimento do representado. E este, não tendo como controlar o resultado do exercício do mandato conferido, fica apenas com a palavra do mandatário, que, como vimos no item 2.2 retro, pode não ser expressão da verdade. 

12/9/2011



[1] Conf. RT 499/252 e 495/232.


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