459 - Direito à moradia
MARIA FERNANDA DE TOLEDO RODOVALHO – Juíza de Direito
No último dia 10 de agosto, o CAJUFA, Centro de Apoio aos Juízes da Fazenda, convidou, por sugestão do Dr. Adriano Laroca, a Professora Raquel Rolnik, Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
A partir desse encontro, pode-se questionar mais um aspecto a respeito da aplicação dos direitos fundamentais.
A ampliação desses direitos é a característica mais marcante da Constituição de 88, não apenas porque indicados como fundamento da República (dignidade humana), longamente elencados no art. 5º, mas também e, sobretudo, já que aqui se mostra a vocação primária da Constituição, porque é a própria carta que o declara que outros direitos mais abrangentes, contidos em tratados internacionais não estão excluídos; podem vir a se incorporar ao ordenamento brasileiro.
Essa ampliação evidencia a importância que é reservada ao Poder Judiciário – é no âmbito judicial que se reclama a proteção aos direitos fundamentais.
No entanto, a aplicação desses direitos é bastante mais complexa do que se pode supor. Muitas vezes, há contraposição entre direitos, igualmente merecedores da mesma proteção constitucional.
A proteção ao meio ambiente, por exemplo, pode contrastar com a garantia do direito à moradia.
Não são desconhecidas das Varas da Fazenda as disputas pela remoção de famílias de áreas de proteção ambiental. Nesses casos, o que se tem considerado é a preponderância do interesse público sobre o privado: o meio ambiente, interesse da comunidade atual e futura, parece mais frágil diante da degradação pela presença humana.
A questão é mais complexa, porém.
A proteção ao direito de moradia é da mesma maneira objeto de proteção constitucional. E mais do que isso, a redução da desigualdade é fundamento do Estado de Direito.
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia...”
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”
Afora isso, também em pactos internacionais, como a Declaração dos Direitos Humanos, contempla a proteção à habitação.
Daí se nota que a preponderância de um interesse sobre outro não é tão evidente. Ou antes – talvez não se apresente como se imagina.
Essa chamada antinomia de princípios deve ser aferida e resolvida pontualmente. Não é possível estabelecer-se uma regra geral que fixe qual princípio é superior ao outro. A superioridade é conjuntural, derivada da ponderação dos riscos concretos da aplicação de um princípio em detrimento do outro.
Robert Alexy assim explica:
(...) Esta relación de tención no podía ser solucionada en el sentido de una prioridad absoluta de uno de estos deberes del Estado, ninguno de ellos poseería “prioridad sin más”, Más bien, el “conflicto” debería ser solucionado “a través de una ponderación de los intereses opuestos”. En esta ponderación, de lo que se trata es de la ponderación de cuál de los intereses, abstractamente del mimsmo rango, posee mayor peso en el caso concreto: (…) Esta situación de decisión responde exactamente a la colisión de principios. Las diferencias son sólo de tipo terminológico. No se habla de una “colisión sino de un “campo de tensión” y de un “conflicto” y aquello que entra en colisión y entre lo que hay que ponderar no es designado como “principio” sino como “deber”, “derecho fundamental”, “pretensión” e “interés”. Es perfectamente posible presentar la situación de decisión como una colisón de principios. Ella se da cuando se habla, por una parte, de la obligación de mantener el mayor grado posible de aplicación del derecho penal y, por otra, de la obligación de afectar lo menos posible la vida y la integridad física del acusado. Estos mandatos valen relativamente con respecto a las posibilidades fácticas y jurídicas de su cumplimiento. Sis tan sólo existiera el principio de la protección de la vida y de la integridad física, estaría prohibida la realización de la audiencia oral. Tomados sen sí mismos, los dos principios conducen a una contradicción. Pero esto significa que cada uno de ellos limita la psibilidad jurídica de cumplimiento del otro. Esta situación no es solucionada declarando que uno de ambos principios no es válido y eliminandolo del sistema jurídico. Tampoco se la soluciona introduciendo una excepción en uno de los principios de forma que tal que en todos los casos futuros este principio tenga que ser considerado como una regla satisfecha o no. La solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta las cirunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de precedencia condicionada. La determinación de la relación de precedencia condicionada consiste en que, tomando em cuenta el caso, se indican las condiciones bajo las cuales un principio precede al otro. Bajo otras condiciones, la questión de la precedencia puede ser solucionada inversamente.
(ALEXY, Robert, Teoria de los Derechos Fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1997, p. 88 a 90, destaques no original).
Assim, a questão de remoção de famílias de áreas de proteção ambiental é uma questão a ser decidida caso a caso.
Ainda que se objete que essa casuística acaba por conferir ao julgador um poder político, não se deve perder de vista que a judicialização da política não é um fenômeno novo, mas seus limites foram alargados com a Constituição de 88.
Como ao juiz não é dado não decidir por não conveniência – o chamado princípio do non liquet – talvez a melhor solução seja a de oferecer novas possibilidades de conciliação entre as partes.
Pode ser que a conciliação não seja o que se tradicionalmente espera na resolução de conflitos, mas, para a Carta de 88, a inovação dos direitos fundamentais abre espaço para um juiz não tradicional, um juiz que esteja disposto a novas formas de realização de direitos.