463 - O autoritarismo da Fifa, o capitalismo, o direito do consumidor e a soberania nacional


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador


Prezado leitor, num dia da semana passada acordei com  uma sensação estranha... Será que perdi alguma coisa? O país não é mais soberano? Será possível que alguma empresa estrangeira ou organização internacional possa pedir que modifiquemos nossas leis para seus interesses particulares? Estamos ou não numa República Democrática?

Na noite anterior, eu havia recebido um telefonema de meu amigo Walter Ego, que pedia que eu lesse urgentemente as notícias sobre a Fifa e o Código de Defesa do Consumidor. Ele sabe o que eu penso da Fifa – esse grande conglomerado empresarial que manda em governos e causa milhões em prejuízos às populações que explora. Disse-me ele: “Eu fico muito preocupado como torcedor, mas como você já acertou antes, veja se isso é possível”. Ele se referia ao episódio recente, no qual o Ministro do Esporte, Orlando Silva, informou que a Fifa teria pedido para que o governo brasileiro suspendesse (SIC!?) o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e o Estatuto do Torcedor e também que permitisse a venda de bebidas alcóolicas nos estádios! 

Ele também se referia a dois artigos que eu publiquei  no site do Terra  sobre o tema: um  em 17 de maio de 2010, antes da Copa do Mundo de Futebol, e outro em 5 de julho de 2010, durante a Copa. Neles eu analisava o futebol como negócio e dizia por que é que eu acreditava que o Brasil não ganharia aquela disputa e também por que seriamos campeões em 2014. (veja trechos dos textos ao final).

E, depois, W. Ego acrescentou: “Será que virão mais exigências? Será que os cartolas da Fifa pedirão imunidade fiscal? Será que pedirão para cancelar o Código Penal, talvez para poderem cometer crimes à vontade? E o Código Civil ainda estará em vigor na época da Copa? Será que pedirão para aumentar a velocidade nas estradas para que as pessoas possam chegar a tempo aos estádios? Talvez possam aumentar o limite para 200 km/hora, já que tem muito carrão por aí... E, como querem liberar a bebida alcóolica nos estádios será a copa dos bêbados e das batidas e de tantas outras violações numa terra sem lei ”.

Walter Ego estava atônito. Mas, não era para menos. Poucas vezes vi algo tão absurdo e ridículo como esse anúncio de que a Fifa quer que se suspendam leis para que ela possa aqui entrar e violar os direitos estabelecidos dos  consumidores  brasileiros e estrangeiros. Permitir a venda de bebidas alcóolicas nos estádios? É tudo inacreditável. Parece piada, mas  não é! E, aliás, foi anunciado como uma espécie de pedido normal e possível.

Desde que a Fifa tornou-se de fato uma grande empresa internacional, os abusos não pararam. O problema está, em parte, no modelo. Infelizmente, meu caro leitor, quase tudo que se apropria do modo de produção capitalista contemporâneo e seus modelos de controle, invasão, corrupção, enganação,   apodrece . A maior parte dos empresários desses tempos globalizados é gananciosa e só visa o lucro, custe o que custar. Como já referi várias vezes, sua grande arma de ataque para a tomada do mercado – esse bem que não lhe pertence – é o marketing, cuja ponta de lança é a publicidade.

E, esse império materialista do mercado, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por  imiscuir-se em setores antes imunes. Veja o exemplo dos esportes ditos amadores: A Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, e a propósito, a Fifa, hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços.

Como também já referi e foi dito por Octávio Paz, “o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores”. É fatal: neste capitalismo deve haver resultado financeiro, não importando se o produto é bom, se funciona adequadamente, se as promessas da publicidade serão cumpridas. O que vale é a  meta. E, nesse sentido, a Fifa tem um poder só comparado às grande corporações do planeta. Ela consegue impor a governos e nações seus interesses, seus modelos, seus estádios. Ela consegue determinar quanto de gasto os países farão em prol dela, isto é, em prol de seu faturamento crescente. E isso, mesmo que as populações locais estivessem precisando de outros bens.

Claro que, tudo isso é feito com muito marketing e moderna publicidade, mexendo com a paixão dos torcedores, fazendo com que eles acreditem que o resultado de um jogo ou de um campeonato resolverá muitos problemas e que trará orgulho e benefícios à nação. Aliás, muitas vezes, a publicidade é claramente abusiva: que exemplo dão esportistas que fazem publicidade de cerveja? Uma cervejaria sendo patrocinadora oficial de um evento esportivo: Um irresponsável estímulo à ingestão de bebidas alcoólicas. Só o cinismo e o dinheiro poderiam explicar.

Tudo muito moderno, com tecnologia de ponta e seus atualizados sistemas de vendas. Tudo muito moderno, menos o próprio jogo de futebol. Neste,  continua-se negando a possibilidade de uso da tecnologia. E sobre este assunto, o Walter Ego lembrou-me uma teoria sobre o porquê desse atraso ou dizendo de outro modo: Por que o jogo de futebol não se moderniza? Por que não se usa tecnologia para fazer as regras serem cumpridas? A bola entra e o Juiz não dá o gol. Isso continuará até quando?

Essa outra teoria diz que a não modernização no jogo de futebol nada tem a ver com seu movimento e o espetáculo, mas sim com a perda do poder de manipulação. Afinal, se não se puder mais dar gols impedidos, anular gols legítimos, expulsar jogadores indesejados etc, se perderá uma boa maneira de interferir nos resultados.

De minha parte, espero que haja algum dia alguma pressão da opinião pública para que o futebol passe a ser um jogo mais real, honesto e verdadeiro. A tecnologia ajudaria, sem tirar a graça do espetáculo. Mas, volto à questão da violação à tentativa de modificação das leis democraticamente estabelecidas no Brasil.

O pleito seria patético se não desse medo. Medo de que possa vingar, de que possa ser concedido de algum modo para nossa extrema vergonha. Fazendo isso estaremos atrasando o atingimento de nossa maturidade democrática e estaremos perdendo soberania.

Indignemo-nos, pois!

10/10/11

PS.: Transcrevo a seguir trechos de meus artigos referidos.

De 15/5/2010:

Há uma outra teoria que pretende explicar um eventual fracasso da seleção brasileira na Copa:

O futebol, na atualidade, é um dos maiores negócios do mundo. Adotando os modelos das grandes corporações da sociedade capitalista contemporânea, os cartolas conseguiram criar um modelo de oferta de entretenimento altamente rentável.

Não me alongarei aqui, mas veja, nesse exemplo, a inteligência dos formatos dos vários tipos de competições existentes. A disputa entre os times é mais ou menos sem fim. Todos concorrem a alguma vaga, ou no grupo dos 4 ou dos 8 de cima ou dos 4 ou dos 8 de baixo e, mesmo não vencendo, conseguem se classificar para outras competições ou, pelo menos, não são rebaixados. E, até nas competições de baixo, a disputa segue o mesmo padrão etc. Tudo a fazer com que os consumidores, isto é, os torcedores, fiquem praticamente o tempo todo do ano ligado nos jogos de seu time, num espetáculo sem fim, cujo objetivo maior é faturar.

A Copa do Mundo de Futebol, além de um grande espetáculo, é, de fato, um enorme negócio que envolve bilhões de dólares. Está em jogo um grande lucro dos empresários envolvidos no negócio financiados pelos patrocinadores, afetando os meios de comunicação televisivos , os fabricantes de roupas e calçados, os editores etc. 

Não fica bem, dizem, que o Brasil possa ser campeão muito mais vezes que os outros países, pois, certamente, isto traria desânimo aos torcedores, o que pode significar prejuízos aos patrocinadores e demais agentes empresariais globais envolvidos. É preciso que haja maior equilíbrio de forças entre as seleções. Não é bom para os negócios que o Brasil fique muito à frente.

Por isso, pode vir bem a calhar a formação de uma seleção que não contemple os melhores jogadores. Quem sabe o Brasil perca para o bem do campeonato e dos bilhões envolvidos. Nós continuaremos a ser o maior celeiro produtivo de craques que existe, mas isso foi assimilado e transformado em dólares e, portanto, aceito.

Mas, vencer de novo, ah!... Isso já é demais, fora o prejuízo.

E a teoria lembra que a próxima Copa do Mundo será no Brasil. Nós vamos ganhar essa e perder a próxima, confirmando o fiasco de 1950? Ou vamos ganhar esta e a próxima? Tudo isso? Parece demais mesmo. É bom nos contentarmos em perder essa para podermos ganhar a próxima aqui no Brasil.

Se quisermos, podemos torcer contra a teoria. Evidente que, se o Brasil ganhar esta Copa do Mundo – que é o que todos nós esperamos – essa teoria não vela nada.

Mas que faz pensar, faz.

De 5/7/2011:

Terminou o jogo do Brasil versus Holanda e os locutores passaram a dizer que, afinal, se tratava apenas de um jogo de futebol. Apenas um jogo de futebol. Ora bolas (perdão pelo trocadilho), não é assim que a publicidade vende o campeonato mundial. Ao menos aos torcedores-consumidores brasileiros, é vendido muito mais que um jogo, é vendida esperança de dias melhores, de uma sociedade mais humana, de melhores condições de vida, de uma nação mais sadia, vitoriosa no plano internacional. É vendida uma alegria de viver. E, funciona: as pessoas realmente acreditam; ficam mais simpáticas; cumprimentam-se mais; a bandeira do Brasil sai do armário (em nenhum momento ela é mais exibida que durante a copa); as pessoas se enchem de esperança de dias melhores; ficam ansiosas para chegar o dia da vitória, quase como se estivéssemos numa guerra. Tudo muda:  as escolas fecham antes da hora, os serviços param, a produção cessa em muitos setores, a cidade de São Paulo com seu caótico e dos piores trânsitos do mundo, fica com suas ruas desertas. É uma catarse, não um jogo de futebol.

Acontece que, é exatamente isso o que desejam os patrocinadores e os dirigentes esportivos. Eles querem que os torcedores-consumidores acreditem e comprem seus produtos, suas camisas, seus calçados, suas bolas, os produtos dos patrocinadores. Os consumidores guiados por eles cumprem a determinação buscando preencher o espaço da promessa. (Não é de agora que o capitalismo vende esperança junto de seus produtos).

O que realmente importa é a receita e o lucro. Empresários, cartolas, técnicos, jogadores, todos faturam alto às custas desses produtos bem vendidos e administrados. Hoje, até os jogadores são produtos, criados desde pequenos para poderem valer algo no futuro do mercado futebolístico.

Do ponto de vista psicológico, se o time do Brasil ganhasse já seria frustrante, porque, evidentemente, as condições de vida das pessoas de nenhuma sociedade melhoram apenas porque seu time venceu um campeonato de futebol. Perdendo, frustra mais rapidamente e também entristece, deprime de certo modo.

Mas, querido leitor, não perca a esperança, pois o campeonato de 2014 já está sendo anunciado, quem sabe com novo técnico, novos jogadores – talvez até os melhores sejam dessa vez convocados (Na teoria da coluna de 17 de maio disse que em 2014 o Brasil há de vencer e dei os motivos. Tomara!). Só espero que a reforma e a construção dos estádios impostos pelos empresários da Fifa não impeçam a construção de novos leitos hospitalares, nem reajustes e aumentos salariais para quem tiver direito, nem que se deixe de investir em segurança pública etc (um longo etc).


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