466 - Halloween: o controle e a alienação dos consumidores


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador                        


Trato novamente deste assunto pela importância que ele tem não por sua existência no Brasil, mas porque demonstra os modos de controle que o mercado exerce sobre os consumidores em geral, bem como a dificuldade que existe para a tomada de consciência da possibilidade de libertação das amarras tão bem engendradas pelo capitalismo contemporâneo. Pois bem. Está aqui mais um dia das bruxas. Ao que parece, já é parte do calendário comercial e, o pior de tudo, é que muitas escolas aderiram!

Halloween no Brasil? São as “bruxas e bruxos” do marketing, que sempre aproveitam alguma coisa para faturar e, no caso, uma gorda receita, vendendo bugigangas, doces e mais porcarias para nossas crianças.                              

É verdade que, algumas escolas, não conseguindo fugir do evento, estão começando a fazer atividades didáticas e lúdicas, sem o emporcalhamento de doces e guloseimas oferecidos em grandes quantidades e sem nenhuma função de educação ou saúde. Mas, é pouco, pois, infelizmente, tudo indica que o tal dia das bruxas, famoso nos Estados Unidos, instalou-se entre nós, alegre (ou macabro) e impunemente.                             

Tive oportunidade de mostrar que Ignácio Ramonet, no livro Guerras do Século XXI (Petrópolis: Vozes, 2003), diz que o novo sistema de controle dos grandes países poderosos não é mais o de territórios, mas o de mercados. Aliás, são as grandes corporações que controlam as forças internas desses países desenvolvidos pela via do mercado, de modo que elas e esses países visam por esse meio (o do mercado) ao controle dos mercados (e das sociedades) do mundo inteiro.

Essa forma de domínio, no final do século XX e início do XXI,  passou a se imiscuir em praticamente todas as atividades humanas, transformando em evento comercial qualquer comemoração.               

Pensemos a questão do Halloween no Brasil. O que, afinal de contas, as crianças brasileiras têm a ver com essa festa pagã? Nada. Trata-se de uma importação sem qualquer fundamento ou justificativa local. É agora apenas algo que o mercado deseja. Para se ter uma idéia do que está em jogo, nos Estados Unidos, a festa do terror, das bruxas e dos fantasmas já se tornou o segundo maior momento de faturamento do mercado, perdendo apenas para o Natal.  

Lembro da reclamação de meu amigo Walter Ego: há três anos no fim de outubro, ele estava na casa de parentes num condomínio fechado do interior de São Paulo, quando bateram à porta  crianças fantasiadas de bruxas, caveiras, duendes e o que o valha. A porta foi aberta e eles disseram: “travessuras ou gostosuras”.  E lá foram os parentes de meu amigo entregar saquinhos que tinham previamente preparado com doces, balas e chocolates. E depois daquelas crianças vieram muitas outras. “Uma grande bobagem”, reclamou W. Ego.                

Na época, depois dele me contar o episódio, eu, brincando, objetei que já tínhamos a Páscoa e mais ainda o Natal, este que, por muitos anos – e ainda até hoje – faz, por exemplo, com que comamos, em pleno calor tropical, comidas gordas, doces, frutos secos, nozes etc, alimentos típicos de lugares frios, de onde a festa foi importada. “É verdade”, disse ele. “Mas, isso se deu em outros tempos. Eu pensava que atualmente nós pudéssemos lutar contra esse tipo de imposição; que poderíamos resistir”.

Sim, talvez pudéssemos. Há mesmo um início de tomada de consciência a respeito do controle exercido pelo mercado, algo que vem se esboçando desde fins do século XX. O consumidor, considerado como tal – algo que ficou bem estabelecido a partir da mensagem enviada ao Congresso Americano em 15-3-1962 pelo então Presidente John Kennedy – pôde começar a se perceber como alvo dos fornecedores em geral e até do próprio Estado produtor. E, assim, aos poucos, passou a reclamar e reivindicar direitos. Passou a poder resistir às tentações e determinações unilaterais. Mas, ainda não consegue fazê-lo em larga escala. Aliás, essa questão do Halloween no Brasil oferece uma boa oportunidade para o exame de como as coisas são feitas. É que estamos ainda no nascedouro de uma imposição mercadológica.

No meu tempo de criança ou adolescente (há quarenta anos) seria impensável um dia das bruxas no Brasil. Não sei quando começou. Mas, possivelmente há cerca de dez ou quinze anos, alguma escola de inglês deve ter feito a programação para seguir o ritual norte americano. Depois, no ano seguinte mais um escola e mais outra etc. Com  a importação via tevê à cabo e também tevê aberta de cada vez mais enlatados americanos que reproduzem a festa (Basta ficar com o exemplo famoso do grande filme de Steve Spielberg, E. T., no qual o evento é retratado), aos poucos, os brasileiros foram se acostumando com a festa, como se a mesma também fizesse parte de nossa realidade. Daí, mais um ano, e a festa foi feita em escolas; depois em baladas de adultos e, enfim, chegou o momento em que parece que ela tem a ver conosco. Atualmente, nas tevês a cabo, nos canais de programas infantis, são apresentados programas específicos somente sobre a festa. Evidentemente, o mercado, sempre de olho nas oportunidades, deu sua contribuição e eis que temos entre nós crescendo vigorosamente uma festa importada, sem qualquer fundamento cultural e mesmo sem sentido ritualístico.

Dá para resistir?  No Estado de São Paulo e também na capital, há leis oficializando o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, como uma tentativa de se opor ao Dia das Bruxas, já que o Saci é tipicamente Nacional, pertencendo a nosso folclore e tradições. Há também na Câmara Federal projeto de lei para instituir o Dia Nacional do Saci e existe até uma associação intitulada SOSACI – Sociedade dos observadores de Saci (www.sosaci.org). São, penso, tentativas  válidas. Mas, é pouco. A resistência real e que poderia funcionar deve vir do próprio consumidor, especialmente os pais, que podem explicar aos menores o que é a festa e porque não participar dos eventos. As escolas devem fazer o mesmo e, claro, os pais poderiam pressioná-las a não produzirem esse tipo de comemoração.

Repito o que disse acima: se ainda existisse algum significado simbólico ou ritualístico na festa, vá lá. Mas, nem as crianças-vítimas ou seus pais sabem do que se trata. É apenas um momento de gasto inútil de dinheiro em fantasias, doces e gorduras, contribuindo para cáries e a obesidade infantil.

O que conseguimos observar, é que cada vez mais nossa cultura (e a sociedade brasileira) vai cedendo espaço àquilo que não nos pertence. Aos poucos e continuamente, vamos preenchendo nossos espaços com tradições de outros povos – como já fizemos e muito -- e que, nesse caso, sequer é algo relevante, pois se trata de uma evidente imposição do mercado oportunista que, como já disse, só pensa em faturar.

O processo é lento, mas constante. Aqueles que atuam no mercado são espertos o suficiente para entender um pouco a alma do consumidor e acabam descobrindo a necessidade de preencher os espaços existentes no lar, no convívio doméstico, na relação entre pais e filhos. Daí, na presente hipótese, oferecem, com essa  estranha  comemoração,  mais uma boa desculpa de ocupação desse tempo, que fica, como quase sempre, intermediado pelo dinheiro gasto. É o consumismo enlatado e alienante, esteja ou não de acordo com nossas tradições e nossas leis.

 

31/10/2011


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