467 - Será que todo consumidor quer mesmo ser protegido?


LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador


Prezado leitor, às vezes eu me pergunto: será que todo consumidor quer mesmo ser protegido? Veja o que aconteceu com meu amigo Walter Ego há algum tempo. Ele morava num condomínio de casas numa cidade próxima da capital de São Paulo. Certo dia, viu numa revista um anúncio de uma liquidação que estava sendo feita por uma loja da qual ele era cliente há muitos anos. Era um estabelecimento no bairro de Moema, que vendia – e, aliás, ainda vende – sapatos, bolsas, cintos etc.

W. Ego falou com a esposa e no sábado, ele foi para São Paulo fazer compras, indo diretamente àquela loja. Foram ele, a esposa e, também, a sogra e a cunhada, que por acaso faziam-lhes uma visita e, ainda, sua filha à época de colo, com pouco mais de um ano. “Eu e quatro mulheres”, disse ele. Na viagem, eles gastaram quase duas horas.

Lá chegando, ele, com a filha no colo, dirigiu-se ao andar superior, onde se encontravam os produtos masculinos e as demais mulheres ficaram na andar térreo examinando as ofertas de produtos femininos. Ele demorou a encontrar sapatos que servissem e, quando desceu, viu que a esposa e as demais já aguardavam do lado de fora à porta – a loja estava cheia demais e elas haviam resolvido ir a outro lugar; só esperavam por ele.

Muito bem. Ele foi para a fila à frente dos caixas: era uma fila única em ziguezague. Na entrada da fila, havia um rapaz que fazia a triagem das compras. W. Ego entregou sua sacola com um par de sapatos e um cinto. O funcionário passou sobre a etiqueta um leitor ótico e perguntou; “O Senhor vai pagar com  cheque ou cartão maestro?”. Meu amigo respondeu: “Nenhum dos dois. Pagarei com meu cartão mastercard”. O rapaz, então, disse “Bom, o senhor não pode comprar porque só aceitamos cartão maestro ou cheque após consulta”.

Sabe, querido leitor, meu amigo Walter Ego é daqueles que o tempo todo luta por seus direitos (Não deveria ser assim com todo mundo?). E ele diz: ”Para exercer direitos é sempre muito importante não ficar nervoso, não levantar a voz, manter a calma... Não é bom gritar, pois fica parecendo que a gente não tem razão”.

Assim, depois da negativa do funcionário da loja, ele calmamente disse: “Olha,  eu demorei duas horas para chegar aqui e, saiba você,  que eu levarei este sapato e este cinto. Por favor, chame o  gerente”. O rapaz quis resistir e dizer não, mas a voz de meu amigo era tão calma e seu olhar tão penetrante que ele sequer ousou. Passados três ou quatro minutos, chegou uma senhora, se apresentando como gerente, bradando algo em tom de pouca amizade. W. Ego se apresentou e disse: “Minha senhora, recebi em minha casa, no interior, uma propaganda deste estabelecimento anunciando a liquidação. Decidi, então, vir até aqui com minha família para fazer compras. Esta aqui é minha filha!...”. A mulher, por enquanto, apenas olhava e ouvia. Ele continuou: “Olha, não havia no anúncio qualquer referência a que as compras somente poderiam ser pagas com cartão maestro ou cheque. Aliás, nem aqui na loja vejo isso anunciado. Mas, eu irei levar estas compras...”

Ele foi bruscamente interrompido pela gerente: “Olha aqui, não quero saber de seus problemas. Aqui só recebemos cartão maestro ou cheque. Também posso aceitar dinheiro. Se o senhor tem um deles tudo bem, senão pode ir embora!”.

A mulher já havia perdido as estribeiras, mas W. Ego não se abalou. Ele, com uma fala mansa, simplesmente disse: “Minha senhora, esta loja está violando o Código de Defesa do Consumidor por falta de informação, mas eu tenho a solução. Basta  a senhora anotar meus dados, emitir uma duplicata em meu nome com vencimento à vista ou para segunda-feira, emitir um boleto ou me passar os dados da conta corrente da empresa, que na própria segunda-feira eu pagarei”.

A mulher ouviu e em seguida deu uma gargalhada histérica e falou: “De jeito nenhum. Pode ir andando...”. Meu amigo, inabalável, disse: “Olha, o caso é de crime tipificado no artigo 66 da lei 8078/90. Eu chamarei e a polícia e a senhora irá presa em flagrante...” e pegou  o celular.

Caro leitor, sabe o que aconteceu naquele exato momento?  Com a discussão, Walter Ego bloqueara a entrada dos caixas. Atrás dele formara-se uma extensa fila e as pessoas que estavam lá esperando começaram a protestar. Mas, adivinhem: começaram a  protestar contra ele! Começaram a reclamar e alguns até o xingaram. Ele ainda tentou retrucar dizendo, agora já abalado, “Eu estou lutando pelo direito de vocês!”, mas não adiantou. Estava todo mundo contra ele, que desanimado jogou a toalha. A essa altura, sua esposa já havia entrado na loja e entregou para ele dinheiro suficiente para pagar as compras. Ele, bastante contrariado, pagou em dinheiro e foi embora.

Não é incrível? Foram os próprios consumidores que impediram que o consumidor Walter Ego  exercesse seus direitos. E, claro, ele não só tinha razão como estava mesmo defendendo o direito de todos os consumidores, porque o abuso da loja, evidentemente, não era contra meu amigo, mas contra todos!

Esse fenômeno, no Brasil, infelizmente, não é novo; é muito enraizado num individualismo que desconsidera o outro -- um igual em direitos --, que é desprezado, com base no slogan “não é comigo”. Um erro, naturalmente, mas bem profundo. Esse tipo de atitude é parente da má educação em geral, do descumprimento aberto das normas mais básicas de civilidade, que vai desde o não dar “bom dia” ou “até logo” dentro do elevador às pessoas que moram no mesmo prédio até  o desrespeito abertamente praticado  às faixas de pedestres por parte dos motoristas e  também a travessia fora da faixa em qualquer lugar e a qualquer momento por parte dos pedestres, ou o excesso de ruído com músicas tocadas em alto volume e até altas horas incomodando os vizinhos sem nenhuma preocupação etc.

Aliás, essa falta de civilidade, solidariedade e respeito ao próximo por parte de muitas pessoas, impede que a sociedade se organize na defesa de prerrogativas e garantias na luta contra os poderosos (de todos os tipos), o que facilita a dominação por parte destes.

Na doutrina consumerista – o que também aparece muitas vezes nas peças processuais dos fornecedores –, muito se discutiu sobre a proteção que a lei dá ao consumidor; se seria ou não excessiva. Eu sou daqueles que acreditam que a lei 8078/90 buscou, com a proteção efetuada, reequilibrar as forças muito desiguais do mercado de consumo, mas admito, por exemplo, que pequenos fornecedores também precisariam de alguma proteção e muito esclarecimento (critica que faço à responsabilidade objetiva estabelecida de forma ampla indiscriminadamente para as grandes corporações e ao mesmo tempo para os microempresários). Admito também que pode sim o consumidor lesar o fornecedor, não só em atitudes francamente fraudulentas, como violando o princípio da boa fé objetiva estabelecido no sistema  legal.

E, acima disso, penso que uma proteção exacerbada não só não resolve como impede o amadurecimento e a autonomia. (Em matéria de educação infantil, por exemplo, isso é fundamental. Não basta proteger, é preciso dar autonomia para as decisões; é necessário que, aos poucos, a criança aprenda a resolver alguns dos problemas que aparecem, para que, quando adulto, saiba fazer o mesmo). Vejam a chamada lei do couvert, em vigor no Estado de São Paulo desde setembro p.p. O consumidor precisava dela?

Será que não podia o consumidor, ele mesmo, sem ajuda de ninguém, quando o garçom trouxesse o couvert dizer “Não quero, obrigado”. Precisava da ajuda do Estado para exercer um direito tão banal como dizer não? Talvez alguns precisem, pois são consumidores, digamos assim, muito incapazes de lutar por seus direitos, mantidos que estão na infância de sua cidadania. Por isso, é que se compreende que em cada estabelecimento – também como manda a lei – haja um exemplar do Código de Defesa do Consumidor: algo irônico, porque certamente a maior parte dos consumidores e dos lojistas terá dificuldade de encontrar na lei qual a norma incidente numa eventual discussão (já que o texto cuida de princípios, é especifico para poucas situações concretas etc).

Aliás, a propósito, Walter Ego foi jantar no seu restaurante japonês predileto. Sentou-se à mesa com sua esposa e pediu sushis e sashimis. Passado um tempo, notou que o couvert (que eles adoram) não chegava e reclamou. O garçom disse que não o trouxe porque eles não pediram, conforme estava escrito no cardápio, mas W. Ego nem olhou o cardápio, pois já sabia o que queria. Daí, perguntou: “Porque você não ofereceu o couvert”. A resposta? “A lei proíbe”.

Eu, curioso, fui ler a lei e, de fato, uma interpretação estritamente gramatical leva à conclusão da proibição de oferecimento. É que o art. 2º “caput” dispõe: Fica vedado aos estabelecimentos descritos no artigo 1° o fornecimento do serviço de ´couvert ´ ao consumidor sem solicitação prévia, salvo se oferecido gratuitamente”. E o dono do restaurante fez a interpretação desse modo. Os garçons estavam proibidos de oferecerem os petiscos. Só serviam se fosse pedido, conforme constava do cardápio. O que, convenhamos, é um exagero.

Antes, o couvert era empurrado, agora é esquecido. E dá-lhe excesso de proteção. (Walter Ego, disse ao garçom que a interpretação teleológica do texto normativo permitiria ao menos oferecer o couvert dizendo que era cobrado. Ele não falou, é verdade, nesses termos; não usou a expressão “interpretação teleológica”; disse apenas que se tratava de bom senso). Espera-se bom senso em qualquer dos lados das relações de consumo, assim como na aplicação do direito.

Mas, como ainda em alguns estabelecimentos os garçons simplesmente colocam o couvert à frente do cliente sem nada dizerem, isto é, sem o pedido e sem informarem que ele tem um preço que será cobrado, basta ao consumidor, quando vier a conta, pedir para retirar o valor da fatura. A Lei Estadual é clara nesse sentido. Mas, como perguntaria Walter Ego, “já não era assim antes, mesmo sem essa lei? Podia o restaurante cobrar pelo couvert sem ter ao menos dito o preço ou sem o pedido do consumidor ou ainda sem anunciar o preço no cardápio?” Não, não podia. Na verdade, o que é preciso mudar é a atitude de alguns consumidores no exercício de seus direitos.

14/11/11


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