473 - Bioética: filosofia e técnica


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


A bioética é a resultante não apenas do progresso acelerado das ciências biomédicas (e toda tecnologia que carrega consigo), mas é oriunda do fato de que está inserida num contexto sociocultural particular e seus efeitos atingem, direta ou indiretamente, todas as dimensões da vida do homem.E o mosaico é uma trama de muitos e delicados fios: gira em volta dos direitos entre a vida e a morte, da liberdade da gestante, da possibilidade de doar ou dispor do próprio corpo, dos limites da investigação científica e do dever de preservação dos direitos das pessoas envolvidas e das gerações futuras.

Por isso, o paradigma atual das ciências biomédicas precisa ser profundamente alterado. Sua abordagem ao complexo problema da vida desenvolveu-se, no último século, por uma metodologia própria das ciências matemáticas ou experimentais, somado à lógica racional da causalidade direta que vincula efeito à causa.

Se, por um lado, essa visão é importante analiticamente, por outro, a consequência disso foi a grave pulverização do saber dos seres vivos, tão reducionista que penso ser improvável o surgimento de um outro Aristóteles, de um outro pensamento integrador globalizante, para reunir as peças desse quebra-cabeça do conhecimento.

A extrema tecnicização das ciências biomédicas reduziu-as a uma caricatura pretensiosa, repleta de esquemas e vazia de conteúdo valorativo. O paradigma científico, analítico e reducionista, continua dando um saque indefensável atrás de outro. Permanece focado na investigação de efeitos mínimos de causas mínimas.

A prevalecer esse paradigma asséptico, as ciências biomédicas continuarão a ser vítimas daquilo que um amigo denominou de “pontilhismo” científico: com o universo de pesquisa reduzidíssimo, tais ciências se transformam em uma pintura pontilhista vista de perto e sem uma imagem tema.

É o quadro atual do conhecimento humano: o esfacelamento das ciências, porque um monte de dados soltos só dá uma imagem geral quando, como num mosaico, temos uma idéia prévia de onde encaixar as diversas peças, o significado de cada uma e a importância de sua contribuição para o todo. E essa visão geral só pode ser traçada pela filosofia.

Desde que Tales caiu no poço, admite-se que a filosofia não serve para nada. Estou cansado de ouvir isso e não vou aqui apontar os culpados. Mas sempre argumento em contrário: essa afirmação é também filosofia, em minúscula, uma versão um pouco tosca do pragmatismo.

E contribuição da filosofia contra o pontilhismo científico nas ciências biomédicas pode ser resumida, concretamente, em alguns princípios bioéticos elementares, os quais fazem parte do Belmont Report, publicado pela Comissão Americana para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica. Tais princípios são racionalizações abstratas de valores que decorrem da natureza humana e das necessidades individuais. Os dois primeiros têm caráter deontológico e os dois últimos, finalístico.

O princípio da autonomia demanda do profissional da saúde o respeito da vontade do paciente, considerando, em certa medida, seus valores morais. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida e respeito à sua intimidade. Desse princípio decorrem a exigência do consentimento livre e informado.

O princípio da beneficência requer o atendimento dos interesses do paciente com vistas ao seu bem-estar físico e espiritual. É fruto da tradição hipocrática: o tratamento deve ser para o bem do enfermo, promovendo-o pela práxis médica, evitando o mal ou, se não for possível, minimizando seus efeitos. O princípio da não-maleficência é o reverso da medalha do anterior e proíbe acarretar dano intencional. Deriva da máxima da ética médica conhecida por primum non nocere (em primeiro lugar, não fazer mal).

O princípio da justiça exige uma relação de equidade entre benefícios, riscos e encargos proporcionados pelos serviços de natureza biomédica.

Tenho a esperança de um debate bioético amplo que proclame a unidade desse saber, à qual aspiram não só as ciências biomédicas, mas a ciência em geral. Um ponto de vista convergente que faça uma conciliação da ciência despedaçada. Com a permissão do neologismo, uma “conciliência”.Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).


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