471 - Bioética: campo de atuação
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
A bioética, em sentido amplo, pode ser considerada uma resposta da ética às novas situações criadas pelas ciências biomédicas. Ocupa-se dos problemas éticos oriundos dos métodos científicos e da tecnologia aplicados no seio daquelas ciências.
As pesquisas com seres humanos, eutanásia, distanásia, ortotanásia, terapias gênicas, métodos de reprodução humana assistida, eugenia, eleição do sexo do descendente, clonagem, utilização da tecnologia do DNA recombinante, manipulação de agentes patogênicos e outros desafiam uma série de questões éticas que abrangem não só a licitude da ação e dos meios, mas também do objeto e da finalidade dos processos acima indicados.
É uma contundente resposta aos riscos reais e imediatos inerentes à práxis biotecnocientífica: riscos biológicos, associados à biologia molecular, à manipulação genética e aos organismos geneticamente modificados, e riscos ecológicos, resultantes de algumas fontes de energia, do desequilíbrio ecológico, da redução da biodiversidade ou mesmo da introdução de organismos geneticamente modificados no meio ambiente.
Para ser fiel ao seu fim, a bioética deve compreender pesquisas multidisciplinares nas áreas da antropologia filosófica, filosofia moral, genética, biologia, psicologia, direito, política e outras mais, com a finalidade de conhecer bem seu campo de atuação e de poder analisar eticamente as questões postas. Assim, no marco normativo, as prescrições da bioética, veiculadas pelo biodireito, poderão estabelecer os princípios e limites legislativos da atuação concreta dos profissionais das ciências biomédicas.
A bioética deve focar sua atuação em três grandes linhas. Em primeiro lugar, restaurar a prudência (sim, a prudência, a qualidade do agir certo) ao seu devido lugar: o ajustamento entre o agir humano e o mundo decorre do controle racional do agir moldado pela phronesis ou sabedoria prática.
Se a ética é o estudo da moralidade do agir humano, logo, a prudência deve ter lugar destacado na seio da bioética, porque vai dar aquela sintonia fina para a formulação das normas de conduta e dos meios de executá-las.
Em segundo posto, a bioética deve elaborar propostas éticas e deontológicas que se prestem como razão de agir dos profissionais das ciências biomédicas, de maneira que os códigos de ética médica e os protocolos de diagnóstico e de tratamento possam se inspirar naquelas proposições.
Por fim, a bioética deve apontar critérios seguros para permitir a incorporação de novas situações vivenciadas pelos profissionais do ramo biomédico, com o intuito de salvaguardar a dignidade humana, o exercício das liberdades públicas e a convivência social.
Nesse ponto, a atuação da bioética costuma ser atropelada pela velocidade impressionante da evolução tecnológica das ciências biomédicas, gerando uma série de lacunas que, no mais das vezes, acabam sendo ocupadas por interesses econômicos escusos.
Se a nova realidade proporcionada pelas ciências biomédicas interfere diretamente na ordem natural das coisas e do próprio homem, convém lembrar da advertência de C. S. Lewis: “Cada novo poder conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo, um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor”.
Frente à ênfase no “bio” e no “tecno”, é preciso um esforço para infundir um coração à “ética”. Do contrário, fico tentado a dar razão ao bom e velho Bruce Dickinson, em mais uma de suas letras apocalípticas: “You are planned, you are damned.
In this brave new world (Você é planejado e está condenado.
Nesse admirável mundo novo)”. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br)