472 - Bioética e dignidade humana


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Os profissionais das ciências biomédicas, compreensivelmente, colaboram com o desenvolvimento mais “bio” que “ético” da bioética. O raciocínio é simples. Consideram automaticamente bom e saudável aquilo que é autorizado pelas leis democraticamente estabelecidas e mau aquilo que a lei silenciou a respeito ou mesmo proibiu expressamente.

Penso que falta um estudo objetivo e crítico da licitude das intervenções humanas no campo da biologia moderna, da medicina e das tecnologias que daí resultam na prática. Esse estudo ainda compreenderia a chancela de um rol de valores objetiva e universalmente válidos e indiscutíveis, a fim de que o diálogo argumentativo seja travado em bases racionais comuns e a análise do aparato tecnológico seja sempre feita em respeito à vida humana.

O culturalismo, o novo nome do relativismo, reduz a ética aos costumes predominantes de um povo e o pluralismo absoluto converte a ética ao vai-e-vem dos votos e opiniões, concentrado no culto ao princípio do assembleísmo, sem qualquer diálogo interdisciplinar entre as fontes.

É o mito científico, segundo o qual o homem teria o domínio de si e das coisas, em razão do acesso ao conhecimento que ciência lhe proporciona. Some-se a isso o outro mito, o do progresso sem fim e, assim, todos os problemas do homem moderno estariam resolvidos. Na verdade, muitas vezes, o domínio de si virou sinônimo da prevalência do mais forte sobre o mais fraco e o tal progresso eterno, em diversas áreas, não passou de um avanço do retrocesso.

Como alternativa, creio que o pluralismo ético poderia dar frutos mais perenes, pois opta por um perfil axiológico que assegura a convivência social dos cidadãos, a partir de um mínimo ético dentro do legítimo pluralismo de padrões éticos. Seu conteúdo é resultante de um pacto social a respeito daquele mínimo ético que possa viabilizar as condições de vida em sociedade, como, por exemplo, o artigo 5º da Constituição Federal, o Pacto de São José da Costa Rica, a Declaração Universal de Direitos Humanos ou a Convenção de Genebra sobre os direitos e deveres do civis e combatentes em tempo de guerra.

A pedra angular desse pacto bioético seria o valor absoluto da pessoa humana: uma justificação racional para uma ética normativa e não a descrição de fatos consumados por novas tecnologias biomédicas para uma ética à la carte. O progresso científico no âmbito biomédico é para o homem. E não contra o homem.

Nem tudo o que é cientificamente possível é eticamente conveniente. Vale a máxima hipocrática: o conhecimento médico deve sempre estar a serviço da humanidade. Quando não puder ser assim, alternativas devem ser buscadas. Se não houver, é melhor dizer adeus, já que a insistência na busca pelo “homem novo” apenas irá degradar ou destruir o “homem velho”.

Para a bioética, a vida humana corresponde à vida com dignidade: é o que proclamam a Declaração Internacional sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade (1975) e a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e Biomedicina (1996).

Assim, bioética passa a ter um sentido humanista, estabelendo um profundo vínculo com a justiça e não corre o risco de ser conduzida pelo conto de fadas de um progresso científico desmedido e inescrupuloso. Deixa de ser a nova Esfinge dos tempos modernos, que temos de interrogar sobre o segredo da vida, antes que ela nos interrogue e depois nos devore por não sabermos a resposta correta: a dignidade da pessoa humana. 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais (agfernandes@tjsp.jus.br).


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