474 - Direito e amor
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Curioso notar que o Direito dispõe sobre muitas normas em diversas dimensões da vida humana, mas nada trata sobre o amor humano. A título de curiosidade, o revogado artigo 1.338 do Código Civil de 1916 era o único dispositivo legal em que a expressão “amor” foi empregada pelo legislador: “O gestor responde pelo caso fortuito, quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste por amor dos seus”.
O novo Código não manteve a palavra. Inclusive, consegue a rara façanha de tratar dos deveres do casamento, sem mencionar expressamente a expressão “amor”. Nesse ponto, será que existe uma relação entre o direito e o amor? E, caso positivo, no âmbito da relação conjugal, qual regra deveria iluminar as relações entre os casados: a lei natural ou a espontaneidade do amor?
É um fato notório que, por trás de algumas posturas atuais em relação ao matrimônio, há uma clara, porém, aparente contraposição entre aquilo que se denomina como exigências do amor e o que, tradicionalmente, é chamado de lei natural. São tendências que defendem a autenticidade como um dos pilares da atuação do homem, inclusive numa relação matrimonial.
A autenticidade estaria na espontaneidade do amor, num livre fluir da relação amorosa, marcada por uma invencível fragilidade intrínseca, algo bem retratado na famosa obra literária de Milan Kundera, “A insustentável leveza do ser” (1984), frente à inautenticidade representada pela lei, sobretudo pela lei natural, reduzida a um produto cultural de uma mentalidade ultrapassada e alienante.
Estas tendências partem do pressuposto de que o homem é considerado um ser autêntico quando segue a inclinação espontânea que radica em si, porque toda inclinação é natural, ou seja, é conforme ao seu ser. Negam, sob outro ângulo, que a pessoa possa ter uma desordem em suas inclinações naturais, como a concupiscência.
A desordem não teria espaço, porque, inspirado na concepção rousseauniana de natureza humana, o ser do homem não portaria nem o bem e nem o mal: há simplesmente o seu ser, que deve ser assumido tal como é ontologicamente, em virtude de sua bondade inerente.
Eis a chamada autenticidade: uma tese pertinazmente proclamada e vivida por muitos, os quais, certamente, não acreditam que a antropologia kantiana aproxima-se muito mais da realidade posta acerca da natureza humana, dado que o homem é naturalmente capaz de fazer, além do bem, o próprio mal. E sem necessidade de sociedade, de qualquer estrutura ou mesmo instituição, que fazem apenas potencializar o bem ou o mal praticado individualmente.
Superada a questão a respeito da possibilidade de desordem nas inclinações naturais, a espontaneidade do amor surge como a regra de ouro da ação humana. O mal está em agir sem amor. Migrado este critério ao amor conjugal, infere-se, sem muito esforço intelectual, que esta regra deva pautar as relações entre os cônjuges, já que, onde há amor espontâneo, não pode haver desordem.
Mas aí reside o engano antropológico. Há um só amor, esse primeiro movimento da vontade que se orienta e adere intencionalmente ao objeto amado. É o primeiro movimento da inclinação natural do homem ao bem.
Contudo, o homem tem, dentro de si, um fator de desordem em sua tendência inata ao bem, de maneira que, apesar da lei natural, goza também de uma inclinação para o mal, a chamada concupiscência. Uma vez domado por esta, o amor fica cego. E se o amor é cego, nunca acerta o alvo, como já dizia Shakespeare. Salvo melhor juízo, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tjsp.jus.br)