485 - O “contrabando” operado no sistema legislativo, as garantias constitucionais, os limites para o legislador e o direito do consumidor

LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador


Infelizmente, meu caro leitor, está se tornando comum um modo de produzir leis com um objetivo declarado e, aproveitando a oportunidade, colocar em vigor normas cuidando de assunto diverso (muito diverso!). Em matéria de direito do consumidor, já foi adotado mais de uma vez e tem causado graves danos. Esse método deveria ser alvo de preocupação dos cidadãos, dos políticos e, em matéria de consumo, das entidades de defesa do consumidor.                  

De todo modo, com atenção ou não da sociedade, a verdade é que a doutrina jurídica e também algumas decisões judiciais têm deixado claro que a prática é inconstitucional por violação à Lei Complementar (LC) nº 95 de 26-2-1998. Vejamos os elementos em jogo e os argumentos lançados, a partir de exemplos envolvendo o direito do consumidor.                    

Deixarei de lado a discussão sobre a existência ou não de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, eis que não interessa especificamente para a solução do problema nem a modifica. Ficarei apenas com uma das posições possíveis que é a de que, a partir de 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a nova Carta Constitucional,  não há mais que se falar em  hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, isto é, a lei complementar não determina as condições de validade da lei ordinária.

No entanto, como disse e também conforme demonstrarei, apesar de não ser condicionante em função do conteúdo, ao menos uma Lei Complementar, a citada LC  nº  95, exerce controle no modo de produção das demais leis, por se tratar de norma geral dirigida ao próprio legislador. Veremos.                 

Mesmo deixando de lado essa questão da hierarquia, constata-se  que o legislador constitucional deu mais, posso dizer, “peso” normativo à lei complementar, reservando para ela temas legislativos de relevo. As leis complementares têm como função tratar de certas matérias que a Constituição Federal entende devam ser reguladas por normas, cuja aprovação exija controle mais rígido dos parlamentares. Por isso, o quorum legislativo exigido para sua aprovação é especial; é o da maioria absoluta (CF, art. 69: “As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta”). E as matérias para as quais é feita essa exigência de votação aparecem taxativamente no texto constitucional. Por exemplo, o art. 93, que trata do Estatuto da Magistratura; o art. 131, que disciplina a Advocacia Geral da União; o art. 192, que cuida do sistema financeiro nacional etc.                   

Portanto, o que diferencia a lei complementar da ordinária é a matéria específica e o quorum qualificado de aprovação para as leis complementares e não exatamente uma posição hierárquica.                

Remanesce, também, uma dúvida, às vezes apontada pela doutrina, em relação ao tema da hierarquia, por conta da existência de uma específica Lei Complementar, a suso apontada de nº 95, que dispõe sobre a elaboração e consolidação das leis. E, em função do conteúdo dessa norma, argumenta-se que ela teria que ser hierarquicamente superior às leis ordinárias, para que estas a pudessem obedecer.                
Penso que esse argumento é inconsistente. Em primeiro lugar, se isso fosse verdade, ao menos um tipo de norma não precisaria obedecê-la: exatamente as demais leis complementares, que estão no mesmo patamar, mas não é isso que se espera, conforme veremos. Em segundo lugar, não é o conteúdo da norma que define sua hierarquia, mas sua posição jurídico-política aceita historicamente pelos operadores do direito e em geral por toda a sociedade.                  

A citada Lei Complementar n. 95 é norma de organização. Diz como o próprio legislador deve produzir um texto de lei, separando-o por capítulos, artigos, parágrafos etc. De fato, haverá conflitos — como já há — entre essa norma complementar e outras normas do sistema, na medida em que o legislador não a siga à risca. No entanto, a solução do conflito, se puder ser dada, não se fará pela via da hierarquia, mas sim pela da solução interpretativa sistêmica. O intérprete terá de verificar se o sistema, dando qualificação especial de conteúdo à lei complementar, traz solução capaz de adequar os dois tipos de norma.               

Não se trata, portanto, de um problema de hierarquia, mas de diálogo. É caso do já conhecido diálogo das fontes, tema bastante atual e necessário ao exame dos novos modelos jurídicos vigentes no mundo contemporâneo, como ensina com muita precisão em suas obras a Profª. Cláudia Lima Marques.               

Cuido, então, de vez, do problema surgido com a edição da Lei Complementar n. 95. Ela é verdadeira lei geral de elaboração e consolidação das leis. Examine-se seu texto, no que aqui interessa. Dispõe seu art. 1º e parágrafo único:               

“Art. 1º A elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis obedecerão ao disposto nesta Lei Complementar.

Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo”.                 

Uma das importantes funções e, talvez, a principal é aquela estabelecida no art. 7º. Extrai-se da teleologia desse artigo o claro intuito de impedir uma prática escusa que consiste em aprovar uma lei, cuidando de determinado assunto e, “escondido” entre seus artigos, colocar outro tema totalmente desconectado do objeto da norma editada. Leiamos, pois, o contido no citado art. 7º, que é muito preciso nesse sentido:                

“Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

I — excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

II — a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;

III — o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;

IV — o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa”.                     

Antes de prosseguir, chamo a atenção para o fato de que, como acima pode ser lido, de acordo com o art. 7º da Lei Complementar n. 95, é o art. 1º de qualquer lei que indica seu objeto e seu âmbito de aplicação. É importante atentar para esse ponto.

A violação a esses comandos tem sido levada ao Poder Judiciário, que atento a essas determinações, tem feito valer as normas da Lei Complementar.  Veja-se, por exemplo, o caso da Medida Provisória 1.963-17, de 30 de março de 2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36 de 23 de agosto de 2001. Ela, de forma mascarada, acabou por permitir a capitalização de  juros, o que, como se  sabe, no Brasil, com o alto índice percentual praticado, é um descalabro e um evidente abuso contra todos aqueles que tomam dinheiro emprestado.

Vejam o que diz o art. 1º dessa MP:

 "Art. 1º. Os recursos financeiros de todas as fontes de receitas da União e de suas autarquias e fundações públicas, inclusive fundos por elas administrados, serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma regulamentada pelo Poder Executivo”.       

Mas, eis que, de repente, no art. 5º “caput“ constou:

“Art. 5o  Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”

Pergunto: o que uma coisa tem a ver com a outra?  Nada. A não ser um modo de criação, visando, se não enganar os destinatários, ao menos ocultar da população e, no caso, dos consumidores, questões de relevo, editando uma norma contrária a seus interesses sem passar pelo legítimo e autêntico debate no âmbito do Poder Legislativo. Na verdade, esse tipo de produção legislativa põe à mostra o poder de pressão dos grupos de interesse que atuam nos bastidores do sistema.                      
Deu-se o mesmo com a Medida Provisória n. 1.925/99, que foi convertida na Lei n. 10.931/2004. Esta institui o “regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação” (art. 1º).                       

Essa lei, com esse objeto, também de forma sub-reptícia, nos arts. 26 e s., criou a Cédula de Crédito Bancário, um título de crédito a ser utilizado por instituições financeiras em operações de crédito, ou seja, um novo objeto diferente daquele instituído por ela. A violação às normas gerais da Lei Complementar n. 95 era, como é, pois, flagrante.                      

Desse modo, vê-se   que os artigos da medida provisória e da lei ordinária referidas são inconstitucionais não porque haveria violação de uma estrutura hierárquica, mas porque,  no diálogo necessário e sistêmico estabelecido a partir da determinação da norma complementar que regula a forma e a substância das demais leis no país, com ela ficou em desconformidade.                      

É verdade que o art. 18 da LC nº 95 diz que “eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”. Mas, claro, essa não é a hipótese das normas apresentadas. Entende-se por inexatidão formal mero erro que seja incapaz de desnaturar a norma, como, por exemplo, um parágrafo estar numerado erradamente ou artigos com números repetidos etc.                   

O Judiciário, como disse, tem debatido esse tema e já declarou, incidentalmente, nas ações decididas, inconstitucionais os artigos das leis e medidas provisórias que violam a LC nº 95. Temos também assim decidido em nossa Câmara. Vejam exemplos:

“CONTRATO BANCÁRIO – CRÉDITO EM CONTA CORRENTE – Cobrança mensal de juros capitalizados – Inadmissibilidade – Prática vedada - Medida Provisória 2170-36, todavia, que apresenta grave vício de origem, pela não observância obrigatória dos requisitos determinados na LC 95/98 (artigo 7º) – Hipótese em que a capitalização de juros é matéria estranha ao objeto e ao âmbito de aplicação da MP, estabelecido no seu artigo 1º - Capitalização mensal afastada, permitida sua cobrança anual – Regra de incidência do artigo 591 do atual Código Civil – Parcial procedência da ação mantida - Apelo desprovido” (Apelação 7.073.259-3, j. 20-8-2008, v.u., 23ª. Câmara de Direito Privado do TJSP).

“EXTINÇÃO DO PROCESSO — Execução de título extrajudicial — Cédula de crédito bancário — Previsão na Lei n. 10.931/2004 de que a mesma constitui título executivo extrajudicial — Lei que não observou as disposições da Lei Complementar n. 95/98, quando de sua elaboração — Lei n. 10.931/2004 que dispõe sobre regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias — Objeto desta que, portanto, não guarda relação com a cédula de crédito bancário — Invalidade da referida Lei nessa parte verificada, e, por consequência, da tipificação da cédula em causa como título executivo — Extinção do processo ab initio decretada — Recurso provido” (Apelação n. 7.142.052-3, 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Oseas Davi Viana, j. 20-6-2007, v.u., DJ, 24-9-2007).

“EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL — Cédula de crédito bancário — Ausência de título executivo — Ilegalidade da lei que prevê tal título (Lei n. 10.931/2004) — Inobservância do princípio da hierarquia das leis — Não cumprimento do estipulado no art. 7º, caput, e seus incisos, da Lei Complementar n. 95/98 — Determinação ex officio para que seja anulado o processo de execução ab

initio — Análise prejudicada” (Agravo de Instrumento n. 7.200.746-2, 23ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, rel. Des. Franco de Godoi, j. 16-4-2008, v.u., DJ, 9-6-2008).                     

A doutrina caminha na mesma direção: “Criando e regulando cédula de crédito bancário, a LPAII desrespeitou flagrantemente o artigo 7º da lei complementar — LC 95/98 — que regula a elaboração e redação de leis no País, ofendendo-se a garantia do due process of law, maculando-se de inconstitucionalidade, no tópico que cria e regula a cédula de crédito bancário. Essa inconstitucionalidade, por ofensa às regras do processo legislativo, é, a um só tempo, formal e substancial. São inconstitucionais, portanto, os arts. 26 a 46 da LPAII” (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, 10. ed., São Paulo:RT, 2007, p. 988).                      

E no mesmo sentido a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho,  ao afirmar que “...a lei ordinária, o decreto-lei e a lei delegada estão sujeitos à lei complementar, em conseqüência disso não prevalecem contra elas, sendo inválidas as normas que a contradisserem.” (Do processo legislativo.  5ª ed., São Paulo:Saraiva, 2002, p. 247).                     

Eis, pois, mais um motivo  de preocupação para todos. Já não bastava o alerta de Otto Von Bismarck que dizia que “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis", ainda mais essa de normas feitas de contrabando. O paradoxo está no fato de que a Lei Complementar nº 95 foi editada pelo próprio Poder Legislativo num momento de alta sabedoria. Vai entender!

 

7/11/11


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