501 - Da Detração Penal no Código Criminal do Império de 1830


LEILA HASSEM DA PONTE – Juíza de Direito


Sumário: I. Origem etmológica da palavra detração – II. Escorço Histórico – III. Conceito – IV. Fundamentos da não adoção da detração penal pelo Código Criminal do Império e posição doutrinária à época – V. Conclusão.

I) Origem etmológica da palavra detração

A palavra detração tem origem etmológica do latim detractio e possui dois significados distintos: ação de difamar, depreciar e abatimento de alguma coisa, ação de abater o crédito de.

Já em sentido técnico-jurídico, detração penal significa o cômputo, na pena privativa de liberdade ou da medida de segurança imposta do tempo em que o individuo, condenado, permaneceu custodiado pelo Estado, em regime de prisão cautelar ou provisória, ou internado em hospital de tratamento psiquiátrico ou manicômio.

II) Escorço Histórico

Desde a antiga Roma, conforme o Digesto, a computação do tempo da prisão cautelar na execução da pena já era um tema que preocupava os estudiosos, havendo previsão expressa que “se alguém estiver em acusação durante longo tempo, a sua pena deve ser algum tanto moderada; pois está decidido que não devem ser punidos do mesmo modo aqueles que estiverem em acusação durante muito tempo e aqueles que tiverem pronto julgamento.”[1] (DIGESTO, LIVRO 48, TÍTULO 19, “DE POENIS”, LEI 25) (tradução livre).

Entretanto, com a queda do Império Romano, e, mais tarde, com a Idade Média, referido instituto permaneceu no esquecimento, uma vez que o magistrado medieval agia com arbítrio, na medida em que não existia encadeamento lógico entre a sanção praticada e a pena cominada, de modo que não havia como se exigir fosse o tempo de prisão preventiva computado na pena fixada. 

Assim, somente com a Revolução Francesa, e seus ideais liberais, é que as penas cominadas aos delitos passaram a ser fixas, de modo que o desconto do cômputo de tempo da prisão provisória voltou a ser questão de alta indagação, proporcionado grandes debates entre os doutrinadores da época.

Grande entusiasta do instituto, Francesco Carrara discorria que as leis toscanas, desde 1786 sancionaram o direito à indenização do Estado em favor do absolvido por motivo da prisão sofrida e, ao compará-la com o Código Francês, assim dispôs: “Parece impossível que na França seja tampouco sabido que a Toscana já a noventa anos computa na pena a prisão preventiva.”, pois causava-lha espécie o fato de que a França não previsse a detração.[2]

Da mesma forma, Dupin, em 1821, manifestou-se questionando “ver que a prisão sofrida por um acusado durante a instrução de seu processo não entra em atenuação da duração do aprisonamento que se segue à condenação...” e concluiu: “eu acho esta legislação injusta”.

Realmente, não obstante os ventos de liberdade que bateram na Europa do século XVIII tenha tido seu auge na Revolução Francesa, que derrubou a monarquia absolutista de Luis XVI e instituiu a república, fato é que a França somente em 1882 passou a subtrair a prisão processual do total da pena cominada ao sentenciado.[3]

Já no Brasil, as Ordenações Filipinas nada dispuseram a respeito da detração penal, silenciando-se a respeito. Entretanto, o Código Criminal do Império, sancionado em 16 de dezembro de 1830, em harmonia com o artigo 179, § 8.º da Constituição Federal e artigo 175 do Código de Processo, inspirado na legislação francesa – Código Penal de 1810 – que, como dito acima, não previa o instituto da detração, foi expresso ao vedar o cômputo da prisão preventiva na duração das penas.

De fato, rezava o artigo 37 do diploma punitivo do Império: “Não se considera pena a prisão de indiciado de culpa para prevenir a fugida, nem a suspensão dos magistrados decretada pelo Poder Moderador, na forma da Constituição”.  

Ressalto, ainda, por oportuno, que não obstante a vedação expressa do Código Criminal do Império, o instituto da detração surgiu no Brasil ainda sob a sua vigência, por meio da Lei 1.696, de 15 de setembro de 1869, que determinou, em seu artigo 7.º que, confirmada a sentença, será levado em conta, no cumprimento da pena, o tempo de prisão simples que o réu houvesse sofrido desde a sentença de primeira instância, descontada a sexta-parte, não havendo aplicação, contudo, se o condenado preferisse o cumprimento da pena de prisão com trabalho, não obstante houvesse apelação.

Transcreve-se, in verbis, mencionado dispositivo: “Artigo 7.º - O réo preso, que for condenado à pena de prisão com trabalho, não será obrigado a este, pendente a appellação. Confirmada, porém, a sentença, será levada em conta o tempo de prisão simples que o réo tiver soffrido desde a sentença de 1.º instância, descontada a sexta parte. O dispositivo n’este artigo não terá lugar si o réo preferir o cumprimento da pena de prisão com trabalho, não obstante a appellação”.

Por fim, e ainda no período de vigência de Código Penal de 1830, houve a revogação de seu artigo 37, pois o artigo 3.º do Decreto 774, de 20 de setembro de 1890 deu um caráter absoluto e obrigatório à detração, ao dispor que: “A prisão preventiva será computada na execução da pena, sendo posto em liberdade o réu que, contado ou adicionado o tempo da mesma prisão, houver completado o da condenação.”

III) Conceito

Conforme já analisado, no item I, a própria origem etmológica da palavra detração permite-nos estabelecermos o seu conceito.

Assim, temos que detração penal nada mais é do que o cômputo do tempo, na duração da pena, em que o acusado permaneceu preso provisoriamente ou internado em hospital de tratamento psiquiátrico ou manicômio.

Alberto da Silva Franco, ao conceituar supracitado instituto dispõe que: “A detração penal é operação matemática por meio da qual é computada no tempo de duração da condenação definitiva a parcela temporal correspondente à concreta aplicação de uma medida cautelar ou à efetiva internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico.” [4]

IV) Fundamentos da não adoção da detração penal pelo Código Criminal do Império e posição doutrinária à época

O Código Penal de 1830 sofreu forte influência do Código Penal Francês de 1810 que, como analisado, não previa a detração penal.

Justificava-se a negativa ao direito de detração do sentenciado na natureza jurídica da prisão cautelar: esta não era uma pena em sentido stricto, posto que não visava impor uma sanção ao detido, nem fazer com que este expiasse um delito, mas apenas prevenir a fuga, para que, ai sim, diante de uma condenação, o sentenciado não se furtasse à aplicação da lei penal.

Havia, ainda, quem sustentava que, se o réu preso provisoriamente fosse absolvido, nenhuma indenização lhe devia o Estado. Assim, contrario sensu, se fosse condenado, não era devido que descontasse o período em que permaneceu no cárcere, pois estaríamos dando tratamento desigual a pessoas na mesma situação de igualdade. 

Entretanto, não obstante os argumentos que fundamentaram o artigo 37 do Código Penal de 1830, a grande maioria da doutrina pátria à época criticou, com veemência, seu texto.

Mendes da Cunha, Thomaz Alves e Francisco Luiz sempre se manifestaram a favor da comutação da prisão provisória, sem quaisquer reservas, sob o fundamento de que o acusado não deve sofrer por motivos estranhos à sua vontade o ônus decorrente do prolongamento da prisão preventiva, em razão da demora natural dos processos de natureza criminal; até porque, era freqüente a absolvição ou a atenuação da sanção devida aos acusados, na tentativa de se buscar a equidade – ao arrepio da lei – eliminado-se ou descontando-se no próprio julgamento o tempo de prisão cautelar já suportada pelo réu.

De fato, o instituto da detração penal está intimamente ligado à prisão provisória, isto é, a privação do status libertatis do individuo antes de eventual condenação pelo Estado-juiz, consistindo em verdadeira medida cautelar, prevista diante de fatos relacionados ao cumprimento da lei e ao periculum in mora e, embora não seja antecipação de uma eventual pena, evidentemente, restringe o direito de locomoção do individuo e, nada mais natural, possa este, se ao final condenado, ter o tempo em que permaneceu custodiado computado no cálculo de sua pena.

V) Conclusão

Com a independência do Brasil, em relação à Portugal, deixamos de ser uma colônia e, em 25 de março de 1824 foi jurada a Constituição do Império, na qual foram consagrados princípios que modificavam todo o sistema penal até então vigente.

Dentro deste contexto, e em harmonia com o artigo 179, § 8.º da Constituição Federal e artigo 175 do Código de Processo, foi sancionado por Pedro I o Decreto da Assembléia sobre o Código Criminal do Império do Brasil, em 16 de dezembro de 1830,

O Código Criminal do Império, em seu artigo 37, foi taxativo ao dispor que não se considera pena a prisão do indiciado de culpa para prevenir a fugida, proibindo, assim, a aplicação da detração penal.

Referida proibição teve inegável influência do Código Penal Francês de 1810, que não admitia a detração da pena.

Os doutrinadores da época criticavam com veemência a proibição da detração penal, por considerá-la causadora de injustiças em sentido amplo – tanto em relação ao réu condenado, preso preventivamente, se comparado com o réu, igualmente condenado, mas que não permaneceu preso durante o processo, quanto em relação à sociedade, pois eram freqüentes as absolvições de presos cautelares, como forma de se buscar a equidade, em violação ao texto legal.

A partir do Decreto 774, de 20 de setembro de 1890, foi dado um caráter absoluto e obrigatório à detração penal.


Leila Hassem da Ponte
é Juíza de Direito e Mestranda em Direito Penal na PUC-SP.


Bibliografia

ARAÚJO, João Vieira de. Código Penal Commentado – Theorica e Praticamente. Rio de Janeiro e São Paulo: Laemmert & C. editores, 1896.

BECCARIA, Cesare Bonesana, Marquês de. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, Tomo I.

CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal – Parte Geral. São Paulo: Editoa Saraiva, tradução de José Luiz V. de Franceschini e J. B. Prestes Barra, 1957, v. II.

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, volume I.

DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

D’URSO, Umberto Luiz Borges. Detração Penal. Brasília: Revista Informativo Jurídico in consulex, 2001.

DUPIN. André-Márie. Observations sur plusieurs points de notre legislation criminalle, apud Grassi, Roberto Joacir, Detração Penal. Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 24.

FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. São Paulo: Max Limonad Editor de Livros de Direito, 1971, vol. I, tomo I.

LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1942, Vol. II.

LUIZ, Francisco. Código Criminal do Império do Brasil: theorica e praticamente annotado. Maceió: Typ. De T. de Menezes, 1885.

MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1954, volume I.

NETO, Zahidé Machado. Direito Penal e Estrutura Social – Comentário Sociológico ao Código Criminal de 1830. São Paulo: Editora Saraiva, 1977.

NORONHA, Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1982.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil – Evolução Histórica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

PINTO, Tabajara Novazzi. A detração penal nos Códigos de 1830 e 1890. São Paulo: Arquivos da Polícia Civil de São Paulo, volume XLIII, 1.º semestre, ano 1993.

SILVA, Cyro Vidal Soares da. Detração Penal. São Paulo: Arquivos da Polícia Civil de São Paulo, volume XXXVII, 2.º semestre, ano 1981.

SIQUEIRA, Galdino. Tratado de Direito Penal. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1950, Tomo I.

TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brasil Annotado. Brasília: Coleção História do Direito Brasileiro, 2003.


 

[1] Di diutino tempore aliquis in reatu aliquatemus poena ejus sublevanda erit: sic enim constitutum est, nom eo modo puniendi eos qui longo tempore in reatu agunt, quam eos qui in recendi sententiam excipiunt. (DIGESTO, LIVRO 48, TÍTULO 19, “DE POENIS”, LEI 25).

[2] Na Itália, as leis toscanas, desde 30 de setembro de 1786, sancionaram o direito à indenização do Estado em favor do absolvido por motivo da prisão sofrida e consideraram justo o preceito do abono do tempo de prisão existente antes da condenação.

[3] Desde a reforma legislativa francesa de 1832, a prisão provisória do indiciado passou a ser parcialmente aceita no cômputo final.

[4] FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, pág. 239.


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP