502 - Trabalho: dimensão real


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


A expressão "trabalho" tem uma origem remota e seu significado tem mudado consideravelmente ao longo da história. Assim, não é muito útil uma análise etimológica, ainda que se deva saber que a expressão decorra do nome dado a um instrumento de tortura romano. Hoje, o significado desta palavra é variado e convém fazer uma reflexão sobre a realidade.

O trabalho tornou-se, nos últimos três séculos, a referência básica para a compreensão da estrutura social e, no âmbito do marxismo, da atividade política, o que, às vezes, reduz o entendimento do trabalho a uma perspectiva ideológica exclusivamente.

Descritivamente, o trabalho está ligado com uma ação humana, mas nem toda ação humana resulta num trabalho, como, por exemplo, o ato de comer, ainda que o cozinheiro, em seu ofício de preparação da comida, realize um trabalho.

Em suma, o trabalho, à luz do que pensamos, exige uma atividade inteligente e livre do homem e, considerando que o homem vive em sociedade, as ações realizadas para a organização da pluralidade humana, ao contrário do mel fabricado instintivamente pelas abelhas numa colméia, também são formas de trabalho: política, legislação e educação.

Analogamente, jogar tênis, xadrez ou futebol não será considerado trabalho se a pessoa faz isso por puro entretenimento. Mas se a pessoa for tenista, enxadrista ou futebolista, ou seja, se estiver exercendo uma profissão, passa a ser um trabalho. Eis uma palavra intimamente relacionada com a noção real de trabalho: profissão. Ousaríamos dizer que o trabalho alcança sua própria significação quando ele qualifica-se como um trabalho profissional.

Logo, em nossa ideia de trabalho, cremos ser importante não somente olhar o indivíduo com estas ou aquelas competências operacionais, mas vê-lo como um todo, como alguém inserido na sociedade humana.

Compreender o trabalho como uma profissão, significa não só compreendê-lo em sua raiz, nas faculdades operativas do homem, mas desde o contexto social. Uma atividade humana seria reputada como trabalho profissional quando fosse exercida no seio social, ou seja, enquanto se inscrevesse num conjunto de funções sociais por meio das quais a mesma sociedade constitui-se e desenvolve-se.

Na sociedade atual, o trabalho não produz diretamente os meios para se viver. Esta relação é mediada pelo conjunto social, que acolhe a atividade de cada um e, conjuntamente, produz os bens que reparte em forma de salário: eis o atributo que eleva uma atividade a categoria de trabalho profissional.

Contudo, se o caráter profissional do trabalho é absolutizado, o trabalho resulta funcionalizado no conjunto da obra social, de maneira que a pessoa fica, nesse aspecto, absorvida pela coletividade. Este aspecto fundamental não pode ser ignorado ao se apreciar a realidade.

A perspectiva coletivista é fortemente reducionista, mas penso ser igualmente inadequado tratar a questão do trabalho a partir de uma perspectiva meramente metafísica, isto é, desde a pura essência do homem que, inevitavelmente, considera o homem como um ser uno.

Para que a justiça impere na realidade do trabalho, é necessária uma apreciação cuidadosa da pluralidade humana, como peculiar pluralidade de indivíduos únicos, ou seja, de pessoas dotadas de uma dignidade intrínseca, constituindo-se cada uma delas um todo de sentido: não se resumem a umas peças substituíveis da máquina produtiva social.

Prefiro compará-las com os músicos de uma orquestra sinfônica. Cada um tem um rol de qualidades e talentos individuais e únicos que, somados e bem regidos pela batuta do maestro, produzem um som harmônico e apreciável aos ouvidos.

Nossa percepção, certamente, causa um algum pavor aos capitalistas selvagens e aos marxistas de carteirinha, por não ser simpática ou politicamente correta, já que ambos têm, em comum, uma visão economicista da realidade do trabalho, cuja matriz filosófica remonta a um certo materialismo ainda reinante. Mas a realidade posta nem sempre é a realidade que queremos.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).   


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