503 - Sentido do trabalho


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


O exercício de uma profissão, seja um ofício eminentemente manual ou intelectual, ocupa a maior parte do dia-a-dia. É um campo fértil para a busca de nossas realizações pessoais e profissionais, onde desenvolvemos nossos talentos e aprimoramos nossa experiência pessoal.

Aprendemos que o homem foi feito para trabalhar, assim como a ave para voar. De acordo. Mas, trabalhar para quê? Que fim buscamos no desempenho de nossas profissões? O primeiro milhão, prestígio, rede de contatos, sustento familiar, acesso a bens materiais, poupança, responsabilidade social, fama, estabilidade econômica, diversão? Há uma finalidade intrínseca ao trabalho?

Certa vez, alguém questionou alguns pedreiros a respeito do que faziam. Um respondeu, resignadamente, que quebrava pedras. O outro, num tom mais sério, disse que tirava dali o sustento para sua família. O último, envolto num ar contemplativo, falou que estava construindo uma catedral. E para nós? O que significa o trabalho?

Buscar o significado ou sentido de alguma coisa quer dizer colocá-lo numa relação intrínseca com uma "fonte de sentido". Quando uma realidade é considerada significativa por si mesma, as demais assumem sua significação por conexão a ela.

Por exemplo, quando se considera importante, por si só, o dinheiro, qualquer atividade torna-se significativa na medida em que se consegue mostrar sua conexão com o dinheiro. Até que essa conexão não se efetive, o indivíduo segue reclamando um “para que”.

A fonte de sentido autêntica tem que ser algo com a qualidade de ser valioso em si mesmo e não em função de outra coisa, ou seja, não há de ser um valor relativo, mas absoluto. O único bem absoluto da criação é a pessoa humana como tal, isto é, enquanto um ser dotado de inteligência e vontade e não como mero instrumento para se fazer outras coisas.

Compreender cabalmente uma realidade é, assim, conectá-la com o ser humano enquanto tal. Com efeito, qual seria, então, a relação que o trabalho humano teria com a produção de bens de consumo e de serviços? Com a conservação do meio ambiente? Com a manutenção dos valores democráticos? Com o desenvolvimento econômico? E com a própria humanidade do homem? Como seriam estas relações? Existem efetivamente?

 Ainda que o homem e a sociedade tivessem todas suas necessidades satisfeitas, o trabalho seria um imperativo categórico? Qual seria o significado do trabalho? Qualquer que seja a resposta, é necessário estabelecer uma ideia clara e suficiente para orientar a prática concreta e que alcance a dimensão produtiva da atividade laborativa e a dimensão imanente do homem.

Antigamente, a ação humana, vista sob o ângulo do fazer (e não do ser), era entendida como derivada do “facere” latino, que incluía o significado do “agere” latino. O “facere” correspondia à “poiesis” aristotélica, uma força natural moderada e canalizada pela virtude da “techné” (traduzida pelos latinos como “arte”).

O “agere” correspondia à “praxis” aristotélica, uma força natural moderada e canalizada pela virtude da “phronesis” (traduzida pelos latinos como “prudência”). Nesse sentido, a ação de fazer algo era imanente, ou seja, estava compreendida na essência da pessoa. Estas dimensões apresentavam-se como inseparáveis. Em suma, o fazer de uma pessoa era coerente com o seu ser: o agir segue o ser.

A irredutibilidade do “agere” e do “facere” é perceptível quando uma pessoa pode obter um alto grau de perfeição no campo profissional e, ao mesmo tempo, ser uma pessoa frustrada. A abordagem clássica havia resolvido com grande profundidade os termos do problema da ação humana, expressa nas duas dimensões da ação acima citadas.

Quando um deles é privilegiado, o outro resta diminuído ou mesmo negado: é a regra atual. Se a pessoa é vista apenas no enfoque produtivista, a realização humana é resumida na produção de bens.

Ainda que se rejeite qualquer postulado de verdade acerca da natureza humana, a filosofia expulsa pela porta retorna pelo vão da janela: o homem que produz seria o modelo de realização humana. Os que não produzem ou que não atuem diretamente em atividades produtivas seriam uns seres cuja existência é parasitária e inútil: comporiam o legado da miséria humana, da qual faria parte este magistrado, ao menos quando resolvo escrever para o Correio...

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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