504 - Trabalho: evolução
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Antes da Idade Moderna, o trabalho era considerado uma atividade por meio da qual o homem dominava a natureza para atender as inúmeras necessidades de sua vida biológica. Tinha dois aspectos: o encontro entre homem e natureza e a capacidade de produzir bens materiais a partir dessa confluência.
O primeiro dava à noção de trabalho um matiz negativo, já que a natureza se mostrava inerte e resistente ao domínio humano, vencível apenas com o esforço próprio, ao contrário do segundo, de viés claramente positivo. Não é a toa que tais aspectos – esforço e eficiência – refletiram-se no idioma: “trabalhar” tem um sentido de enfrentamento penoso e “produzir” lembra uma condição de eficiência.
Naquela época, o primeiro aspecto prevaleceu e ressoa até hoje. Qualificar alguma atividade como “trabalhosa”, supõe uma dificuldade dolorosa. Mas atribuir uma conotação negativa ao “trabalhoso” pode sugerir uma suposta identificação entre negativo e trabalhoso, sobretudo a partir de uma lógica hedonista.
Para os gregos, a atividade propriamente humana era a vida da polis, tanto que, para Aristóteles, o exercício das virtudes dentro desta perspectiva vital - a vida política - asseguraria a felicidade do homem. Em contraste com essa atividade própria do homem, livre e pública, estava a atividade interna de cada família, impulsionada por necessidades biológicas exclusivamente.
Aqueles que ali viviam, a mulher, os filhos e os escravos não tinham uma vida propriamente humana, porque sua atividade não era livre e não manifestavam a singularidade de seu ser, dado que se concentravam totalmente na atenção da economia doméstica.
Evidente que esta perspectiva da ideia de trabalho carrega uma conotação negativa, enquanto impedia o exercício da atividade própria do homem. Contudo, a primazia do sentido de esforço deixa o campo do pensamento para dar lugar, a partir do século XVII, para o sentido de eficiência: a produtividade.
O fator determinante desta inversão foi a mudança de perspectiva que surge na filosofia teórica. O advento de novas ciências com forte matiz prático, substituindo a pura admiração da natureza por uma intervenção experimental planificada, provocou a primazia da ação sobre a contemplação para se chegar a um conhecimento verdadeiro.
Não haveria mais espaço para um olhar atento e contemplativo para se atingir a verdade das coisas em si mesmas, mas somente para uma intervenção ativa que obrigue “as coisas” à entrega de seus “segredos”. Surge uma atitude investigativa de dúvida, centrada numa visão “dominadora” da natureza, como se ela fosse, desde sempre, inimiga do homem.
Se a admiração tem algo de juvenil, a dúvida sistemática tem algo de envelhecido. A primeira confia na realidade; a segunda desconfia por princípio, ou seja, tem medo, que induz um estado de espírito defensivo. O conhecimento certo, mais do que dado pela realidade, tem que ser arrancado à força e, logo, não traz a gratidão, mas uma sensação de vitória conquistada (“os triunfos da ciência”). Aqui, não há lugar para o mistério. A realidade tem que ser perseguida até que se “renda” e confesse o que sabe...
E a mudança não foi só do método de conhecimento da realidade, mas do fim deste: a verdade das coisas, seu sentido e alcance dão lugar para a certeza, algo diverso, consistente na intensidade com que a vontade adere a uma ideia formulada pela mente. Logo, o método de conhecimento e não a realidade passa a ser o fiel garantidor da certeza, como se a receita adequada garantisse o sucesso de um prato (qualquer “chef” de cozinha sabe que não é assim).
Hoje, o modelo da ação humana está em agregar um novo conhecimento intimamente unido à prática, seja como fundamento deste conhecimento, seja pelas possibilidades de domínio da natureza que se abrem.
Estes serão os fatores que determinarão a primazia da produtividade, tornada possível pelo maquinismo técnico subsequente às novas ciências experimentais recém nascidas. Se, no século XVII, este quadro é mais uma perspectiva que uma realidade, foi o suficiente para o advento de uma nova mentalidade acerca do trabalho, predominante até hoje e simbolizado pela propaganda de uma famosa montadora alemã de carros, “Vorsprung durch Technik”: primazia através da tecnologia, em tradução livre.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).