505 - Trabalho: dimensão historicista


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


A concepção produtivista do trabalho, concebida no século XVII, não implantou seus objetivos imediatamente. A partir de então, o trabalho físico se tornou mais duro e as condições de trabalho mais desumanas que os séculos precedentes, tanto que o processo que culmina com a aparição do proletariado não guarda solução de continuidade com o trabalho humano nos séculos anteriores.

Em princípio, tais circunstâncias aparecem como um preço que deveria se pagar para a implementação da nova imagem do mundo e das perspectivas de domínio que se abriam ao homem, o qual toma consciência da eficácia de seu poder finalmente.

O sentido do trabalho passa a ser o desenvolvimento do poder humano de transformar a natureza e, sobretudo, de produzir, ou seja, a ação produtiva não receberá sua legitimidade a partir de um fim distinto, mas será sempre vista a partir de si mesma.

Como consequência, o modo do homem entender sua vida em sociedade transforma-se completamente. Ao privilegiar-se a atividade produtiva, os cidadãos proeminentes passam a ser aqueles que produzem e produzem cada vez mais. Ao passo que aqueles que se dedicam às atividades mais nobres, segundo a filosofia antiga, como professores, políticos, juízes e legisladores, são degredados da vida social. Chegam a ser denominados no século XVIII, por Adam Smith, como elementos passivos da sociedade...

A ideia de sociedade humana altera-se completamente: já não é mais uma pluralidade de pessoas que participam de uma visão comum de mundo e que sustentam uma tradição em comum, mas um conjunto de elementos produtivos que estão unificados pelas correlações devidas exclusivamente à organização do trabalho. Assim, a sociedade será, sobretudo, uma comunidade de trabalho.

A consciência de que o mundo se configura a partir da ação humana vai tomando mais feição ao longo do século XVIII e o que, no início, apresentava-se como uma simples inversão de perspectiva, vai se esgueirando para outros níveis de compreensão do homem.

O século XVIII também lança as bases do idealismo transcendental de Kant, Schelling e Fichte que, somado ao economicismo de Adam Smith, fez com que Hegel elaborasse a primeira grande filosofia do trabalho, no sentido mais amplo: seu intento era o de reaver as dimensões da ação humana, segundo a visão aristotélica, pois já antevia a alienação que o trabalho produziria na pessoa humana, segundo a importância dada ao produto de sua ação para o próprio homem.

Nessa perspectiva, as realizações da atividade humana já não são vistas como mero produto do trabalho humano, mas como manifestação do espírito, entendido como totalidade histórica, ao qual o homem deve sua existência determinada: cada homem é filho de seu tempo, isto é, é um produto de uma mentalidade, de uns costumes e de uma educação essencialmente históricos.

A postura hegeliana exerceu influência decisiva em Marx, que a aplicou no âmbito da atividade trabalhadora, entendida como a intervenção do homem na natureza e como a única realidade configuradora real do mundo. Qualquer outra dimensão da existência humana é reduzida a epifenômenos das relações de produção.

Para Marx, a História é o fazer-se do homem pelo homem, por meio do trabalho. E o homem é o fruto do ventre da História, o produto de um processo no qual o fator determinante tem sido a satisfação das necessidades imediatas por meio da atuação na natureza.

Se Hegel e Marx têm o mérito da descoberta de aspectos ignorados e de enfrentamento de problemas novos, por outro lado, os limites de suas perspectivas são preocupantes, não só pelo fato de as terem elevado a um critério absoluto da realidade acerca da existência humana, mas por terem reduzido as outras dimensões a meras derivações de seus postulados.

Nessa linha, a pessoa humana fica completamente dissolvida na coletividade, sem espaço para a concretude do indivíduo, o qual só pode ser reconhecido em função de suas funções sociais. A ideia de natureza humana perde qualquer sentido e o mundo torna-se o reino da faticidade neutra, simplesmente referida ao domínio econômico e produtivo do homem.

Se tudo flui, é inútil tentar pensar numa natureza humana permanente e que resulte influente para a ação humana. Desenvolvimento histórico no lugar de verdades eternas e história como resultante de conflito de forças: dois erros somados que não resultam num acerto.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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