506 - Trabalho: fonte de liberdade


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Iluminado pelas ideias de Hegel e Marx, a humanidade sofre um impacto: a mudança inicial tem lugar no fato de que o homem, ao invés de sentir-se num mundo estável, começa a pensar que suas bases estão sempre mudando: por evolução da técnica, os bens que construiu e que configuram seu mundo – desde cidades, casas, leis, relações até a caneta e o creme de barbear – são constantemente substituídos por outros melhores. E numa velocidade cada vez maior, ainda que tal fenômeno já existisse, mas sem que fosse sensível no espaço de uma vida inteira.

Essa capacidade de melhoramento técnico perdura até hoje, numa rapidez ainda maior. A durabilidade de um produto já não é uma qualidade desejada, já que seria um obstáculo à renovação. O mundo continua sendo moldado por processos tecnológicos que nos proporcionam outros objetos, que praticamente ficam obsoletos enquanto os novos estão sendo elaborados.

Não se questiona as inúmeras vantagens que a técnica tem proporcionado à vida humana: ninguém quer mais receber um relógio de bolso de presente de aniversário. Mas nos tornamos adoradores do trabalho produtivo, mesmo que, às vezes, ele seja o portador de novos medos que invadem o homem ante as potenciais capacidades destrutivas ou manipuladoras da técnica nele embutida.

Quando a técnica se eleva à condição de configuradora do mundo, a pergunta é elementar: uma realidade forjada exclusivamente pelo trabalho é uma realidade verdadeiramente humana? O louvor desenfreado ao trabalho não pode levar-nos a uma nova realidade que se volte contra o próprio homem, preso nessa laboriosidade sem descanso e sem contemplação junto a alguma transcendência?

Não se propõe aqui um novo bucolismo. Penso que o domínio da técnica criou uma mentalidade de constante mudança e progresso sempre para melhor, tornando-se a depositária das esperanças da humanidade, quando as realidades estáveis de nossa existência deveriam sê-lo.

E, como efeito indireto, a postura prática de que o novo é sempre bom e o antigo é sempre ruim: a categoria do “best seller” dá bem conta, no âmbito da literatura, que outrora nos brindou com um Shakespeare e com um Machado, que as criações têm uma vigência bem reduzida, à semelhança dos jornais. A música também foi atacada pelo mesmo fenômeno do metabolismo total: consumo durante alguns meses e, ao fim, uma composição fica antiquada para que outra ocupe seu posto.

Essa ideia tem o valor positivo de mostrar algumas características reais da condição humana, até então desconhecidas. Mas estas têm a limitação de sua parcialidade, pois enxergam o homem apenas sob uma perspectiva e quando inspiram uma organização humana, quero dizer, quando alcançam uma vigência prática, a parcialidade se converte em falso e maltrata a própria realidade humana.

Diante dessas e de outras coisas novas do mundo do trabalho, é conveniente evitar o erro de que as mudanças são fruto de uma ação cega e determinista da História, cuja raiz remota está no fatalismo grego, segundo o qual as coisas se sucedem inexoravelmente, independentemente do agir livre do homem. Esse buraco negro filosófico atraiu muitas e boas mentes para um labirinto de Creta, pois elimina, por completo, a liberdade humana.

O fator decisivo e o árbitro destas (e de outras) mudanças é (e sempre será) o homem, na condição de verdadeiro protagonista de seu trabalho. As reorganizações e inovações no mundo do trabalho devem buscar uma valoração fora do âmbito que lhe é próprio, ou seja, devem servir ao crescimento da pessoa, da família, da sociedade e da humanidade.

Interpretações de cunho mecanicista ou economicista, ainda que influentes nos dias de hoje, resultam superadas diante da realidade: banalização do repouso semanal, dilema familiar no trabalho da mulher, exploração do trabalho infantil, discriminação do trabalho do imigrante, inverno demográfico provocado pelos fluxos migratórios campo-cidade, entre outros exemplos.

O homem se entrega à aventura da transformação das coisas pelo trabalho para satisfazer suas carências materiais, mas o faz seguindo um impulso que o impele sempre para além dos resultados alcançados, em busca do aspecto transcendente que corresponda às suas exigências interiores mais profundas. Nesse sentido, afora o contexto execrável da máxima nazista, o trabalho liberta (Arbeit macht frei).


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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