507 - Trabalho: visão onipotente


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


Uma sociedade moldada pela visão onipotente do trabalho tem dois atributos negativos. Primeiro, o consumismo desenfreado, entendido como uma sociedade em que as realidades que a constituem já não são mais objetos estáveis destinados a um uso duradouro; são objetos para o imediato consumo.

A pouca durabilidade das coisas não se deve a defeitos intrínsecos de sua elaboração, mas decorre como efeito do sistema de primazia do trabalho. A renovação constante dos objetos torna-se uma determinante de um sistema focado pela perfeição material crescente.

Essa situação dá lugar a um tipo de pessoa cada vez mais cheio de necessidades. Aliás, a propaganda se afinou com o sistema produtivo de tal maneira que transforma os caprichos de ontem nas necessidades do amanhã e, ademais, envolve a pessoa de tal forma que pareça que sua vida esteja desprovida de sentido: consumo, logo, existo. A sociedade de consumo dá a luz a seres perenemente insatisfeitos.

A par das necessidades crescentes, induz-se no homem uma atitude de confiança no domínio total dos processos naturais, desde o de melhoramento da produtividade agrícola até o de combate das limitações e dores que nos afligem diariamente, como a depressão, o mal do homem moderno: em todos os casos, a solução se dará por via do domínio técnico-científico exclusivamente.

 A primazia da ação sobre a contemplação traduz-se na preponderância de uma atitude intervencionista, sem que, muitas das vezes, haja uma busca de sentido destes fenômenos naturais. Em nenhum âmbito vital vê-se tão claramente o equívoco desta mentalidade que no campo da reação diante da dor.

Desde sempre o homem tratou de encontrar uma maneira de mitigar suas dores. Mas essa busca não era um obstáculo para se procurar um sentido para a dor. Atualmente, a dor é fator desencadeante da ação do homem para eliminá-la a qualquer custo. A dor, em si mesma, deixou de ser um enigma ligado ao mistério próprio do homem e passou a ser vista como uma perturbação técnica merecedora de tratamento técnico pelos profissionais da área.

Certamente, essa postura conduziu a Medicina a progressos incomensuráveis para a humanidade, mas deixou o homem literalmente indefeso ante uma dor inevitável. O recurso a psicofármacos em casos em que o exercício de virtudes seria mais eficaz e os casos cada vez mais comuns de suicídios por causas mínimas têm a raiz comum na unilateral confiança do homem no domínio total da natureza.

A sociedade de consumo é uma sociedade destemperada e que confia cada vez mais no auxílio dos artefatos elaborados pelo homem e, consequentemente, aparta-se do cultivo daquelas dimensões vitais que a técnica pode prestar menor grau de socorro.

Se o desenvolvimento da técnica é válido, principalmente para a superação das limitações materiais da vida humana, quando ela configura uma sociedade de maneira decisiva, os corretivos necessários são muito mais poderosos e, não raro, dolorosos.

O segundo atributo negativo é a complexidade do processo de produção de bens, cada vez mais sofisticados. A fragmentação deste processo requer que cada um dos intervenientes realize somente uma parte mínima, desconhecendo, na prática, aquilo que fazem os demais que também atuam no mesmo processo. Tal fato poderia ajudar a formar uma consciência de trabalho em equipe, mas, na prática, isso não existe, pois suporia que cada um dos atores do processo de produção conhecesse o todo e entendesse seu sentido.

O fracionamento do trabalho não é devido apenas à própria complexidade do produto pretendido, mas também como imperativo de produtividade. Nisto, coincidem as análises de Adam Smith e de Marx: a produtividade se deve muito mais à divisão do trabalho que ao trabalho propriamente dito.

A primazia do trabalho na consideração da ideia de sociedade acaba por reduzir a sociedade humana a uma mera organização laboral, onde a convivência é articulada, artificialmente, de maneira que as pessoas possam convergir suas faculdades apenas no labor e para produzir mais e melhor.

Seria uma espécie de visão antropológica mecanicista que faz da política uma técnica e da sociedade um edifício, no qual cada um de seus elementos é alheio ao conjunto, estando integrados em razão de fatores extrínsecos somente. Um edifício assentado sobre o erro de considerar o homem somente um ser destinado ao trabalho. Um edifício prestes a tombar e sem qualquer ponto de apoio sólido: um problema que nem Arquimedes resolveria.


André Gonçalves Fernandes
é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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