508 - Trabalho: nova ética
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
A perspectiva que devemos adotar para o tratamento ético do trabalho não pode ser meramente mecânica ou econômica, pois, em primeiro lugar, não nos interessa a articulação das forças físicas que, indubitavelmente, estão sempre envolvidas no trabalho humano. Tampouco, na mesma ordem, não é relevante a produtividade e as correlações devidas ou requeridas para uma maior eficácia dos processos de produção de bens.
O tratamento ético reclama uma perspectiva a partir da humanidade do homem, ou seja, interessa-nos colocar de manifesto de que modo a humanidade do homem está engendrada nas atividades denominadas de trabalho e, por conseguinte, de que modo os diversos aspectos destas atividades são matéria de interpelação ética para a liberdade humana.
Assim, frente às inúmeras correntes filosóficas baseadas na produtividade do homem, os princípios antropológicos para uma ética do trabalho devem passar necessariamente pelo postulado da abertura do homem à transcendência. Do contrário, as peculiaridades da pessoa humana se volatilizam e não se consegue fundamentar adequadamente nem a dignidade absoluta do homem, nem sua realidade transcendente em face da natureza da qual também faz parte.
Logo, o trabalho não pode ser resumido a uma simples mercadoria exposta a quem oferecer maior paga, nem a uma força anônima e cega ou a um mero instrumento de produção. O trabalho é uma atividade da pessoa. Com efeito, o trabalho procede, de modo imediato, da pessoa, a qual exerce e aplica nele uma parte das capacidades inscritas na sua natureza. O homem, com seu trabalho, desenvolve a face da sociedade e presta serviços aos outros: em suma, humaniza-o.
No trabalho, comprometem-se a inteligência e a vontade do homem. Não é um impulso instintivo, mas algo intencional, específico do ser humano e decorrente de uma vocação natural. Em sentido próprio, só homem trabalha. Os animais e as máquinas só o fazem por analogia. Precisamente, por ser atividade intencional da pessoa humana, o trabalho é uma coisa digna, seja qual for o trabalho realizado.
O trabalho pode ser avaliado pela produtividade, pela eficiência, por outros critérios de valor econômico ou mesmo pelo prestígio social, mas, para além destas valorizações, o trabalho tem uma dignidade intrínseca e o primeiro fundamento do valor do trabalho é o próprio homem, seu sujeito.
O homem, ao trabalhar, não só modifica a realidade como transforma a si mesmo ao ter consciência do que realiza e deseja. Ou seja, a atividade laborativa não só procede do homem como para ele também se ordena: aprende, desenvolve suas faculdades físicas e intelectuais e supera-se. Tal aperfeiçoamento, se for bem compreendido, é mais importante que as riquezas por ele geradas a partir do trabalho.
O trabalho tem um duplo sentido: o objetivo, mediante o qual o homem expressa seu domínio sobre a realidade posta e o subjetivo, decorrente do agir humano enquanto ser dinâmico, capaz de levar a cabo várias ações que pertencem ao processo do trabalho, condensadas em sua vocação pessoal.
O trabalho objetivo constitui o aspecto contingente da atividade do homem, que varia incessantemente em suas formas segundo a evolução da técnica. O trabalho subjetivo configura a dimensão estável do homem, porque não depende daquilo que o homem realiza concretamente ou do gênero de atividade que exerce, mas somente de sua dignidade de ser pessoal.
Tal distinção tem o mérito de sublinhar corretamente o fundamento último do valor do trabalho, à vista do problema de uma organização social, fomentada pelo trabalho, que respeite os direitos do homem, sem que se redunde numa ideia mecanicista ou economicista dos processos de trabalho.
O trabalho, portador de uma intrínseca dimensão social, possibilita o aperfeiçoamento da pessoa ou a deterioração de sua humanidade, motivo pelo qual a dimensão subjetiva deve preceder a objetiva. O valor primordial do trabalho pertence ao próprio homem, autor e destinatário de sua atividade. O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho.
Ao contrário da retórica marxista, o trabalho não é alienante pelo fato de ser executado sob a regência de outro, mediante a contraprestação em dinheiro. O trabalho é alienante quando impede a realização humana de quem trabalha, privando-o naquilo que é e no que está chamado a ser.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).