509 - O homem atual – I
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
A figura de Sônia, do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski, traduz o diagnóstico do genial escritor russo para o homem moderno: uma menina de 17 anos, pai alcoólatra e irresponsável, madrasta deprimida, neurótica e agressiva, vários irmãos daqui e dali. Neste contexto, Sônia é levada à prostituição para o sustento da família (ou do que sobrou desta).
Contudo, ao contrário da percepção esperada pelo leitor e, principalmente, por Raskolnikov, um estudante influenciado por teorias sobre a origem estritamente humana da moral (na tradição de Maquiavel a Nietzsche), Sônia não guarda rancores do próximo. Muito pelo contrário, sente misericórdia por todos e, inclusive, por sua clientela.
Sônia não brilha para nós, seres voltados para o nosso umbigo, simplesmente porque ela ama. Para ela, se alguém ama, então é livre. Segundo o autor russo, quando Sônia, em seu movimento de amor, torna-se opaca (antes, uma menina perdida que, agora, necessita reencontrar-se), estamos no reino do niilismo chique e científico, a saber, a ciência, e sua cultura, incapaz de produzir valor.
O homem atual, guardando-se a devida cautela quanto aos limites antropológicos e sociais, é caracterizado por um relativismo (cultural e histórico, fruto do próprio processo filosófico e científico moderno) que, por vezes, é apontado como solução para uma boa convivência democrática, dentro do espectro da tolerância à diferença. No entanto, tal atributo gera, sob outro ângulo, um impasse intelectual e prático, sobretudo no campo das aporias éticas.
Outro dado marcante do homem atual é sua completa dependência de toda situação que realize seu desejo. Aliás, tal constatação, que poderia ser meramente empírica, deixou esta esfera e ingressou no terreno axiológico, como um dos poucos critérios de valor. Some-se o apego generalizado pelas coisas materiais, as quais precisam ser adquiridas de forma imediata, paradoxalmente, na mesma velocidade com que, depois, saturam a pessoa.
Assim, a tríade relativismo-consumismo-hedonismo substituiu, num só golpe, o eixo que sustentou a humanidade por séculos, formado pelo transcendente, pela esperança e pela alteridade.
Evidentemente que a assunção da primeira tríade foi fruto de evolução do pensamento moderno, definido, primeiramente, sob a bandeira da cultura de separação entre filosofia e teologia (Descartes) e entre filosofia e ciência (Kant). Em seguida, pela cultura de identidade, quando identifica o absoluto com a história (Hegel) ou com a ciência (Comte) e pela cultura do efêmero, que nasce com a adoração do tempo, e pelo desprezo à verdade, representado pelo praxismo.
Entretanto, não se trata de refutar totalmente a cultura moderna, pois penso que cada uma de suas facetas contribuiu materialmente para o tesouro intelectual da humanidade, naquilo que de transcendente subsistiu em cada esforço em direção à verdade. As lições úteis devem ser conservadas, dentre as quais estão a depuração do que poderia se chamar de sensibilidade filosófica e os erros verificados a partir do desenvolvimento aberrante de algumas correntes de pensamento.
Diante deste humanismo antropocêntrico que assinala a humanidade, convém refutar o antropocentrismo e não o humanismo, porquanto é legítima a valorização do homem, mas não a sua absolutização, que degenera no niilismo. Em substituição, proponho um humanismo teocêntrico, único verdadeiramente integral, sem atavismos nostálgicos da Idade Média e sem refutar o grandioso e magnífico desenvolvimento das ciências no curso dos últimos séculos.
As ciências e a filosofia não mais estarão, como outrora, numa relação de instrumentalidade nos confrontos com a teologia, porém deve ser conferido o lugar certo na ordem de valores para as mais elevadas formas do conhecimento. É induvidoso que uma inteligência formada exclusivamente pelos hábitos mentais da tecnologia e das ciências dos fenômenos dificilmente vive um ambiente normal para o transcendente. Não obstante, a inteligência natural, que opera no senso comum, está centrada no ser espontaneamente.
Nunca os homens tiveram tanta necessidade do clima intelectual da filosofia, da metafísica e da teologia especulativa. Talvez, por isso, exista algum medo nesta aventura intelectual, a única via eficaz para reintegrar a inteligência ao seu funcionamento mais natural e profundo e, logo, reconciliar de novo as suas vias com o caminho próprio do transcendente. Nesse momento, a menina Sônia torna-se menos opaca, e podemos perceber que ela é, na literatura, a encarnação do verdadeiro humanismo que vaga por um mundo de cegos.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).