510 - O homem atual – II


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito


O problema do humanismo reside em termos inexatos, certamente porque a noção de humanismo guarda algum grau de afinidade com a corrente naturalística do Renascimento, enquanto, por outro lado, a noção de cristianismo – para muitos – ainda estaria influenciada pelas lembranças do jansenismo ou do puritanismo.

A arena de discussão não tem, num canto, o humanismo e, no outro, o cristianismo. Digladiam-se duas concepções de humanismo: uma, de natureza antropocêntrica, fruto do espírito do Renascimento e que teve em Montaigne o divisor de águas (quando perdeu suas raízes cristãs e tornou-se um áspero compêndio de laicismo moral) e outra de natureza teocêntrica, na linha de Tomás de Aquino.

Neste âmbito, as pessoas de João Paulo II e de Bento XVI são fundamentais no processo de reflexão acerca desse estado das coisas (Fé e razão, Memória e identidade, A fé em crise, O sal da terra, A esperança que salva), mesmo para além do campo estritamente católico. Reputados como conservadores, essas duas personalidades indicam as dificuldades dos dogmas contemporâneos.

O relativismo sem discernimento e a serviço do desejo, sem qualquer compromisso com a superação da ignorância, sem negar a importância de valores sociais, como a tolerância pela diferença, mas desde que implique na aceitação a priori de tudo. O hedonismo desenfreado que torna o outro mero instrumento da satisfação de nossos apetites sensíveis. O consumismo que mina toda esperança do porvir, já que importa apenas a preocupação desmedida pelo conforto material aqui e agora.

A existência humana é uma ópera dramática, e um dos modos de ver a justificação desse drama é exatamente perceber a validade atual de conceitos como o pecado, uma debilidade estrutural definida por um homem que enxerga apenas a si mesmo e que o torna hermético a qualquer reação que enfrente sua dinâmica repetitiva de amor próprio absoluto (Santo Agostinho).

Boa parte da produção intelectual feita à luz do humanismo antropocêntrico, que, por si só, deveria ser uma marcha do homem buscando sua superação, são construções a serviço dessa dinâmica: infelicidade é a conseqüência desta marcha para a insensatez, pois tem a capacidade de provocar a exclusão de Deus no mundo.

Assim, em que patamar a preguiça intelectual pode produzir aumento da exclusão de Deus? O pensamento, em si, não é um mal, mas se o homem exclui Deus de sua dinâmica essencial, necessariamente dialoga com o nada – o niilismo melancólico na melhor linha de Sartre.

A ameaça é que o intelecto humano tem a liberdade de destruir a si mesmo, no limite das coisas. Da mesma maneira que uma geração pode evitar a existência da geração seguinte, se todos resolverem entrar para um convento ou evitarem artificialmente a concepção, uma corrente de pensamento pode, de certo modo, impedir que se pense no futuro, ensinando às gerações vindouras que o pensamento humano carece de qualquer valor.

Tome-se, por exemplo, a questão sobre a suposta dualidade entre razão e fé. A razão é, em si, uma questão de fé. É um ato de fé afirmar que os nossos pensamentos têm qualquer relação com a realidade. Uma pessoa um pouco cética questionará: ”Por que alguma coisa está certa, seja uma singela observação ou uma simples dedução? Por que uma boa lógica não é tão quimérica como a má lógica, se ambas não passam de modestos movimentos de um impulso nervoso que percorrem as sinapses dos neurônios?” O novo cético professará: “Eu tenho o direito de pensar para mim.” E o cético completo, em tom professoral, dirá: “Eu não tenho o direito de pensar para mim. Aliás, não tenho direito absolutamente algum de pensar.”

Mas por que o homem contemporâneo persegue fórmulas de felicidade com tanta tenacidade? Porque um dos modos de experiência do pecado é a percepção final de que seu objeto supremo de amor, o eu, é efêmero, pois não tem suficiência ontológica. A aflição interior é o corolário da poeira que invade seus olhos e sua boca, produzida por ele mesmo, em seu movimento de buscar a si mesmo todo o tempo.

 Questões como essas povoam os intelectos dos doutos há milênios. Contudo, para se pensar nelas com algum grau de utilidade, é necessário quebrar o feitiço provocado pelo canto da sereia do humanismo antropocêntrico, segundo o qual todo o patrimônio intelectual da humanidade começou a ser produzido a partir da Revolução Francesa.

Na verdade, a partir deste histórico e importante evento, surgiu a fase madura do livre pensamento, cujo declínio se deu no século XX, quando começaram a proliferar filosofias com um toque de mania suicida e que levaram ao desmoronamento final do livre pensamento, pois, não tendo mais perguntas a fazer, começou a interrogar a si mesmo. O livre pensamento esgotou sua própria liberdade e se cansou do próprio sucesso.

Já não há mais nenhuma pergunta a ser feita. Procuramos perguntas nos lugares mais ermos ou nos cumes mais inacessíveis ao intelecto humano. Descobrimos todas as perguntas possíveis e já é tempo de as deixarmos de lado para procurarmos as verdadeiras respostas pelas quais anseia nosso intelecto, humano e, ao mesmo tempo, teocêntrico.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).


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