511 - Punição x vingança em crimes de trânsito – O perigo do “jeitinho brasileiro” e a necessidade de mudanças legais

CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA[1] - Juiz de Direito


Uma característica do povo brasileiro é o poder de adaptação às situações mais extremas, o que é uma qualidade inigualável.                                                   

Porém, talvez como um reflexo da mencionada característica ou até como uma forma de burlar as regras em um sentido genérico, encontramos uma corruptela perigosa que ganhou o mundo com a expressão “jeitinho brasileiro”.                                                          

Não se sabe a sua origem exata, mas os efeitos nefastos do “jeitinho brasileiro” são uma realidade conhecida por todos.                                                

Basta existir uma proibição ou qualquer espécie de dificuldade para aparecer alguém com uma idéia que resume uma forma de desvio do comportamento indicado socialmente e uma fuga da real solução da dificuldade.                                                 

Enquanto a flexibilização moral e comportamental está relacionada com pequenos aspectos da vida em sociedade, embora criticável, não chega a causar um impacto social maior.     

Todavia, quando atinge normas, em especial de direito penal, o “jeitinho brasileiro” deixa de ser um problema moral, para se tornar um real atentado à segurança jurídica e indiretamente ao próprio Estado Democrático de Direito.                                                          

É fato que a sociedade brasileira está vivendo um momento ímpar de assombro e de debates com relação ao tratamento a ser dispensado à pessoa que mata ou fere com gravidade na condução de veículo automotor, em via pública, sob os efeitos do álcool ou de substâncias de consequências análogas.                                                   

Indiscutivelmente, o tratamento penal, mais precisamente o preceito secundário (sanção), dispensado aos crimes de homicídio culposo e de lesão corporal culposa de trânsito, envolvendo a embriaguez, é por demais brando para exercer uma efetiva finalidade preventiva no tocante à conduta incriminada.

Também, as reprimendas não chegam a representar uma efetiva retribuição na proporção do mal praticado.

Porém, não é o fato da legislação se encontrar ultrapassada e, ainda, existir um aumento na prática de tais condutas, somadas a uma aparente paralisação do legislador no ato de criar leis e atualizá-las no âmbito penal, que poderá justificar a metamorfose de um crime culposo para um crime doloso, através do chamado “jeitinho brasileiro”.                         

O diferencial entre o dolo e a culpa, mesmo quando se fala em dolo eventual e em culpa consciente, é a vontade, um elemento que não está previsto em condutas culposas.       

Vontade, seja ela direta ou indireta, não se presume, e precisa ser demonstrada em casos envolvendo acidentes de trânsito.                                                         

Apresenta-se oportuno recordar que, qualquer flexibilização nos conceitos dos institutos do direito penal com a intenção de substituir o legislador penal na sua obrigação de manter a legislação contemporânea à realidade social, representa precedente perigoso e fonte de injustiça.                                                           

Inclusive, embora seja difícil a conceituação do real significado da palavra “justiça”, o certo é que ela não se confunde com a vingança em um Estado Democrático de Direito em que vivemos no Brasil.                                                     

A sanha de uma família atingida pelo crime e, em consequência, pela dor, e ainda, o ódio popular não podem ser fontes para a tipificação de uma conduta por quem possui conhecimento técnico e jurou defender a constituição e as leis do País.                           

Dos atingidos pelos eventos nefastos de forma direta ou indireta, bem como daqueles que não foram iniciados nas ciências jurídicas, pode-se aceitar a busca da punição por crime doloso em casos envolvendo condutas culposas de trânsito.                                             

Porém, as autoridades policiais, promotores de justiça e magistrados, preservados que são legalmente de qualquer envolvimento direto ou indireto com relação aos fatos por eles trabalhados, não podem se dar ao capricho do “jeitinho brasileiro”, em face da responsabilidade social dos cargos exercidos.

Não se pode olvidar do exemplo histórico trazido pela flexibilização do direito e da sua interpretação baseados em uma suposta vontade popular na Alemanha Nazista, expressada na frase “sã consciência do povo alemão”.

Com base na “sã consciência do povo alemão”, direitos e garantias que eram reconhecidos anteriormente pela constituição social de Weimar foram desrespeitados, a ponto da norma ser a vontade de Hitler e não do próprio povo alemão.

Obviamente, o Brasil não enfrenta o perigo do nazismo, mas, como qualquer sistema jurídico que se submete à variação da vontade popular, muitas vezes alimentada por uma mídia equivocada e sensacionalista, corre o risco de sofrer de uma subjetividade exagerada e da falta de segurança jurídica no tocante à interpretação e aplicação das normas. Cite-se a chamada Lei dos Crimes Hediondos (Lei Federal n. 8.072/90), fonte de discussões e de reprovações que até hoje ocorrem, mesmo com as mudanças operadas para permitir a progressão de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Apresentadas as críticas acima, o que se mostra mais adequado para punir e prevenir crime de trânsito com resultado morte ou ferimento grave das vítimas, quando os agentes estão alcoolizados ou sob o efeito de substâncias análogas?

Aumentar as reprimendas atuais previstas para os crimes culposos de trânsito dos artigos 302 e 303, ambos da Lei Federal n. 9.503/97, não se mostra adequado, uma vez que se equipararia uma conduta culposa simples com uma mais grave que é a de se colocar à direção de um veículo automotor após ingerir álcool ou substância de efeitos análogos, injustiça na mesma proporção que existe em se classificar uma conduta culposa como crime doloso por dolo eventual.

Por outro lado, passar a classificar as condutas de homicídio e de lesão corporal de trânsito praticados por quem estava sob influência do álcool ou de substância de efeitos análogos, representaria equiparar alguém que mata com a vontade de matar e ferir ou que assume tal risco, usando o veículo automotor como mero instrumento, com alguém que matou ou feriu sem assumir psicologicamente a possibilidade de matar ou ferir alguém, bem como que, muitas vezes, sequer possui condições de discernir sobre os resultados de dirigir um veículo automotor no estado de embriaguez.               

Acreditamos que a melhor medida que se apresenta é a criação de uma previsão preterdolosa para tais condutas, como parágrafos nos artigos 302 e 303, ambos da Lei Federal n. 9.503/97, o que já existe no caso do crime de lesão corporal seguida de morte prevista no artigo 129, §3°, do Código Penal, existindo dolo no precedente de consumir o álcool ou substância de efeito análogo e assumir a condução de veículo automotor e culpa no resultado lesão corporal grave ou morte.

Os preceitos secundários em tais condutas propostas no parágrafo anterior precisam ser um meio termo entre o crime culposo e o crime doloso, constituindo bom exemplo as sanções previstas no artigo 129, §3°, do Código Penal.

Soma-se, ainda, a proibição do álcool, de forma absoluta, da direção de veículo automotor, ou de qualquer substância que cause efeitos semelhantes, sendo isso o real ponto de controle da condução segura de veículos automotores nas vias terrestres.

As soluções propostas poderão, a nosso ver, adequar a gravidade social da conduta à proporcionalidade da reprimenda, podendo permitir a prevenção geral e especial, além da retribuição, evitando-se os dois extremos da quase impunidade e do excesso de punição, dentro de uma visão funcionalista do direito penal.

19 de dezembro de 2011.


Bibliografia consultada

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo/Brasil: ed. Martins Fontes, 2009.

BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. J. Cretela Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 1999.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2010.

GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. 1. ed. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2002.

PALAZZOLO, Massimo. Persecução penal e dignidade da pessoa humana. 1ª ed. São Paulo: ed. Quartier Latin, 2007.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: ed. Saraiva, 2000.


[1] Professor de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor coordenador do 6º curso de especialização em Direito Processual Penal da Escola Paulista da Magistratura.


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