512 - É possível o perdão judicial em crime doloso? – Sistema penal aberto, adequação da norma à realidade social


CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA[1] - Juiz de Direito


É possível o perdão judicial em crime doloso?                                                       

A resposta ao presente questionamento não começa com uma investigação teórica, mas com um caso prático, demonstrando que o direito não é meramente uma obra da arquitetura da razão, mas instrumental para a vida em sociedade.                                                     

Há alguns anos, atuando como magistrado, junto à 4ª Vara Criminal Central, acabei por julgar o caso de um rapaz, com cerca de 19 anos de idade, o qual havia se envolvido em um roubo, com uso de arma de fogo e extrema violência, troca de agressões à bala com policiais militares, resultando em um réu preso em flagrante delito, mas irremediavelmente tetraplégico, sem qualquer movimento além dos olhos, bem como sem conseguir falar, podendo apenas ouvir e balbuciar grunhidos incompreensíveis.                                            

A pessoa em questão não se lembrava do que acontecera, possivelmente pelo trauma, mas mantinha alguma capacidade de raciocínio.                                                     

A materialidade e a autoria do crime estavam fartamente demonstradas por imagens de câmeras de circuito interno do estabelecimento e pelos depoimentos das vítimas da violência.                                               

Também não havia qualquer dúvida quanto à culpabilidade do rapaz e a sua vida pregressa demonstrava que o crime praticado era apenas mais um em muitos ilícitos violentos.

A condenação à pena privativa de liberdade foi o resultado natural.

Todavia, o problema continuou na minha mente e, dias depois, passei a questionar a pena aplicada no processo e sua própria finalidade.                                                    

Indiscutivelmente, dentro de uma visão retributiva da pena, baseada nas idéias de Immanuel Kant e na chamada escola clássica, Justiça foi feita.                                                       

Porém, não estamos mais relegados a uma mera função retributiva da pena, tendo ela também uma finalidade preventiva e, com base na escola positivista de Enrico Ferri, uma função de reabilitação.                                               

Soma-se a isso o próprio funcionalismo moderado da pena, segundo Claus Roxin.          

Logo, Justiça não foi feita!                                                  

Isso porque não existe retribuição maior no nosso sistema jurídico do que as próprias consequências dos atos ilícitos praticados pelo réu.                                                  

Também não há que se falar em prevenção especial pela própria situação final do condenado, bem como de uma prevenção geral se ele estiver encarcerado e longe da sua comunidade, onde, vivo e em liberdade, representaria um monumento de advertência para outros jovens que pretendessem trilhar o mesmo caminho.                                                       

Além disso, é impossível a reabilitação de alguém tetraplégico, sem condições de comunicação adequada e sem lembrança do crime cometido.

Ademais, a aplicação da pena privativa de liberdade, no mencionado caso, representa um ônus excessivo para o Estado, que não possui local adequado para a guarda do preso tetraplégico e nem condições de respeito a sua dignidade.                                                    

Com certeza, a solução adequada teria sido a não aplicação da pena privativa de liberdade, pela ausência dos pressupostos decorrentes da sua finalidade social e funcional.                   

Constatada a solução mais justa dentro de um ideal de humanismo e pragmatismo social, como chegar à medida correta no nosso ordenamento jurídico?                                          

O único instituto que permite a justificação e a equalização entre o caso prático e a norma, no presente caso, é o instituto do perdão judicial.                                                 

Deveras, o instituto do perdão judicial permite o reconhecimento do fato típico, antijurídico e da culpabilidade sem a aplicação de pena.

Não obstante, o perdão judicial é um dos institutos mais polêmicos do nosso sistema, não tendo aparecido nas Ordenações do Reino, bem como nos Códigos Criminais do Império e nos Códigos Penais de 1890 e de 1940.

O instituto do perdão judicial passou a integrar o Código Penal em vigor apenas em 1977, através da Lei Federal n° 6.416 de 24 de maio de 1977, a qual acrescentou, entre outros dispositivos, o atual §5° junto ao artigo 121 e o §8° junto ao artigo 129, ambos do Código Penal, para o estabelecimento do instituto.           

Posteriormente, com a reforma da parte geral do Código Penal de 1984, passou a ser uma das causas de extinção da punibilidade prevista no artigo 107, inciso IX do Código Penal.

Ainda assim, mesmo existente no ordenamento jurídico, a doutrina, com medo da impunidade, sempre se posicionou no sentido de o perdão judicial ser aplicado apenas nos casos previstos expressamente e nunca para um crime doloso.                                              

A polêmica não existe apenas em terras brasileiras, alcançando outros Estados.

Em Portugal, o instituto recebe o nome de “dispensa de pena”, também integrado ao seu ordenamento jurídico em 1977, padecendo da mesma discussão sobre a sua aplicação estar circunscrita apenas às hipóteses especialmente previstas na lei ou, ainda, como as atenuantes genéricas, poder abranger outras hipóteses não previstas expressamente.          

Outro ponto de diferença nos diversos ordenamentos jurídicos que aceitam o instituto da dispensa de pena ou perdão judicial reside no condicionamento da aplicação do benefício à classificação da conduta como “crime de bagatela”, a exemplo de Portugal.

A Itália ainda estabelece a sua incidência apenas no caso do direito penal de menores, ao passo que, no Brasil e na Alemanha (§ 60 do CP), a base da aplicação do instituto está na idéia de as consequências do crime atingirem o agente de tal maneira a inviabilizar qualquer sanção.

Talvez, o melhor exemplo do desenvolvimento da funcionalidade da pena esteja no direito russo, no qual não há condicionantes à aplicação do benefício, trazendo liberdade para os julgadores adequarem o direito aos casos concretos.

Mostrada a polêmica mundial quanto ao instituto do perdão judicial, retornamos para o Brasil, onde, não obstante o ordenamento jurídico traga a previsão legal mais adequada, a nosso ver, dentro da idéia de oportunidade e necessidade da pena, também apresenta o óbice da grafia do artigo 107, inciso XI do Código Penal.

Em uma primeira análise do texto legal pátrio, já estaria respondida a nossa questão inicial, com a resposta sobre a impossibilidade da aplicação do perdão judicial em crimes dolosos.

No entanto, deixando uma visão engessada de um positivismo exacerbado e radical, considerando um funcionalismo moderado da finalidade da pena e do próprio direito penal, deve-se cogitar da possibilidade da aplicação da analogia “in bonam partem”.

A analogia em benefício do réu não é vedada pelo princípio da reserva legal.

Apresenta-se oportuno mencionar que não se está defendendo o instituto para qualquer caso, ao gosto do julgador, mas para situações extremas como a apresentada no início do trabalho, cabendo ao Ministério Público se insurgir quando não for uma situação adequada para o instituto e ao Tribunal competente corrigir os eventuais desvios na aplicação do perdão judicial em crimes dolosos.

A medida proposta se mostra mais adequada, pois não existe uma solução única para todos os processos criminais, como também não existe um remédio que possa cuidar de todas as patologias existentes, devendo o juiz possuir um rol de soluções que permitam a adequação da norma à realidade social.

O magistrado precisa ter maior flexibilidade no ato de interpretação e aplicação da lei, como ocorre em outros países, caso dos Estados Unidos da América do Norte, não podendo ser relegado a um sistema fechado e à condição de mero repetidor da norma escrita.

O Direito Penal Moderno, com o desenvolvimento de uma visão político-criminal funcionalista, além do célebre trinômio da aplicação da pena, qual seja, o fato típico (previsão da conduta no ordenamento jurídico-penal), antijurídico (contrário ao ordenamento jurídico) e culpável (reprovável ou censurável), passou a exigir a “necessidade” (a precisão de prevenção geral e especial representada pela pena), o que não se observa em casos em que a conduta ilícita do agente voltou-se contra ele de tal forma que a punição criminal seria mero exercício de vingança pública.


Bibliografia de apoio

AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas da ciência penal contemporânea. São Paulo: ed.  IBCCRIM, 2007.

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FERRI, Enrico. Princípios de direito penal. Trad. Paolo Capitanio. 2ª. ed. Campinas: ed. Bookseller, 1999.

GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. 1. ed. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2002.

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[1] Professor de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor coordenador do 6º curso de especialização em Direito Processual Penal da Escola Paulista da Magistratura.

 


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