516 - Tratados internacionais podem estabelecer tipos penais incriminadores? – Direito Penal de Terceira Geração


CARLOS ALBERTO CORRÊA DE ALMEIDA OLIVEIRA[1] - Juiz de Direito 


Resumo
: O Direito Penal iniciou a sua tutela pela preocupação com o controle do comportamento desenvolvido por indivíduos em sociedade, para passar a se preocupar com as condutas praticadas por pessoas jurídicas. Todavia, no século XXI passa, necessariamente, a se preocupar com os atos praticados pelos Estados, organizações públicas e privadas de ação internacional que atentem contra a humanidade, os quais afetam a ordem pública interna dos países e a ordem internacional, motivo pelo qual as normas penais não podem mais ser de expressão interna a cada um dos Estados, precisando passar para um âmbito internacional, o que permite a preservação da humanidade, o controle e a punição de condutas que gerem perigo internacional. Os tratados representam o meio para a ação da terceira geração do Direito Penal. 


Palavras-chave
: Direito Internacional Público; terceira geração; penal e prevenção; internacional.  

O novo milênio, como os outros, inaugura novos desafios e riscos para a sobrevivência do homem, mormente após o esfacelamento das grandes estruturas armamentistas em decorrência do fim da chamada “Guerra Fria”, o que disponibilizou mercenários, tecnologias e armamentos com a potencialidade de destruição em massa, com condições de serem adquiridos e utilizados por outros Estados e por organizações de expressão e ação internacional com interesses contrários aos do desenvolvimento e segurança da humanidade.

Em razão disso, a ação protetiva dos Estados não pode mais ser individual, uma vez que a eficiência de qualquer medida que busca uma proteção internacional passa, necessariamente, pela união e pela busca de soluções comuns, repercutindo em uma legislação Penal de terceira geração com a característica de ser comum a todos os Estados e de ação internacional.

Um Direito Internacional Público eficaz, em uma época de globalização de tecnologias e de problemas, requer o desenvolvimento de uma legislação comum, em especial no âmbito do Direito Penal e do Direito Processual Penal, iniciando-se com tratados, para passar, posteriormente, a uma legislação comum.

Os tratados representam o meio de viabilização da terceira geração de proteção da vida em sociedade e da própria humanidade, enquanto se forma a sociedade internacional que permitirá a criação de uma codificação internacional. 

Direito Internacional Público e o Direito Penal 

A existência de um verdadeiro Direito Internacional Público é questionável, uma vez que a expressão sugere a existência de uma sociedade internacional, uma legislação uniforme e uma ação homogênea por parte dos diversos Estados, o que ainda não é uma realidade nesse momento.

O próprio conceito de Direito Internacional não é pacífico, existindo juristas que o definem como sendo o “Direito entre as gentes”, “Direito entre as sociedades internacionais” e o “Direito entre os Estados”.

Atualmente, buscando um conceito apaziguador, considera-se o Direito Internacional Público como sendo aquele aplicável entre os Estados e entre as organizações internacionais, como é o caso da Organização das Nações Unidas (ONU).

Em razão da relação do conceito de Direito Internacional Público com a ideia de Estado, diversos juristas equiparam o início do Direito Internacional Público ao aparecimento dos Estados na Idade Moderna, esquecendo o fato de existirem Cidades Estados e Impérios na Antiguidade, e ainda Reinos na Idade Média, os quais mantinham relações de controle e de sobrevivência através de tratados, expressão empregada em um sentido genérico.

Seja no passado como no presente, a idéia básica por trás de um Direito Internacional Público é a subsistência das diferentes e autônomas sociedades através de pontos de interesse comun materializados por tratados, com tendência à evolução para uma legislação uniforme conforme se desenvolva e se implante a chamada sociedade internacional, unificando as sociedades autônomas.

Diante da celeuma acima apresentada sobre a abrangência do Direito Internacional Público e a sua ação, decorrente da própria discussão quanto ao seu conceito, alguns juristas insistem em afirmar a inaplicabilidade dos tratados para a definição de tipos penais incriminadores, como se o Direito Penal e o Direito Processual Penal fossem uma reserva absoluta da soberania dos Estados.

Além disso, defendem a soberania de um Estado e a autonomia de uma Organização de ação internacional como um valor acima do interesse internacional pela segurança e pela manutenção da vida e da dignidade do homem no planeta.

Segundo tais estudiosos, os tratados dizem respeito à relação entre os Estados e as organizações internacionais, motivo pelo qual não podem estabelecer relações entre os indivíduos da sociedade interna e as pessoas jurídicas de um Estado e um ius puniendi internacional.

Porém, laboram com equívoco, uma vez que se vinculam a uma ideia de um Direito Penal de primeira geração, esquecendo-se de que a proteção da economia e do meio ambiente já fizeram o Direito Penal migrar para uma segunda geração com a responsabilização das pessoas jurídicas, algo impensado no passado, chegando-se a um Direito Penal de terceira geração com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), através do Estatuto de Roma.

Oportuno mencionar que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional estabelece tipos penais incriminadores próprios, definições peculiares e a jurisdição sobre indivíduos de sociedades de Estados autônomos, nas hipóteses previstas expressamente no seu texto.

Também, a própria soberania de um Estado já não é um valor absoluto, uma vez que o Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a atribuição de zelar pela paz e pela segurança interncional pode adotar decisões obrigatórias para os Estados membros e com a possibilidade de sanções que podem chegar a uma intervenção armada.

Tal evolução redundou na passagem do Direito Penal para uma terceira geração de tutela penal, mais precisamente com o controle de Estados, em como de organizações públicas e privadas que atentem contra os interesses da humanidade, demonstrando que a soberania de um Estado e até de uma organização precisa coexistir com um interesse internacional de proteção contra os riscos modernos à existência da humanidade.

Nesse panorama de um Direito Penal de terceira geração, os tratados representam a sua materialização com as convergências de vontades e de interesses entre os Estados, bem como não se confundem com uma expressão de força e de dominação externa e em detrimento da autonomia dos poderes internos de cada um dos Estados signatários.

Inclusive, no caso do Brasil, os tratados não passam imediatamente a serem fonte da legislação interna através da celebração pelo Presidente da República, uma vez que passam pela necessária aprovação pelo Congresso Nacional, nos termos do artigo 49, I da Constituição Federal, seguida da promulgação do texto pelo Presidente do Senado Federal, nos termos do artigo 57, §5° da Constituição Federal, para então serem ratificados pelo Presidente da República, com a consequente expedição de um decreto presidencial para a execução interna.

O tratado integrado ao Direito brasileiro passa a ter força de lei ordinária, podendo ser complementar, nos termos do artigo 69 da Constituição Federal e ainda, dependendo da matéria, emenda à Constituição Federal, conforme determina o artigo 5º, §3° da Constituição Federal.

Embora o Congresso Nacional não possa alterar o texto do tratado celebrado, pode rejeitá-lo, ou seja, exerce um efetivo controle sobre a sua conveniência social e sobre o seu interesse político, conduta comum a todos os projetos de normas submetidas às Casas do Congresso Nacional, razão pela qual, o estabelecimento de tipos penais incriminadores através de tratados é possível e não fere o princípio da reserva legal desde que respeitado o trâmite previsto na Constituição Federal.

Finalmente, com o avanço para a existência de uma efetiva sociedade internacional, bem como com o estabelecimento de um órgão internacional que represente a vontade dessa sociedade, podendo ser a própria Organização das Nações Unidas, é possível que haja uma codificação internacional no âmbito do Direito Penal e do Processo Penal, consolidando a terceira geração do Direito Penal de proteção contra Estados e organizações internacionais públicas ou privadas de ação contrária aos interesses da humanidade, iniciada com o Tribunal Penal Internacional, permitindo não só a proteção da dignidade da pessoa humana, mas a sua própria existência no planeta.

Bibliografia de apoio

AMBOS, Kai. A parte geral do Direito Penal Internacional. Trad. Carlos Eduardo Adriano Japiassú e Daniel Andrés Raizman. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2008.

DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick e PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Trad. Vítor Marques Coelho. Lisboa: ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: ed. Atlas, 2007.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito constitucional positivo. 6ª ed. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 1990.



[1] Professor assistente de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor coordenador do 6º curso de especialização em Direito Processual Penal da Escola Paulista da Magistratura.

 


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP