517 - Engana-me que eu gosto
LUIZ ANTONIO RIZZATTO NUNES – Desembargador
Existem várias versões para o significado da expressão “para inglês ver” e que remontam à sua origem. Uma delas diz que em 1815, os portugueses e os britânicos firmaram um compromisso, no qual Portugal se comprometeu a não mais traficar escravos. Todavia, como Portugal não vinha cumprindo o compromisso, o Parlamento Britânico acabou aprovando uma Lei que criminalizava a escravatura e concedia, unilateralmente, à frota real britânica poderes para abordar e inspecionar os navios portugueses. Como estratégia para enganar os ingleses, os portugueses carregavam a embarcação que ia à frente da frota com uma carga inofensiva para ser inspecionada, levando os escravos nos navios posteriores, que se safavam da inspeção.
Outra versão diz que, em 1831, o Governo Português promulgou uma lei proibindo o tráfico negreiro, mas como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, começou a circular a expressão de que a lei fora feita apenas “para inglês ver”.
E, ainda, outra versão diz que, após a partida da família real portuguesa para o Brasil, Portugal passou a ser uma espécie de protetorado da Inglaterra, que assumiu o comando da máquina militar lusitana na luta conjunta contra a França. Mas, os metódicos ingleses que queriam tudo organizado e por escrito tinham problemas com os práticos portugueses. Assim, a cada imposição organizacional inglesa, os portugueses botavam tudo por escrito, para mostrar que estava tudo em ordem. Mas, era só no papel. Servia apenas para agradar os ingleses e dizer que estava tudo arrumado, isto é, era só para os ingleses lerem (ou verem). Na prática, as coisas eram bem diferentes. O mesmo se dava nas visitas dos generais ingleses a certos locais, que eram preparados (maquiados, como hoje diríamos) para dar uma aparência diversa do real. Se os ingleses exigiam a construção de uma estrada, os portugueses deixavam pás, pedras e outros materiais no local da visita para simular a construção da mesma. Assim, diziam que já a estavam construindo. Era o que os ingleses viam. Ficou a expressão e o aprendizado. Mas, naquela época, consta que, de fato, os ingleses eram enganados.
Neste meu primeiro artigo do ano, abordo um assunto que, infelizmente, é básico quando se trata de relações de consumo: o das mentiras e toda sorte de enganações perpetradas por muitos fornecedores. Lembrarei também uma atitude de uma grande parcela de consumidores diante das mentiras – às vezes insultuosas --: a da aquiescência pueril; aceitam o falso sem senso crítico, apenas porque ele tornou-se banal ou é bem produzido, bem comunicado ou apresentado por alguém que detém autoridade. Muitas delas, apenas para inglês ver.
A propósito, atualizando a expressão e usando uma outra um pouco modificada, refiro-me a um filme tipicamente hollywoodiano, que no Brasil ganhou o título de “Esposa de mentirinha”, mas que em Portugal é intitulado “Engana-me que eu gosto”. Trata-se de uma simpática comédia estrelada por Adam Sandler e Jennifer Aniston. Ele, depois de uma decepção amorosa, que impediu seu casamento, continua a usar uma aliança no dedo, dizendo-se casado e, com isso, conquista muitas garotas. Diz ele no filme: “Descobri o poder da aliança”. Uma brincadeira, mas que, de todo modo, ilustra um fato importante: se de um lado a mentira pode ser conscientemente utilizada, de outro, muitas vezes, a pessoa enganada, estava mesmo interessada em sê-lo. Aceita a mentira porque lhe soa cômoda ou está de acordo com seu próprio interesse ou, ainda, porque não desenvolveu senso crítico capaz de percebê-la.
De há muito tempo que os consumeristas descobriram que um dos fundamentos da sociedade capitalista de consumo é a mentira. Largos setores empresariais são desonestos na relação com seus clientes, como, aliás, tenho mostrado em vários de meus artigos. Não há, claro, nenhuma novidade nisso. Quem conhece um pouco da história do comércio, da indústria, da economia etc sabe muito bem que os segredos, as artimanhas, os conchavos, os acertos escusos etc são a base da produção e distribuição de produtos e serviços. Transparência não é um termo conhecido ou utilizado e não porque alguém não queira ser transparente, mas simplesmente porque é da essência do modelo capitalista. Como diria Sócrates, a quem aqui já me referi, “mentir é pensar uma coisa e dizer outra”. Parafraseando-o, posso dizer que no processo de produção capitalista faz-se muita coisa mas se mostra outra diferente.
Vejamos a ladainha das sacolas plásticas nos supermercados da cidade de São Paulo. Evidentemente, todos estão a favor de eliminar do mercado os produtos que causem danos ao meio ambiente. Quem pode estar contra? A questão não é essa. Como disse meu amigo Outrem Ego, “Porque esse pessoal dos supermercados não veio a público e contou a verdade? Porque, simplesmente, não disseram: ’A partir de agora, os consumidores terão de pagar pelas sacolas para poderem levar suas compras”. “Será que precisava de tanto esforço? Fizeram lobby junto aos vereadores; aprovaram uma lei que dizia que seria para proteger o meio ambiente; sofreram derrota na Justiça e ao final fizeram o que queriam desde o início: impingiram o custo das sacolas aos consumidores”. “O interessante”, disse ele, “É que sempre passa o filme ‘Engana-me que eu gosto’. Tem consumidor que acredita na versão, especialmente se ela vem travestida de boas intenções como, no caso, de proteção ao meio ambiente. Boa!”. E meu amigo completou “Estão dizendo para o consumidor ir ao supermercado com o carrinho de feira. Ora, se é para ir com carrinho de feira, melhor ir à feira”.
Algumas mentiras tornam-se lugares comuns e de tantos serem utilizadas, a população passa a nelas acreditar, inclusive algumas expressões utilizadas regularmente. Por exemplo, é costume referir-se à indústria de veículos como a “indústria nacional de veículos”. Ora, nós não temos indústria nacional de veículos. São todas estrangeiras, aqui estabelecidas, muitas delas com enormes incentivos e que, todos os anos, enviam para o exterior os gordos lucros obtidos. Talvez devêssemos mesmo é lamentar que não tenhamos um veículo nacional como têm os americanos, os franceses, os italianos, os japoneses, os alemães, os coreanos , os chineses e não ficarmos nos “orgulhando” de uma indústria que não é brasileira.
E, por falar nelas e no tema da verdade, lembro que os jornais dos últimos dias noticiaram que o setor remeteu às matrizes no exterior nada mais nada menos que cinco bilhões, quinhentos e oitenta milhões de dólares. Vou até repetir: US$5,58 bilhões! (Em 2010 não ficou muito longe. Foram US$4,10 bilhões). Para se poder ter uma ideia da dimensão desse quantum, veja-se que dá US$465.000 milhões por mês ou R$790.500.000,00/mês (usado o dólar a R$1,70). É mesmo muito dinheiro e que sai do suado trabalho e do salário dos brasileiros.
Vamos aos fatos: esse setor industrial “nacional” produz veículos cuja qualidade em termos de tecnologia de ponta está atrasada em relação a outros lugares do mundo e os vende a preços altíssimos. O que os empresários do setor falam? Vivem reclamando dos impostos cobrados, querem por que querem incentivos fiscais (e, aliás, conseguem), cobram financiamentos públicos baratos (e também conseguem), reclamam da falta de competitividade etc. Ora, ora, pois como diria meu amigo acima: senhores, sejam honestos. Vocês estão vendendo a altos preços produtos de tecnologia e conforto inferiores aos produzidos no exterior e obtendo lucros sensacionais.
A questão é que, essas versões surradas são enfiadas pela goela das pessoas e repetidas tantas vezes que soam como verdades. As pesquisas mostram que as pessoas se acostumam com as coisas rotineiras, comuns, banais e acabam aceitando-as como válidas e verdadeiras. Ou, então, aceitam os fatos como se eles não pudessem ser diferentes. Para usar mais um exemplo de meu amigo. Disse-me ele que só percebeu que a cidade de São Paulo era tão esburacada quando viajou pela primeira vez ao exterior. Já há muitos anos ele dirigiu mais de 1.000 quilômetros por ruas e estradas americanas e canadenses sem ter passado por nenhum buraco. Mas, foi só quando retornou a São Paulo que ele percebeu como nossas ruas são incrivelmente esburacadas, onduladas, e estragadas. Vale dizer, que, sem alternativa ou jogados à própria sorte, as pessoas acabam aceitando as normas, o jeito do local que habitam, enfim o mundo em que vivem como se as coisas não pudessem ser de outro modo.
Quanto aos consumidores, estes estão tão absorvidos pelo mundo do marketing, da publicidade, das compras, que não conseguem se dar conta dos direitos que poderiam ter. Os consumidores vão sendo amaciados e tornam-se passivos na avaliação do real, acatando regras, contratos, imagens, textos como os ingleses do período acima citado ou pior, diante de uma realidade que, melhor avaliada, levaria à descoberta da verdade, acabam aceitando-a porque foram acostumados ao cômodo e inexorável andar das circunstâncias que não lhes pertence. Às vezes, claro, dela usufruindo, pois como diria a garota enganada pelo falso marido, “engana-me que eu gosto”.
6/2/2012