519 - Laicismo e relativismo
ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito
Laicismo e relativismo compõem uma estranha união, porquanto as rígidas proposições do primeiro demandam um caráter absoluto dificilmente vencível pelo segundo. Contudo, o inimigo comum une-os, conseguindo uma mistura incrivelmente miscível, já que um poderia ser considerado azeite e, o outro, água.
O relativismo rechaça toda justiça objetiva e o laicismo quem pretenda pregá-la. Hoje, quem tenha em mente soluções objetivamente mais verdadeiras que outras, será rotulado de autoritário, por mais aberta que seja sua atitude subjetiva na busca e na realização prática desta verdade.
Tal conclusão confunde o plano da realidade (existir ou não elementos objetivos) com o de seu conhecimento (pode-se conhecê-los racionalmente com maior ou menor dificuldade). O relativismo cria uma natural dificuldade de acesso à verdade e, em conseqüência, decreta que há caminhos diversos para acercar-se desta e tende a considerar o êxito alcançado como provisório.
Esta postura acaba por salientar que existe uma realidade objetiva que tem sentido buscar; do contrário, sobrariam todos os caminhos imagináveis e sempre nos posicionaríamos com um juízo relativista ao problema posto.
A propositada vinculação do moral com o religioso incrementa ainda mais a dificuldade do deslinde entre o jurídico e o moral. A tendência será de confinar o elemento religioso, incluídas suas propostas morais, no âmbito privado e preservar o jurídico em um âmbito público isento de qualquer possível influência daquele elemento.
Esta correlação, um tanto simplista, da perspectiva moral ao âmbito do privado e a jurídica ao do público deixa sem resolução o problema decisivo: como podemos demarcar a fronteira entre um e outro? Quais os critérios para decidir se determinado problema, por sua relevância pública, deva ser regulado pelo direito ou se convém “privatizá-lo”, deixando-o ao alvedrio dos critérios morais de cada qual?
O problema surge porque, somente partindo de um determinado conceito de pessoa humana (e da inevitável tradução deste nas diretrizes de um código moral), caberá desenredar o rol de exortações morais merecedoras de lastro jurídico e outras que competiria confiar ao critério pessoal. Assim como apartar os problemas que se revestem de relevância pública, os quais o direito não poderá ignorá-los, privatizando-os imprudentemente.
No momento de abordar esta questão crucial, não há saída que não a determinação do âmbito juridicamente relevante e tomar, como paradigma, de modo mais ou menos consciente, os princípios gerais do direito. Como as premissas antropológicas e morais não serão unânimes, sempre haverá quem não veja inserido no ordenamento jurídico sua proposta de solução. Considerando as convicções de todos, ao final haverá que se impor, a mais de um, aspectos que pessoalmente não são seus..
Ter em conta as convicções pessoais de todos equivale, de outra parte, a reconhecer que todos têm convicções. O laicismo tende a estigmatizar, como tais, apenas aquelas proferidas pelos crentes, como se os demais tivessem o cérebro oco. A partir de tal perspectiva, consolida-se uma concepção discriminatória da expressão “convicção”, vinculando-a de modo exclusivo aos juízos morais que guardem verossimilhança com posturas defendidas por determinadas confissões religiosas.
Situados ante a necessidade ineludível de traçar a linha entre o juridicamente exigível e o moralmente admissível, o laicismo opta por tomar partido disfarçado de árbitro. Atribuirá a patente de neutralidade a suas parciais propostas de não contaminação. Conseguirá assim, com rara eficácia, impor suas convicções pelo simpático procedimento de não confessá-las, apenas por havê-las formulado a partir de pressupostos filosóficos ou morais não claramente similares aos de uma confissão religiosa.
Característica desta escamoteada discriminação, atentatória à liberdade religiosa, é a proposta de que o direito assuma uma postura inibida, envergonhada, optando por mostrar-se neutro diante de problemas particularmente polêmicos.
Atalhar a controvérsia, apresentando com ar neutral condutas que antes eram rechaçadas por um juízo de valor mínimo, seria o modo mais eficaz, na ótica do laicismo, de contribuir para o progresso e de vencer o obscurantismo. Na realidade, apenas se substitui um anterior juízo de valor, submetido ao debate, por outro que, disfarçado de neutralidade, passa pela tangente de toda argumentação.
A causa última do problema acaba por surgir, como que por trás de um manto diáfano: as ideologias de matiz totalitário mostram-se incapazes de suportar uma convivência entre a autoridade moral e a potestade política. Reduzem tudo ao viés político, acompanhado – como mais uma expressão da soberania – do direito de infligir a todos os cidadãos um código moral que, não sendo neutro, neutraliza aquele vigente e inverte, assim, o jogo democrático.
André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Sumaré (agfernandes@tj.sp.gov.br).