525 - Estado laico e o homem


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito


O que é um Estado laico? Eis a decisiva questão de um problema que assola um mundo que trilha a senda da multiculturalidade, muito embora a chanceler alemã Angela Merkel, o primeiro-ministro britânico David Cameron e o presidente francês Nicolas Sarkozy tenham declarado, no ano passado, cada um a seu modo, a falência desta experiência em alguns aspectos.

Mesmo assim, a França fez a revisão de seu laicismo republicano, a partir do episódio da burka islâmica. A Turquia invocou a laicidade no âmbito político para conseguir sua entrada na União Européia, quase que evocando o espírito de Atatürk, líder político que embarcou o país num ambicioso programa de reformas políticas, econômicas e culturais no início do século XX.

A Itália apreciou a questão relativa ao uso de crucifixos nos ambientes escolares e a Suíça, via referendo, aprovou a proibição de construção de minaretes em seu território. Por aqui, a discussão ainda dá seus primeiros passos, mas a perspectiva de adensamento do debate é inevitável, sobretudo diante da tese de neutralidade como protagonista de um novo modelo de Estado. Por outro lado, a efetividade da liberdade religiosa está apoiada na norma do artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, assegurando o livre exercício das preferências religiosas que expressam os cidadãos.

A sociedade debate os limites da atuação estatal em relação ao fenômeno religioso e a Lei Maior dispõe sobre o direito de seu livre exercício. Quais seriam as razões de tanto interesse político e social pelo assunto? São inúmeras, certamente, mas friso aqui uma pouco comentada: a dimensão religiosa do homem.

Nesse ponto, Pascal já afirmou que “os homens desprezam a religião; odeiam-na e temem que seja verdadeira. Para acalmá-los, é preciso começar mostrando que a religião não é contrária à razão; que é digna de veneração e de respeito; em seguida, torná-la amável, fazer com que os bons desejem que seja verdadeira, digna de veneração, pois conhece exatamente o homem; amável, porque promete o verdadeiro bem” (in Pensées; ed. E. Helvet; Paris; 1968; p.187).

Hegel, filósofo de outra escola, também professou que “aquilo pelo qual o homem é homem, que o distingue do animal, é a consciência, o pensamento; mais precisamente isto: ele é espírito (Geist). O ponto do espírito se expande em múltiplas formas, e todas as diferentes ciências dele derivam, as artes e os infinitos entrelaçamentos de relações entre os homens, os interesses da vida política, usos e costumes, atividade e historicidade, gozos e tudo aquilo no que o homem procura a sua vocação, as suas virtudes e a sua felicidade, de onde a arte e a ciência retiram seu orgulho e a sua fama, as relações ligadas à sua liberdade e à sua vontade: tudo isso tem seu ponto central na religião, no pensamento, na consciência, no sentimento de Deus. Ele é o ponto de partida e o ponto de chegada de tudo, onde tudo começa e ao qual tudo retorna. [...] Dado que Deus é o princípio e o termo do agir e do querer, então todos os homens e povos têm consciência de Deus, da substância absoluta como verdade que é a verdade em si mesmo (in Vorlesungen über die Philosophie der Religion; Philosophische Bibliothek; v. 59; Lipsia; 1965; p.1).

O fenômeno religioso envolve a humanidade inteira e desde sempre. A antropologia filosófica e a etnologia-estruturalista dão conta de que o homem desenvolveu a dimensão religiosa desde seu advento e que todas as civilizações, das mais complexas às mais arcaicas, sempre cultivaram alguma forma de religião.

Desde o Paleolítico, o homem (Homo habilis e Homo erectus) é o homo religiosus que coroa suas demais dimensões: a racional, a afetiva, a biológica e a social. E esta realidade deve ser sempre respeitada pelo Estado laico, mesmo no atual ambiente de “cultura de repúdio” aos valores estruturais de nossa civilização (sobretudo do legado judaico-cristão) que faz parecer a dimensão religiosa do homem algo incompreensível como as pinturas rupestres de Altamira ou Lescaux. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito (agfernandes@tjsp.jus.br).


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