526 - O homem: ser religioso


ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES – Juiz de Direito


A discussão acerca do exercício da liberdade religiosa não se dá tanto pelo fundamento legal, mas pelo âmbito de atuação deste: o privado, confinando a religião a uma prática intimista ou, além desse, o público, simbolizado pelas inúmeras referências religiosas que tomam parte do cotidiano: monumentos públicos, festas religiosas populares, utilização de crucifixos em locais públicos, feriados religiosos, ensino religioso nas escolas públicas e, também, as concordatas feitas pela Santa Sé, segundo os postulados do Direito Internacional Público.

Nas raízes do debate, entre outras razões, o liberalismo político de John Rawls converteu-se num dos pontos de referência. Sua aceitação dos credos religiosos como propostas éticas compreensivas, suscetíveis de integração num consenso sobreposto, parece-nos uma proposição conforme com nosso texto constitucional.

Aqueles que pensam em contrário, no fundo, pretendem substituir os restos de uma postura confessional sociológica por uma distinção entre ética pública e ética privada, como se ambas não guardassem um relação intrínseca. Ainda sugerem uma presumida afinidade entre relativismo ético e estado de direito, este com seu objeto reduzido a um rol de normas capazes de limitar a atuação do Poder Legislativo.

E a discussão sobre a liberdade religiosa também envereda pela laicidade, criação do magistério do Cristianismo, fruto dos erros e acertos institucionais da Igreja Católica, e pelo laicismo, um movimento de cunho autoritário que tende ao totalitarismo.

Na base do problema, repousa o fenômeno religioso, um dado eminentemente humano. Existe apenas nos seres racionais, fato, inclusive, admitido pelo próprio Feuerbach, que inaugura o ensaio A essência do cristianismo com o conhecido preâmbulo: “A religião repousa na distinção essencial entre homem e animal; os animais não têm religião. É bem verdade que os mais antigos naturalistas atribuíam ao elefante, entre outras louváveis qualidades, também a da religiosidade; mas a religião dos elefantes pertence ao reino das fábulas (in L’essenza del cristianismo; Ed. Feltrinelli; Milano; 1975, p.23).

A universalidade do fenômeno religioso é compartilhada pelos historiadores, filósofos, teólogos e artistas. Relata Battista Mondin que “(...) vale a pena ouvir mais alguns testemunhos abalizados. Por exemplo, Aristóteles: ‘Todos os homens estão convencidos de que os deuses existem’. Clemente de Alexandria escreve: ‘Não há nenhum tipo de agricultor, de nômade ou de cidadão que possa viver desprovido de fé num ser superior’. Bergson faz a seguinte observação: ‘Houve no passado e há ainda hoje sociedades humanas que não têm ciência, nem arte, nem filosofia. Mas não existe nenhuma sociedade sem religião’. No mesmo sentido, exprime-se Van der Leeuw: ‘Não há povo sem religião. No início da história não encontramos nenhum indício de ateísmo. A religião está sempre presente, em todos os lugares’. Recentemente, Norberto Bobbio escreveu: ‘O homem continua sendo um ser religioso, apesar de todos os processos de demitização, de secularização e de todas as afirmações da morte de Deus, características da idade moderna e contemporânea (in Quem é Deus?; Paulus; 2ª ed.; São Paulo; 2005; p.50)”.

Quando o homem nega sua dimensão religiosa, passa a ser a medida de todas as coisas, a única razão de ser: eis a imagem cada vez mais marcante nos últimos dois séculos, mas falaciosa, conforme mostrarão os anos e os fatos que se irão surgir cada vez mais catastróficos. Paradoxalmente, a glorificação do homem caminhará ao lado de sua degradação e não tardará a vir a sua radical negação. Se o ser humano não vai além de um punhado de moléculas regido, no comportamento, por forças cegas (como na cantata Carmina Burana), onde se funda sua grandeza?

Se já sou conhecido como conservador pelo ideário que defendo, depois deste artigo, vou sê-lo mais ainda. Conservador é um bom termo de insulto. Vivemos num tempo progressista: um tempo que acredita cegamente na missão redentora da política rumo a um fim determinado. O conservador é sempre a pedra no sapato. Ele questiona e ao fazê-lo, ele coloca em xeque a suprema vaidade do ser humano: a de construir um mundo racionalmente perfeito e arrogantemente alheio à dimensão religiosa. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito (agfernandes@tjsp.jus.br).


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